Além da pena primorosa, Roberto Pompeu de Toledo tem
um olhar arguto para as coisas do Brasil. Após reconstituir em A capital
da solidão a história de São Paulo das origens a 1900, o jornalista e
escritor narra em A capital da vertigem sua arrancada rumo à
modernidade. Num painel que vai do início do século XX ao 100.º aniversário da
cidade, aparecem personagens como Oswald e Mário de Andrade, Monteiro
Lobato, Washington Luís, Prestes Maia e Francisco
Matarazzo, e surgem episódios que vão da Semana de Arte Moderna de 1922 à epidemia
de gripe espanhola — que eu reproduzo a seguir por motivos cuja obviedade dispensa explicações.
“1918 foi no Brasil, e especialmente em São Paulo, o ano dos
quatro “Gs”: geada, gafanhotos, guerra e gripe. A geada devastou as plantações
de café. Uma praga de gafanhotos completou a devastação. A guerra na Europa
inaugurou nesse ano a participação brasileira, ainda que modesta. Para fechar a
conta das desgraças, recebemos, por cortesia dos navios que chegavam a nossos
portos, a visita da gripe, chamada “espanhola”, que corria o mundo. O Rio
de Janeiro, em meados de outubro, exibia aspecto desolador. Até as farmácias
fechavam, por falta de funcionários sãos. Nos cemitérios escasseavam coveiros,
e caixões eram depositados no chão. Em Santos, uma semana após o primeiro caso,
os infectados eram 4 000.
Em São Paulo um hóspede carioca do Hotel
d’Oeste, no Largo
de São Bento, foi diagnosticado com a doença no dia 9 de outubro. Era o
primeiro caso. No dia 16 havia 29; no dia 23, 1 144;
no dia 4 de novembro, 7 786.
São Paulo contava cerca de 550 000
habitantes; o Rio de Janeiro, 1 milhão;
e o Brasil, 30 milhões.
Nos últimos dias de outubro São Paulo igualava-se ao Rio, no aspecto desolador.
Boa parte do comércio fechara as portas, fosse por falta de fregueses, fosse de
funcionários. O jornal A Gazeta observava, no dia 23 de outubro, que o
“elemento feminino” sumira das ruas: “Não existe há vários dias o footing que
emprestava ao centro de nossa urbs, das 16 às 18 horas, um aspecto encantador,
cheio de carinhas risonhas, deliciosas de graça e de beleza”. A letalidade, de
início, era baixa, a ponto de o jornal O Estado de S. Paulo, no dia
19, fazer pouco do problema: “Basta, como resistência à moléstia, tomar, com
rigor, as poucas e fáceis precauções aconselhadas pelos médicos da cidade.
Quanto ao resto, não se preocupar e falar do morbo o menos possível, procurando
manter em redor uma atmosfera de tranquilidade e confiança”.
As precauções eram evitar aglomerações, não fazer visitas,
evitar esforço físico (acreditava-se que diminuíam a resistência à doença).
A primeira morte ocorreu em 21 de outubro. A 2 de novembro eram 141 e nos
dias seguintes aproximavam-se de 200. O então precário sistema de saúde
precisou de reforço. Montaram-se hospitais improvisados em colégios como o
Sion, o São Luís e o Mackenzie, e em sedes de clubes como o Palestra Itália e o
Paulistano. O Corinthians, num humilde comunicado, afirmou que, “apesar de
sua insignificante valia”, se sentia na obrigação de concorrer “para o alívio
dos infelizes operários atacados pela pandemia”. Sendo assim, apesar de “pobre
por sua natureza”, conclamou os sócios e os admiradores a uma vaquinha para
socorro.
As baixas atingiam os detentores de postos-chave. O
delegado-geral Tirso Martins pegou a gripe e passou o cargo a seu
segundo, que também pegou a gripe. A dama da sociedade Antônia de Queirós,
presidente da Cruz Vermelha paulista, também caiu gripada; sua substituta teve
a mesma sorte, e a substituta da substituta. Na redação de O Estado de
S. Paulo, o diretor Júlio de Mesquita adoeceu e entregou o
bastão aos filhos, o segundo Júlio e Francisco; estes o
repassaram aos seguintes na cadeia de comando, e assim foi até que um simples
amigo dos jornalistas, o jovem escritor, ainda inédito, Monteiro Lobato,
assumiu, por conta própria, a chefia de uma redação deserta.
O escritor Paulo Duarte escreve, em suas memórias,
que na Rua da Consolação passavam filas de caminhões levando cadáveres: “Esta
paisagem tornou-se rotina. Já não se prestava atenção naqueles montes de
caixões de defunto, todos iguais, uns sobre os outros”. Para atender à demanda,
ampliaram-se os cemitérios da Consolação, do Araçá e do Brás, e abriu-se um
novo, na Lapa. Luzes foram neles dispostas às pressas, para tornar possíveis
enterros à noite. Uma vala comum, aberta no cemitério do Brás, recebeu 337
corpos, sem caixões. Na maioria vieram do hospital improvisado na Hospedaria
dos Imigrantes, onde foi internada grande parte da população pobre. Nos bairros
populares, mais que a doença, temia-se a Hospedaria dos Imigrantes. Espalhava-se
que ali se aplicava o “chá da meia-noite”, para apressar a ida dos pacientes
desta para a melhor.
A 19 de dezembro declarou-se encerrada a epidemia,
depois de 66 dias. Na conta oficial, 116 777
pessoas foram infectadas na cidade e 5 331
morreram. Cálculos
extraoficiais fazem o número
de infectados avançar
a até 350 000, o que corresponderia a
dois terços dos
habitantes.”