Diz-se que Deus deu ao Homem (com letra maiúscula para não deixar
dúvidas de que estou me referindo ao ser humano, independentemente de sexo,
gênero, ou seja qual for a expressão politicamente correta nestes tempos
estranhos) o livre arbítrio — que o dicionário define como "a possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta
de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante".
Padres,
pastores, rabinos e assemelhados se utilizam dessa "escapatória" — e dos dogmas,
que são "pontos fundamentais que as doutrinas religiosas apresentam como
verdades absolutas, certas e inquestionáveis" para explicar aos fiéis
coisas que nem eles próprios entendem. "Por que criminosos matam criancinhas
inocentes?" pergunta a velhinha. "Porque Deus lhes deu o
livre arbítrio", responde o batina, mas acrescenta: "Só que Deus está
vendo o que cada um de nós faz, e todos teremos de Lhe prestar contas dos
nossos atos". Enfim, tudo faz parte de um tal "Plano de Deus", mas não se sabe ao certo no esse plano consistiria e qual seria seu objetivo.
Tudo isso para dizer que, por livre arbítrio, o
presidente Bolsonaro resolveu trafegar pela contramão do bom senso e bater
de frente com quase todos os governadores de 26 estados e do Distrito Federal. Uma
decisão que não chega a surpreender, considerando sua maneira, digamos, peculiar de governar. Basta lembrar como ele atuou
durante a tramitação da PEC da Previdência para tirar a castanha com a
mão do gato — ou seja, colher o bônus sem arcar com o ônus de uma reforma
impopular, mas de importância fundamental, sem a qual a fonte dos caraminguás
dos quais depende a subsistência de milhões de aposentados, pensionistas e
outros beneficiários do INSS iria se exaurir dentro de mais alguns anos.
Pela mesma razão, Bolsonaro engavetou a proposta de reforma
administrativa, que está pronta para ser encaminhada ao Legislativo
desde o final do ano passado, sem mencionar outras estultices que visam manter
mobilizados seus descerebrados apoiadores — uma versão com sinal invertido da
militância fanática lulopetista. Nada o irrita mais que ser ofuscado por algum subalterno.
Prova disso são as frequentes frituras de Sérgio Moro e, mais
recentemente, de Henrique Mandetta, que tem recebido o apoio e o
agradecimento da população por seu trabalho sério e ponderado no combate à
pandemia.
Mandetta se viu obrigado a ajustar o discurso depois que desagradou o chefe ao classificar um possível colapso do sistema de saúde como "tema urgente neste momento". Em pronunciamento feito no Palácio do Planalto, o ministro pediu “calma e planejamento” para paralisações das
atividades econômicas, e disse que “há lugares que pararam tanto que não
tinham mecânicos para a manutenção de determinadas máquinas hospitalares,
necessidades prementes que temos no dia a dia de unidades de saúde, de unidades
de manutenção de água e esgoto”.
Ser ministro de Bolsonaro é conviver diuturnamente
com o risco de desagradá-lo de alguma forma e ser sumariamente exonerado a
qualquer momento — ou, numa linguagem que combina mais com o modo de falar de sua excelência, é como dar o c* e ter de pedir
desculpas por estar de costas.
A exemplo de Lula no comando da fação criminosa que
fundou e chama de partido político, Bolsonaro é incapaz de regar uma
plantinha que tenha potencial para crescer e lhe fazer sombra. Daí o PT boiar
sem rumo, como merda n’água e o Brasil claudicar com uma pedra no sapato que
acontece de ser seu presidente. Mas o criminoso de Garanhuns é (quase)
carta fora do baralho, e o capitão caverna caverna tem mais 30 meses de mandato — tempo mais
que suficiente para botar a pique esta Nau de Insensatos vinha se mantendo na superfície, apesar de seu capitão, até que surgiu um vírus mutante
capaz de causar tamanha catástrofe.
À crise sanitária soma-se a econômica: desde
o final de fevereiro, enquanto o número de infectados e mortos pelo “novo
coronavírus” (eu detesto essa expressão) cresceu exponencialmente mundo afora
e, mais adiante, o preço barril do petróleo despencou, graças à queda de braço entre
o príncipe saudita Mohamed bin Salman, líder da OPEP,
e Vladimir Putin, presidente da Rússia, no Brasil o dólar
acompanhou a curva ascendente da Covid-19 e o Ibovespa, a
trajetória descendente da commodity.
É inegável que estamos diante de algo inusitado, pelo menos
neste século. No passado, entre 1918 e 1920, a gripe espanhola contaminou
quase 30% da população mundial e matou dezenas de milhões de pessoas, mas os
tempos eram outros e a tecnologia e os recursos da medicina, idem. Não obstante,
uma recessão agravaria ainda mais o quadro, daí a importância de se implementar de
maneira consciente medidas como confinamento de pessoas, paralisação da
indústria e do comércio (noves fora atividades ditas “essenciais”) e outras que
tais.
Observação: Vale lembrar que a diferença entre o remédio e o veneno é a
dose — em doses exageradas, ambos podem matar; em doses insuficientes, um
não mata, mas o outro não cura.
Consciência e ponderação são artigos em falta nas
prateleiras do presidente. Na última quarta-feira, durante videoconferência com
os governadores do Sudeste, Doria disse que ele
deveria “dar exemplo ao País, e não dividir a nação em tempos de pandemia“.
O capitão se exaltou, chegando a chamar o governador paulista de leviano
e demagogo. Acusou Doria de se apoderar do nome dele nas eleições de 2018 e depois lhe “virar as costas”, que a possibilidade de se
eleger presidente em 2022 subiu-lhe à cabeça, e concluiu recomendando-lhe que “saísse do
palanque” (logo quem!).
Após a reunião, Doria usou as redes sociais
para lamentar o “ataque descontrolado” de Bolsonaro, lembrou o número de
mortos pelo coronavírus no Brasil até o momento e ironizou a declaração do
presidente de que “isso não passa de uma gripezinha”.
Para encerrar, segue versão resumida de um texto publicado
em O ESTADÃO desta quinta-feira por Joaquim Falcão, membro da ABL
e professor titular de Direito Constitucional da Escola de Direito da FGV/RJ.
“As palavras da Constituição e das leis já são legendas para
alguns atos da Presidência. O art. 268 do Código Penal diz que ‘comete crime de
infração de medida sanitária preventiva quem desrespeitar determinação do poder
público destinada a impedir introdução e propagação de doença contagiosa’. A Lei
de Impeachment diz que é crime de responsabilidade: ‘praticar ou concorrer para
que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na
legislação penal’. Mas para que as palavras do impeachment vivam é preciso
mais.
Um extenso devido processo legal por iniciativa dos
presidentes do Congresso e do Senado exige convergir decisões dos tribunais,
precisa de insatisfeitos e ofendidos, de políticos estaduais e municipais, de
opinião pública esclarecida e estupefata e de mínima oportunidade e
conveniência para as elites econômicas.
Bolsonaro tem contribuído para estas convergências. Ao
humilhar ministros, exerce poder presidencial como humilhação de si próprio.
Demitiu desavisados generais. Tentou desacreditar Sérgio Moro. Esgotou Paulo
Guedes. Melancólico — mas esperançoso — é ver na televisão a imagem
petrificada do ministro Luiz Henrique Mandetta, obrigado a presenciar ao
vivo suas discordâncias intestinas. Bolsonaro morre de ciúmes do bom
trabalho do ministro. Aliás, de qualquer ministro. Agride e ofende governadores, prefeitos, como se já fossem a oposição política que estão se tornando. Demonstra ódio sem objeto. Ou terá objeto? Qual? Estranho. Mesmo quando
escolhe bem, age como se tivesse errado.
Talvez acredite que a MP sobre Estado de Calamidade Pública
lhe dê poderes para acender as trevas. Desligar a palavra. Jurídica ou não. A
MP limitou a lei de acesso à informação ao governo. Limita a transparência da
gestão pública. Não será obrigado, por exemplo, a informar se ele próprio
estará ou não com coronavírus. Agora ou no futuro. Ou revelar outros dados
solicitados. Distribuição de recursos financeiros a empresas favoritas. Basta
fundamentar, como Jânio Quadros: “Fi-lo porque qui-lo.”
A MP vale até dezembro de 2020. Poderia tentar adiar
eleições de outubro em razão do coronavírus. Rosa Weber é pedra no meio
do caminho. Mas adiando, teria tempo para constituir seu partido. Quem
conseguirá primeiro concretizar ou desarmar o impeachment? Como o coronavírus,
os atos de destruição da democracia também têm carga tóxica.”
Enfim, o “mito” dos bolsomínions emula
a fábula da Roupa Nova do Rei, só que, ao invés de se exibir nu em pelo, o presidente vai se desnudando aos poucos, como uma stripper. Ainda não
se sabe qual peça da indumentaria real cairá por último, se a máscara ou a
coroa. Façam suas apostas.