quarta-feira, 13 de maio de 2020

E DÁ-LHE, CAPITÃO!



O noticiário deste início de semana constrange os brasileiros com dois fatos que não deveriam acontecer simultaneamente: a fila de depoentes ilustres do inquérito sobre a interferência do presidente da República na PF e a pilha de corpos do coronavírus. Os observadores do futuro — se houver futuro — ficarão fascinados com o relato de fatos extraordinários que aconteceram com pessoas ordinárias — em todos os sentidos.

Para barrar eventual denúncia da PGR ou processo de impeachment, Bolsonaro se aliou ao que há de pior na política nacional — e que ele tanto repudiou durante a campanha. No melhor estilo toma lá, dá cá, negocia o apoio das marafonas do Centrão — parlamentares fisiologistas, que alugam seus favores a quem se dispõe a pagar por eles como fazem prostitutas nas zonas de baixo meretrício, mas o detalhe é que estas cumprem sua parte no trato, ao passo que os políticos venais nem sempre o fazem. Enfim, com parte do Congresso seduzida pela oferta de cargos e a oposição brigando entre si, o general da banda mira no STF — é quase unanimidade entre ministros olavistas, assessores ideologistas e seu triunvirato de pimpolhos que o Supremo “é o inimigo a ser eliminado”. Será uma batalha perdida ou uma vitória de Pirro, dependendo de diversas variáveis.

Ontem foi exibido ao decano Celso de Mello (e distintos convidados) o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. O ex-ministro da Justiça, que madrugou na fila para assistir à avant-première, afirma que a gravação mostrará que Bolsonaro pediu publicamente a cabeça de Maurício Valeixo da direção-geral da PF e a nomeação de um delegado mais afinado, como Alexandre Ramagem, e o ameaçou de demissão, caso não fosse atendido. Sabe-se agora que foi exatamente isso que aconteceu, ainda que apoiadores de um e de outro venham torturando os fatos para encaixá-los em suas versões.

Também depuseram ontem os ministros militares Augusto Heleno (GSI), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), que participaram da tal reunião e, portanto, poderia confirmar — ou não — a versão de Moro. Eles foram arrolados, pela defesa de Moro, como testemunhas das ameaças proferidas pelo presidente. A convocação colocou-os numa saia justa: se o ex-ministro disse a verdade e eles o confirmassem, estariam sendo desleais com o chefe e tornando a denúncia quase inevitável. Se o desmentissem e, mais adiante, ficasse provado que mentiram, teriam sido coniventes com e poderiam ser processados. Se calassem, estariam admitindo que o presidente é culpado.

Ontem à noite, os noticiários divulgaram trechos dos depoimentos. Pelo que se pode ver, um dos depoentes foi mais evasivo, outro mais assertivo, e o terceiro pareceu ter problemas de memória. Mas nenhum deles disse com todas as letras que o presidente cometeu qualquer crime (até porque não lhes caberia fazer esse tipo de julgamento), nem que Moro mentiu. Ou "não se lembrava" de determinados detalhes da reunião, de modo que não poderia confirmar ou negar, ou se lembrava, mas achou, então, que a intenção do presidente era essa ou aquela (à testemunha não compete emitir opiniões, a menos que isso lhe seja expressamente solicitado; do contrário, ela deve se ater aos fatos).

Agora pela manhã eu obtive uma cópia dos depoimentos, que foi publicada mais cedo no site Poder 360. Mas é bom lembrar que uma imagem vale por mil palavras. Quando e se a gravação da reunião for divulgada, teremos uma ideia melhor do que realmente se passou. Por enquanto, leia os depoimentos dos generais e tire suas próprias conclusões:

Augusto Heleno (3 MB);
Braga Netto (1,6 MB);
Luiz Eduardo Ramos (1,5 MB).
Observações:

1 - No pronunciamento em resposta a Moro, Bolsonaro assumiu que determinou à PF que interrogasse o assassino de Marielle Franco, e que teve acesso ao relatório resultante. Salvo melhor juízo, isso representa uma admissão de culpa e, quando os investigadores descobrirem como a interferência se deu, a denúncia será quase inevitável.

2 - Curioso reparar como o vício de cachimbo entorta a boca. Por terem convivido com a hierarquia militar durante anos de caserna, os generais estão mais habituados aos rapapés da soldadesca do que com o jargão jurídico. Tanto é que ficaram “indignados” com os termos usados pelo decano do STF na convocação (debaixo de vara), embora não houvesse razão para isso: as divisões do poder judiciário são denominadas “varas”, e a expressão “conduzido debaixo de vara” significa apenas “forçado pela autoridade judicial”.

Nenhum dos generais — nem qualquer outro integrante da alta cúpula palaciana — deu um pio em defesa do STF quando bolsonaristas fanáticos se reuniram defronte a casa do ministro Alexandre de Moraes e despejaram um caminhão de impropérios e ameaças contra o magistrado (dois já foram identificados e indiciados). E o mesmo aconteceu (ou não aconteceu) quando uma deputada bolsonarista metida a boba-da-corte acusou levianamente o togado de ser ligado ao PCC, e quando o luminar que chefia a pasta da Educação referiu-se de forma pouco polida (para dizer o mínimo) às mães dos onze ministros supremos (na tal reunião ministerial cujo filme pode virar blockbuster e ser indicado para Oscar).

Ao justificar seu desembarque do governo, Moro apontou o interesse do presidente em dois inquéritos em curso no STF, ambos sob a pena do ministro Alexandre. O primeiro investiga supostas ofensas aos ministros e parece ter encontrado digitais do pitbull do papai (falo de Carluxo). O segundo apura o suposto envolvimento de deputados bolsonaristas e assessores palacianos nas manifestações subversivas que o capitão apoiou entusiasticamente em duas ocasiões recentes. Isso sem mencionar o folclórico “Caso Queiroz”, que bafeja no cangote do filho 01 e pode respingar no papai.

Bolsonaro tem um caminhão de problemas, entre os quais o aumento exponencial no número de mortes por Covid-19 e a postura de barata-tonta de Nelson Teich — que está há um mês no cargo e ainda não mostrou a que veio, mas não conseguiu disfarçar seu constrangimento ao descobrir pela imprensa que seu chefe havia incluído novas categorias profissionais na lista de atividades essenciais sem tê-lo consultado (e, pelo visto, sem ter tido a delicadeza de informá-lo a respeito). Daí o cheiro de fritura que se sente no ministério da Saúde.

Mestre em criar crises e incapaz de desfazê-las, Bolsonaro mantem sua linha de produção a todo vapor, na esperança de que as novas bolsonarices desviem a atenção das anteriores. Nas últimas semanas, participou de dois comícios subversivos, deu declarações golpistas, afirmou que as Forças Armadas o apoiam, revogou a nomeação de Ramagem e depois quis recorrer da decisão do Supremo (quando já era tarde, pois a “desnomeação” resultou na perda de objeto da ação). Também plantou Folhagem na floreira onde não pôde ter Ramagem, e arrancou pela raiz o superintendente da PF no Rio — estopim do imbróglio com Moro —, cavando ainda mais fundo o buraco em que se meteu: como não poderia deixar de ser, a decisão foi interpretada como confirmação da denúncia do ex-ministro. Ao final, mostrando-se mais destemperado que de costume, o capitão chegou mesmo a mandar jornalistas calarem a boca.

Conforme o desgaste aumenta, a popularidade cai, o preço do apoio do Centrão sobe e fica mais difícil barrar o impeachment. É o reprise de um filme que já vimos com Collor e com Dilma e cujo final todos conhecemos. A diferença é que Bolsonaro tem uma fieira de generais a quem trata como o sapo da anedota — que não percebe a temperatura da água subindo e morre cozido. Ao se envolverem nas confusões do chefe, os ministros estrelados correm o risco de serem arrastados com ele para o olho do furacão, daí suas respostas evasivas ou pouco assertivas nos depoimentos que prestaram na trade de ontem.

Por último, mas não menos importante: o decano do Supremo e o ministro Marco Aurélio devem pendurar as togas em 1º de novembro de 2020 e em 12 de julho de 2021, respectivamente. Bolsonaro já deixou claro que que nomear alguém que se disponha a lamber suas botas e puxar seu saco, mesmo depois de confirmados pelo Senado, quando então a vitaliciedade do cargo os desobriga desses salamaleques. Moro, que foi cogitado para a vaga do decano, agora é carta fora do baralho, e os candidatos mais prováveis são Augusto Aras — atual procurador-geral e a quem compete decidir se indicia ou não o presidente nesse imbróglio sobre interferência indevida na PF — e André Mendonça, atual ministro da Justiça. 

Aras parece levar jeito, pois age como advogado do presidente — ele recorreu ao relator do inquérito “Moro x Bolsonaro” para que o fatídico vídeo da já folclórica reunião não seja transcrito e divulgado na íntegra. Segundo o procurador, eventual confirmação de trechos da reunião com informações sobre países como a China pode pôr em risco a “soberania nacional”, razão pela qual defende que a transcrição se limite aos diálogos entre Moro e Bolsonaro.

Fato é que o IBOVESPA virou para queda depois que o advogado de Moro publicou nota afirmando que o vídeo confirmou o relato do ex-ministro. O site O Antagonista classificou o vídeo de “devastador”, a exemplo do site de O Globo, segundo o qual três fontes não identificadas confirmaram que Bolsonaro disse precisar “saber das coisas” que estavam ocorrendo na PF do Rio. Em outro momento, o ele teria dito que as investigações não poderiam prejudicar sua família ou amigos.

Com informações do Blog da Andréia Sadi.