Se a “fina flor do eleitorado tupiniquim” não jogasse fora o bebê com a água da bacia no primeiro banho, digo, não descartasse no primeiro turno, juntamente com o elenco de circo de horrores que postulava a presidência em 2018, um dos dois ou três candidatos que talvez valesse a pena experimentar, talvez não tivéssemos elegido um obscuro deputado do baixo-clero, tosco e claramente despreparado. Águas passadas não movem moinhos, diz um velho ditado, e não adianta chorar sobre o leite derramado (diz outro famoso adágio). Mas, se os brasileiros continuarem a cometer os mesmos erros esperando produzir um acerto, talvez tenhamos um indesejável repeteco dessa ópera bufa em 2022, mesmo que com outros atores.
Em tese, Lula é carta fora do baralho: réu em pelo menos nove ações criminais e condenado em três instâncias no caso do tríplex e em duas no do sítio, o petralha está inelegível até 2035, quando, se até lá ele continuar marcando presença no mundo dos vivos, estará com 89 anos. Aliás, tenho a impressão (ou a certeza?) de que o rebotalho vermelho só nos dará sossego quando bater a cachuleta e for enterrado numa cova bem funda (para reduzir a distância de sua viagem ao inferno).
Falando em inferno, nunca é demais lembrar que a facção pró-crime do STF, especializada em tornar legal o descumprimento das leis por seus bandidos favoritos, chegou ao absurdo de reverter (ainda que pelo placar apertado de 6 votos a 5) a prisão em segunda instância. É improvável, mas não impossível, que essa mesma trupe decida um belo dia que condenação em ação criminal não impede político de disputar cargo eletivo. Afinal, tudo é possível numa republiqueta de bananas onde até o passado é imprevisível; do futuro só se sabe que um dia ele há de chegar, e há até parlamentar que dorme na cadeia e sai pela manhã para dar expediente no Congresso.
Observação: Entre 1941 e 1973, a regra era a prisão após a condenação em primeira instância. Sob a ditadura militar, alterou-se o CPP para favorecer o chefão do DOPS Sérgio Fernando Paranhos Fleury, e a partir de então réus primários e com bons antecedentes passaram a ter o direito de responder ao processo em liberdade até a decisão da segunda instância. Em 2009, como consequência tardia da nossa fantasiosa “Constituição Cidadã”, os condenados passaram a ser presos somente após o trânsito em julgado da sentença — isto é, depois de se esgotarem todos os recursos possíveis e imagináveis nas quatro instâncias do Judiciário, o que equivale a dizer “no dia de S. Nunca” —, até que, em 2016, o STF restabeleceu a prisão após a condenação em segunda instância. Tudo somado e subtraído, nas últimas oito décadas menos o período de 2009 a 2016, os criminosos eram presos após a condenação na primeira ou na segunda instância, como acontece na maioria das democracias do Planeta. A exigência do trânsito em julgado vigeu por míseros 7 anos, mas favoreceu um sem-número de corruptos (e uma penca de criminalistas estrelados, que cobram honorários milionários para “empurrar com a barriga” a prisão de seus clientes até a prescrição da pretensão punitiva do Estado ou a morte da galinha dos ovos de ouro, o que ocorrer primeiro). A despeito do que alegam os pseudogarantistas, a presunção de inocência e a garantia da liberdade e proibição da prisão arbitrária são coisas distintas, conforme nós já discutimos em diversas oportunidades aqui no Blog.
Voltando às elucubrações sobre a próxima disputa presidencial, se houvesse oposição organizada e produtiva, seria este o momento de ela brilhar. Como não há — e os possíveis postulantes ao Planalto estão ocupados exclusivamente com as respectivas estratégias eleitorais —, falta quem diga com todos os efes e erres que o barco do governo está fazendo água no tocante à administração do país.
Não é verdade que tudo anda bem, a despeito das exorbitâncias verbais de Jair Bolsonaro. Estas e a excessiva atenção dada a elas servem de biombo aos defeitos de gestão e equívocos de visão que se vêm acumulando e, em muitos casos, obscurecendo ações em áreas em que há boa condução. Há ministros investigados, ministros inúteis sem função real, ministros cujos interesses privados estão em conflito com as práticas públicas, ministros claramente sem qualificação, mas nada disso parece incomodar o presidente da República, que segue alheio à óbvia necessidade de mexer na equipe para melhorar o andamento dos trabalhos. Seu argumento é que não age sob pressão, mas é justamente sob a pressão dos governados que deve atuar o governante.
Não é verdade que tudo anda bem, a despeito das exorbitâncias verbais de Jair Bolsonaro. Estas e a excessiva atenção dada a elas servem de biombo aos defeitos de gestão e equívocos de visão que se vêm acumulando e, em muitos casos, obscurecendo ações em áreas em que há boa condução. Há ministros investigados, ministros inúteis sem função real, ministros cujos interesses privados estão em conflito com as práticas públicas, ministros claramente sem qualificação, mas nada disso parece incomodar o presidente da República, que segue alheio à óbvia necessidade de mexer na equipe para melhorar o andamento dos trabalhos. Seu argumento é que não age sob pressão, mas é justamente sob a pressão dos governados que deve atuar o governante.
Bolsonaro é dos que mais cedem a pressões, mas o faz do jeito e pelos motivos errados. Cede quando algo desagrada aos seguidores nas redes sociais, mas não faz concessão às evidências quando a incompetência rende malefícios à população. Rodrigo Maia é quem mais perto chega de exercer o papel que seria dos líderes de oposição, mas essa não é a função do presidente da Câmara. Mesmo assim, ele ocupa o espaço deixado vago por personagens outrora ativos na política — dias atrás o fez com especial propriedade ao resumir em duas palavras o desempenho do ministro da Educação, Abraham Weintraub: “Um desastre”. Devido à falta de qualificação (mínima, pois comete erros de português indignos de um analfabeto funcional), Weintraub enfrenta sérias resistências no Congresso, o que impede a tramitação dos assuntos atinentes à área. Ele vai ficando porque o presidente gosta mesmo é de causar alvoroço nas redes, embora não escape do imperativo de demiti-lo cedo ou tarde.
Bolsonaro não vê urgência em resolver o problema do responsável pelas verbas de publicidade oficial — que detém 95% das ações de uma empresa de comunicação (da qual se afastou formalmente, mas para a qual nomeou como chefe o irmão de seu subchefe na Secretaria de Comunicação), cujos clientes têm contratos com o governo. Tampouco vê impropriedade em seu ministro do Turismo precisar se manter discreto para não ser lembrado como aquele indiciado pelo uso de “laranjas” na distribuição de dinheiro público no PSL em Minas Gerais. O fato de a presença de Ricardo Salles no Meio Ambiente dificultar as coisas para o Brasil no exterior também não lhe fala à alma. E não nos esqueçamos da Casa Civil, que já abrigou o gabinete mais importante da República e hoje não passa do escritório eleitoral de Onyx Lorenzoni, de quem foram retiradas todas as funções, provavelmente porque o capitão não o considera competente o bastante para o posto já assumido por gente muito importante, embora nem sempre da melhor qualidade moral. Onyx fica (pelo menos por enquanto) porque ser leal ao presidente e precisa da vitrine para o projeto de disputar o governo do Rio Grande do Sul em 2022.
Com tantos pratos cheios para o exercício de uma oposição consistente, onde estão os oposicionistas? Cada qual cuidando da vida a seu modo e, no conjunto, perdidos sem projeto nem discurso. O principal contendor de Bolsonaro na eleição passada está preso às conveniências de um Lula que não pode andar na rua sem o risco de ser hostilizado. Os tucanos, atarantados e sem referência; os demais satélites à esquerda e à direita de postos, em sossego, à espera de um milagre no meio do mais completo deserto de ideias.
Com Dora Kramer