sexta-feira, 27 de março de 2020

O LIVRE ARBÍTRIO SEGUNDO BOLSONARO



Diz-se que Deus deu ao Homem (com letra maiúscula para não deixar dúvidas de que estou me referindo ao ser humano, independentemente de sexo, gênero, ou seja qual for a expressão politicamente correta nestes tempos estranhos) o livre arbítrio — que o dicionário define como "a possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante". 

Padres, pastores, rabinos e assemelhados se utilizam dessa "escapatória" — e dos dogmas, que são "pontos fundamentais que as doutrinas religiosas apresentam como verdades absolutas, certas e inquestionáveis" para explicar aos fiéis coisas que nem eles próprios entendem. "Por que criminosos matam criancinhas inocentes?" pergunta a velhinha. "Porque Deus lhes deu o livre arbítrio", responde o batina, mas acrescenta: "Só que Deus está vendo o que cada um de nós faz, e todos teremos de Lhe prestar contas dos nossos atos". Enfim, tudo faz parte de um tal "Plano de Deus", mas não se sabe ao certo no esse plano consistiria e qual seria seu objetivo.

Tudo isso para dizer que, por livre arbítrio, o presidente Bolsonaro resolveu trafegar pela contramão do bom senso e bater de frente com quase todos os governadores de 26 estados e do Distrito Federal. Uma decisão que não chega a surpreender, considerando sua maneira, digamos, peculiar de governar. Basta lembrar como ele atuou durante a tramitação da PEC da Previdência para tirar a castanha com a mão do gato — ou seja, colher o bônus sem arcar com o ônus de uma reforma impopular, mas de importância fundamental, sem a qual a fonte dos caraminguás dos quais depende a subsistência de milhões de aposentados, pensionistas e outros beneficiários do INSS iria se exaurir dentro de mais alguns anos. 

Pela mesma razão, Bolsonaro engavetou a proposta de reforma administrativa, que está pronta para ser encaminhada ao Legislativo desde o final do ano passado, sem mencionar outras estultices que visam manter mobilizados seus descerebrados apoiadores — uma versão com sinal invertido da militância fanática lulopetista. Nada o irrita mais que ser ofuscado por algum subalterno. Prova disso são as frequentes frituras de Sérgio Moro e, mais recentemente, de Henrique Mandetta, que tem recebido o apoio e o agradecimento da população por seu trabalho sério e ponderado no combate à pandemia.

Mandetta se viu obrigado a ajustar o discurso depois que desagradou o chefe ao classificar um possível colapso do sistema de saúde como "tema urgente neste momento". Em pronunciamento feito no Palácio do Planalto, o ministro pediu “calma e planejamento” para paralisações das atividades econômicas, e disse que “há lugares que pararam tanto que não tinham mecânicos para a manutenção de determinadas máquinas hospitalares, necessidades prementes que temos no dia a dia de unidades de saúde, de unidades de manutenção de água e esgoto”.

Ser ministro de Bolsonaro é conviver diuturnamente com o risco de desagradá-lo de alguma forma e ser sumariamente exonerado a qualquer momento — ou, numa linguagem que combina mais com o modo de falar de sua excelência, é como dar o c* e ter de pedir desculpas por estar de costas.

A exemplo de Lula no comando da fação criminosa que fundou e chama de partido político, Bolsonaro é incapaz de regar uma plantinha que tenha potencial para crescer e lhe fazer sombra. Daí o PT boiar sem rumo, como merda n’água e o Brasil claudicar com uma pedra no sapato que acontece de ser seu presidente. Mas o criminoso de Garanhuns é (quase) carta fora do baralho, e o capitão caverna caverna tem mais 30 meses de mandato — tempo mais que suficiente para botar a pique esta Nau de Insensatos vinha se mantendo na superfície, apesar de seu capitão, até que surgiu um vírus mutante capaz de causar tamanha catástrofe. 

À crise sanitária soma-se a econômica: desde o final de fevereiro, enquanto o número de infectados e mortos pelo “novo coronavírus” (eu detesto essa expressão) cresceu exponencialmente mundo afora e, mais adiante, o preço barril do petróleo despencou, graças à queda de braço entre o príncipe saudita Mohamed bin Salman, líder da OPEP, e Vladimir Putin, presidente da Rússia, no Brasil o dólar acompanhou a curva ascendente da Covid-19 e o Ibovespa, a trajetória descendente da commodity.

É inegável que estamos diante de algo inusitado, pelo menos neste século. No passado, entre 1918 e 1920, a gripe espanhola contaminou quase 30% da população mundial e matou dezenas de milhões de pessoas, mas os tempos eram outros e a tecnologia e os recursos da medicina, idem. Não obstante, uma recessão agravaria ainda mais o quadro, daí a importância de se implementar de maneira consciente medidas como confinamento de pessoas, paralisação da indústria e do comércio (noves fora atividades ditas “essenciais”) e outras que tais. 

Observação: Vale lembrar que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose — em doses exageradas, ambos podem matar; em doses insuficientes, um não mata, mas o outro não cura.

Consciência e ponderação são artigos em falta nas prateleiras do presidente. Na última quarta-feira, durante videoconferência com os governadores do Sudeste, Doria disse que ele deveria “dar exemplo ao País, e não dividir a nação em tempos de pandemia“. O capitão se exaltou, chegando a chamar o governador paulista de leviano e demagogo. Acusou Doria de se apoderar do nome dele nas eleições de 2018 e depois lhe “virar as costas”, que a possibilidade de se eleger presidente em 2022 subiu-lhe à cabeça, e concluiu recomendando-lhe  que “saísse do palanque” (logo quem!). 

Após a reunião, Doria usou as redes sociais para lamentar o “ataque descontrolado” de Bolsonaro, lembrou o número de mortos pelo coronavírus no Brasil até o momento e ironizou a declaração do presidente de que “isso não passa de uma gripezinha”.

Para encerrar, segue versão resumida de um texto publicado em O ESTADÃO desta quinta-feira por Joaquim Falcão, membro da ABL e professor titular de Direito Constitucional da Escola de Direito da FGV/RJ.

“As palavras da Constituição e das leis já são legendas para alguns atos da Presidência. O art. 268 do Código Penal diz que ‘comete crime de infração de medida sanitária preventiva quem desrespeitar determinação do poder público destinada a impedir introdução e propagação de doença contagiosa’. A Lei de Impeachment diz que é crime de responsabilidade: ‘praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal’. Mas para que as palavras do impeachment vivam é preciso mais.

Um extenso devido processo legal por iniciativa dos presidentes do Congresso e do Senado exige convergir decisões dos tribunais, precisa de insatisfeitos e ofendidos, de políticos estaduais e municipais, de opinião pública esclarecida e estupefata e de mínima oportunidade e conveniência para as elites econômicas.

Bolsonaro tem contribuído para estas convergências. Ao humilhar ministros, exerce poder presidencial como humilhação de si próprio. Demitiu desavisados generais. Tentou desacreditar Sérgio Moro. Esgotou Paulo Guedes. Melancólico — mas esperançoso — é ver na televisão a imagem petrificada do ministro Luiz Henrique Mandetta, obrigado a presenciar ao vivo suas discordâncias intestinas. Bolsonaro morre de ciúmes do bom trabalho do ministro. Aliás, de qualquer ministro. Agride e ofende governadores, prefeitos, como se já fossem a oposição política que estão se tornando. Demonstra ódio sem objeto. Ou terá objeto? Qual? Estranho. Mesmo quando escolhe bem, age como se tivesse errado.

Talvez acredite que a MP sobre Estado de Calamidade Pública lhe dê poderes para acender as trevas. Desligar a palavra. Jurídica ou não. A MP limitou a lei de acesso à informação ao governo. Limita a transparência da gestão pública. Não será obrigado, por exemplo, a informar se ele próprio estará ou não com coronavírus. Agora ou no futuro. Ou revelar outros dados solicitados. Distribuição de recursos financeiros a empresas favoritas. Basta fundamentar, como Jânio Quadros: “Fi-lo porque qui-lo.”

A MP vale até dezembro de 2020. Poderia tentar adiar eleições de outubro em razão do coronavírus. Rosa Weber é pedra no meio do caminho. Mas adiando, teria tempo para constituir seu partido. Quem conseguirá primeiro concretizar ou desarmar o impeachment? Como o coronavírus, os atos de destruição da democracia também têm carga tóxica.”

Enfim, o “mito” dos bolsomínions emula a fábula da Roupa Nova do Rei, só que, ao invés de se exibir nu em pelo, o presidente vai se desnudando aos poucos, como uma stripper. Ainda não se sabe qual peça da indumentaria real cairá por último, se a máscara ou a coroa. Façam suas apostas.