sexta-feira, 20 de março de 2020

SE HOUVER AMANHÃ...


É no mínimo frustrante nossa sensação de impotência diante da pandemia do Covid-19, uma crise mundial inusitada e sem paralelo na história recente da humanidade. É certo que a Gripe Espanhola contaminou quase 30% da população mundial e matou dezenas de milhões de pessoas — no Rio de Janeiro, por exemplo, chegaram a ser registrados mil óbitos num único dia —, mas isso foi entre 1918 e 1920, antes mesmo da descoberta da penicilina.

Observação: Faço essa remissão para dar ao leitor uma ideia de quão limitados eram os recursos da medicina de então, já que antibióticos não combatem vírus e podem aumentar a suscetibilidade da pessoa a uma infecção viral (embora haja controvérsias a esse respeito).

Esse imbróglio começou na China, no final do ano passado, mas à medida que os casos aumentaram mundo afora — já são cerca de  200 mil infectados —, em Wuhan, epicentro do SARS-CoV-2, registrou-se uma única transmissão local na última terça-feira (17). A maior parte dos 78 mil chineses infectados já estão recuperados, e algumas atividades começam a voltar ao normal, com os trabalhadores retornando às fábricas (que estavam fechadas desde fevereiro). Isso se deve em grande parte ao fato de os chineses terem construído em tempo recorde 16 hospitais em Wuhan, (o primeiro ficou pronto em dez dias) para atender tanto infectados quanto qualquer pessoa que apresentasse sintomas. O maior deles, com capacidade para atender duas mil pessoas simultaneamente, deve ser fechado no final deste mês, já que o número de casos está controlado. 

É impossível negar a responsabilidade (ou irresponsabilidade, melhor dizendo) do governo chinês pelo alastramento do vírus, e de as autoridades locais terem tentado abafar os primeiros alertas sobre seus efeitos e letalidade. No dia 30 de dezembro, o doutor Li Wenliang tentou alertar seus colegas de que pacientes estavam em quarentena na emergência do hospital, mas foi acusado de estar "espalhando boatos" e, três dias depois, forçado a assinar uma advertência de que seu comportamento era “ilegal”. Ele acabou morrendo no dia 6 de fevereiro, em razão da Covid-19.

Nos dias seguintes, pessoas começaram a procurar hospitais da cidade com queixas de sintomas semelhantes ao de uma pneumonia viral, mas que não respondiam a tratamentos comuns. Os médicos notaram que todos trabalhavam no mercado Huanan, onde carnes variadas, exóticas e animais silvestres vivos eram vendidos em um ambiente pouco salubre. No dia 31 de dezembro, o governo de Wuhan foi forçado a admitir que 27 pessoas estavam infectadas com uma pneumonia desconhecida, mas afirmou que a doença era “evitável e controlável”. O escritório da OMS em Pequim também foi alertado, mas o tom do governo local era de otimismo e sugeria que não havia transmissão entre humanos.

No dia 7 de janeiro, foi anunciado que um novo vírus havia sido identificado, e no dia 9 a Covid-19 fez sua primeira vítima fatal, cuja morte só foi anunciada dois dias depois, após seu código genético ser divulgado em um banco de dados público para que pesquisadores do mundo inteiro pudessem estudá-lo. No dia 13 a Tailândia registrou o primeiro caso de Covid-19 fora da China. Dia 16, foi a vez do Japão. Com a disseminação, no dia 18 Pequim mandou a Wuhan o epidemiologista Zhong Nanshan, que anunciou em rede nacional que o vírus era transmitido entre humanos. O presidente Xi Jinping também se pronunciou, e partir daí, a resposta foi rápida. O resto é história recente.

A questão é que a maneira como Eduardo Bolsonaro — que chegou a ser cogitado para assumir o posto de embaixador do Brasil nos EUA — tratou essa questão não foi lá muito diplomática. Em seu perfil oficial no Twitter, ele sugeriu que o Estado chinês teria escondido “algo grave” e comparou o caso com ChernobylO embaixador da China no Brasil repudiou a publicação e exigiu pedido de desculpas. Zero três tornou a emenda pior que o soneto, o que levou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a apresentar um pedido de desculpas.

Bolsonaro pai, habitualmente loquaz, não deu um pio, mas o vice, general Hamilton Mourão — que teve papel decisivo na reaproximação do Brasil com China após o então candidato a presidente ter disparado declarações hostis ao país asiático durante toda a campanha eleitoral — tentou minimizar o impacto: “(A declaração) não é motivo de estresse, pois a opinião de um parlamentar não corresponde à visão do governo. Nenhum membro do governo tocou nesse assunto”, disse Mourão ao Estado. Já o governador de São Paulo, João Doria, chamou de “lamentável” e “irresponsável” a postagem do deputado fritador de hambúrgueres.

Em situações como a que estamos atravessando, mais importante que apontar o dedo para o eventual culpado é RESOLVER O PROBLEMA. O resto se vê depois. Os mercados estão instáveis, com o dólar acima dos R$ 5 e a bolsa amargando quedas expressivas — após encostar nos 120 mil pontos em 23 de janeiro, o Ibovespa desceu de elevador o que levou um tempo enorme para subir pela escada. Por volta das 16h30 de ontem, quando eu finalizava este texto, a B3, depois de diversos picos e vales, operava em alta de 3%, perto dos 69 mil pontos, mas a montanha russa deve prosseguir até o fechamento e nada indica que não se repita nos próximos dias.

São Paulo, capital da locomotiva do Brasil e maior metrópole da América Latina, ainda não virou uma cidade-fantasma, mas o trânsito e a circulação de pessoas diminuíram dramaticamente. Nos supermercados, desmiolados lotam carrinhos com álcool em gelisso quando encontram o produto nas gôndolas — e papel higiênico — talvez com receio de toda essa paúra lhes desarranjar os intestinos. Ontem à noite, opositores e apoiadores de Bolsonaro fizeram panelaços, indiferentes ao fato de estarmos em meio a uma tormenta de dimensões épicas, e que precisamos remar juntos e na mesma direção, ou esta nau de insensatos irá a pique e nós estaremos fodidos e mal pagos.  

Os ataques de Bolsonaro & Filhos ao Congresso visam manter mobilizada a claque de apoiadores. O capitão está de olho na reeleição desde que subiu a rampa do Planalto, mas foi eleito para governar para todos, em que pesem diferenças político-ideológicas e de visão do mundo. Com sua postura beligerante, vem desfazendo velhas amizades, transformando correligionários em desafetos e aliados de primeira hora em adversários. 

Embora jamais tenha sido o candidato de nossos sonhos (noves fora os bolsomínions, que são uma versão com sinal invertido da militância lulopetista), Bolsonaro acabou se tornando a única alternativa à volta do PT graças aos votos do esclarecidíssmo eleitorado tupiniquim no primeiro turno. E a despeito de estar se saindo pior como presidente do que como candidato, temos de aturá-lo até 2022 e torcer pelo sucesso do seu governo, pois disso depende o futuro do Brasil e, em última análise, o de todos nós. Portanto, não é o momento de falar em impeachment, de bater panelas ou convocar manifestações de rua (tanto contra quanto a favor do governo). 

Observação: Ao assumir o comando da Famiglia Corleone com a “aposentadoria” do pai — Don Vito, o “padrinho” (tanto no livro de Mario Puzo quanto na trilogia dirigida por Francis Ford Coppola o título “The Godfather”, que significa “O Padrinho”, foi traduzido como “O Poderoso Chefão”) —, Michel apeou o irmão de criação, Tom Hagen, do posto de consiglieri, dizendo-lhe que não havia ninguém melhor que o pai para aconselhá-lo, mas o fato é que Hagen não era um conselheiro para tempos de guerra (e aí seguiu-se a execução sumária dos capi das famílias mafiosas rivais, mas essa é uma outra conversa).  

Se servir de consolo, é bom lembrar que Bolsonaro é o presidente desta banânia, mas há no governo gente do quilate de Paulo Guedes Sérgio Moro, entre outros aliás, o ministro Luiz Henrique Mandetta vem demonstrando habilidade e competência para lidar com as imensas dificuldades impostas pelos limitados recursos do nosso sistema de saúde. Se o capitão não atrapalhar, conseguiremos superar mais essa crise. E que sirva de lição para apedeutas munidos de título eleitoral praticarem o árduo exercício do raciocínio — que está longe se ser o esporte preferido dos brasileiros. Assim, talvez nas próximas eleições possamos escolher o melhor candidato nas próximas em vez de eleger o menos ruim para evitar a volta do pior.

Por hoje chega. Amanhã tem mais. Isso se houver amanhã.