Exausto de não exercer a Presidência para a qual foi eleito
por 57,7 milhões de eleitores, Bolsonaro decidiu ocupar o tempo ocioso
treinando para uma nova carreira. Aventura-se no ramo do humor. Faltando-lhe o talento,
virou piada. De mau gosto.
Em meio a uma pandemia que já produziu algo como 10 mil cadáveres
— noves fora a subnotificação — o antipresidente da República anunciou para o
último sábado a realização de um churrasco para 30 convidados no Alvorada.
Pegou mal. Bolsonaro saiu
de fininho. Correu para a bolha das redes sociais, seu habitat natural.
"Alguns jornalistas idiotas criticaram o churrasco fake...",
anotou. Curioso, muito curioso, curiosíssimo.
Horas depois, foi visto passeando de jet ski pelo Lago Paranoá. Parou ao lado
de uma lancha. Em conversa com simpatizantes, disse: "É uma neurose,
70% vai pegar (sic) o vírus. Não tem como. Loucura!" A frase repete uma cantilena que Bolsonaro entoa
desde que o coronavírus fez a sua primeira vítima oficial no Brasil, em 17 de
março. Para ele, pandemia é apenas um outro nome para "histeria". O
isolamento social, por "inútil", só serve para arruinar a economia.
Por isso, os brasileiros com menos de 60 anos deveriam submeter-se à infecção
"como homens", pois ela é inevitável.
Na definição do poeta Mario Quintana, o autodidata é
um ignorante por conta própria. Bolsonaro, que se graduou em ciência
lendo a bula da cloroquina, demora a notar que a doença do ignorante é ignorar
a sua própria ignorância. O capitão dá de ombros para uma singela evidência
médica: quanto menor for a adesão ao isolamento, maior será o número de
cadáveres. E sapateia sobre o luto nacional, dizendo que os jornalistas é que
são idiotas!
Bolsonaro parece não perceber, mas os brasileiros que
se dão ao respeito já não o levam a sério. Não é que o churrasco seja falso, o
problema é que o próprio Bolsonaro se converteu num presidente fake, um presidente
hipotético acha que personifica a nova política, se orgulha de defender a volta
à normalidade e cultua um versículo do Evangelho de João: "Conhecereis
a verdade, e a verdade vos libertará".
"Vou sair em 1º de janeiro de 2027", disse Jair Bolsonaro, em timbre resoluto, a um homem
que ousou pronunciar uma frase incomum no cercadinho do Alvorada: "A
democracia pede sua renúncia ou impeachment." A resposta do capitão
revela que ele continua dando de barato que será reeleito em 2022. Será? Segundo
o mais
novo líder de sua tropa de choque, pitbull de aluguel e mensaleiro condenado
Roberto Jefferson, “O Bolsonaro vai para o braço do povo, porque
o ministro Marco Aurélio Mello, com apoio do plenário do STF, manietou o
presidente e disse que o papel dele nessa crise de saúde que o Brasil atravessa
é meramente colocar dinheiro nos estados e municípios”.
Bolsonaro condenou-se a fazer campanha eleitoral num
lugar inóspito. Nem palanques nem redes sociais. Pedirá votos em 2022 ao lado
da pilha de cadáveres de 2020. Afora os nomes óbvios de sempre, há ainda muitas
dúvidas sobre a lista de candidatos. Haverá governadores no rol de postulantes?
A imagem de Sergio Moro sobreviverá aos ataques da milícia virtual do
bolsonarismo? Luciano Huck levará a cara à vitrine? O vírus tornou a
disputa mais, digamos, aberta.
O presidente real promove uma orgia com o centrão no
escurinho do Planalto, ignora a anormalidade do vírus assassino e escancara a
única verdade disponível no governo: não importa a quantidade de cadáveres, Bolsonaro
não consegue se libertar de sua mediocridade.
Não é que a aliança com o rebotalho deixe Bolsonaro
diferente. A questão é que ele volta a ser quem era antes do teatro de 2018. O
capitão já passou por sete partidos políticos. Entre eles o PP de prontuários
notórios como Paulo Maluf, Arthur Lira e Ciro Nogueira — legenda
com a qual se reencontra agora. Na fase de composição da chapa, buscou uma
aliança com o PR de Valdemar Costa Neto, agora rebatizado de PL.
Mas o ex-presidiário mensaleiro preferiu Alckmin, e o capitão passou a
cuspir no prato em que Valdemar não permitiu que ele comesse.
O processo eleitoral vai perdendo gradativamente a aparência
que Bolsonaro tentava dar à disputa, tratada por ele como mera formalidade
para renovar o mandato de um mito.
Quando um governo precário se prolonga por muito tempo, o
humor adquire vida própria. Deixa de ser coisa exclusiva dos profissionais do
ramo. E se torna negro. Com seu "churrasco fake", Bolsonaro
carbonizou a si mesmo. Virou piada de mau gosto. Gosto de carvão.
Com Josias de Souza