quarta-feira, 27 de maio de 2020

CADA QUAL ESCOLHE O CAMINHO QUE O LEVARÁ AO INFERNO

Na última segunda-feira, Bolsonaro afirmou por meio de nota que "nunca interferiu nos trabalhos da Polícia Federal". Segundo ele, acusações nesse sentido são “levianas”. No mesmo dia, fez uma visita ao procurador-geral Augusto Aras, a pretexto de prestigiar o recém empossado procurador federal Carlos Alberto Vilhena. Como se vê, nada do que o capitão diz ou faz pode ser compreendido se analisado pelo viés da lógica.

Observação: Em atenção quem acaba de chegar de Marte, cumpre salientar que a decisão de denunciar, ou não, o capitão das trevas pelos crimes que são objeto do inquérito aberto no STF pelo ministro Celso de Mello está nas mãos do procurador-geral Augusto Aras.

O presidente adota em relação às autoridades que cuidam do inquérito em que é acusado de interferir politicamente na PF dois comportamentos, ambos inadequados. 1) põe em dúvida a imparcialidade do Supremo; 2) estimula as dúvidas sobre a parcialidade da PGR.

Em relação ao STF, o chefe do Executivo questiona a isenção do ministro Celso de Mello de um modo que lhe é conveniente; em relação à PGR, coloca a independência de Augusto Aras em xeque ao se comportar de maneira inconveniente.

Bolsonaro afirma que o ministro Celso de Mello cometeu crime de abuso de autoridade ao divulgar todo o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Sem citar nominalmente o magistrado, o capitão borrifou na atmosfera a insinuação e reproduziu artigo 28 da lei 13.869, de 2019: "Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado: pena - detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos

No domingo, antes de deixar o Alvorada para mais uma de suas pedaladas sanitárias semanais, publicou Twitter um post fustigando o magistrado. Segundo outro ministro do STF, essa bala perdida vai atingir toda a Corte. "Ou o presidente Bolsonaro está juridicamente mal assessorado, ou decidiu transformar inquérito em palanque, o que não me parece aconselhável."

Bolsonaro deveria manifestar sua discordância com os despachos de Mello por meio de recursos judiciais, não das redes sociais. Quanto à PGR, deveria ter a sensibilidade de compreender a delicadeza do momento e evitar demonstrações de intimidade com Augusto Aras.

Dono de uma retórica escorregadia, o PGR dá sempre a impressão de ser a favor de tudo ou absolutamente contra qualquer coisa, desde que o futuro da sua carreira não fique comprometido. Suas palavras mais valiosas costumam soar depois de conjunções adversativas como "mas", "porém", "contudo". Ao empossar o procurador Vilhena na chefia da área de Direitos do Cidadão, Aras disse que a República é composta de "entes autônomos", que devem agir "com independência, mas, acima de tudo, com harmonia para que a independência não se transforme no caos". Nada pode ser mais caótico nesse momento do que o excesso de intimidade. Quando se convidou para ir à Procuradoria, Bolsonaro ouviu de Aras que seria aguardado "com a alegria de sempre". Essa cenografia reforça uma das peculiaridades mais deletérias do Poder.

Ao comentar o petardo que Bolsonaro lançou contra o decano do Supremo, um colega de toga disse que o presidente comete três erros num único movimento: 1) Esgrime uma tese jurídica precária; 2) Ecoa o ministro Abraham Weintraub (Deseducação) na ideia de prender ministros do Supremo; e 3) Unifica a Corte contra si. Quer dizer: ao levar Celso de Mello à alça de mira, Bolsonaro exerce em toda sua plenitude o direito de ladrilhar seu próprio caminho para o inferno.

No cerimonial do Poder, a integridade faz requerimento, marca hora, e espera na antessala. A complacência vai pelo atalho da intimidade, passa pelo portão lateral, sobe pelo elevador privativo, e encontra a porta sempre aberta. É por conta dessas deturpações que o Planalto trata o arquivamento do inquérito contra Bolsonaro como jogo jogado.

Com Josias de Souza