Não sei o que está mais difícil de aturar: se a quarentena — que, pelo visto, deve durar até o final dos tempos; se o noticiário, que atualiza frame a frame o número de infectados e mortos pela Covid-19; se o patético jus sperniandi do napoleão de hospício, que em sua maneira tradicionalmente tosca e canhestra tenta explicar o inexplicável e justificar o injustificável.
Igualmente desconcertantes, ainda que em menor medida, o contorcionismo dos ministros generais para não faltar com com a verdade e, ao mesmo tempo, evitar incriminar um capitão que, ironicamente, acontece de ser seu comandante em chefe.
Acrescente-se a essa pândega um ministério da Saúde acéfalo, um médico songamonga em avançado processo de fritura (*) e um inquérito envolvendo uma guerra de narrativas que serve apenas para acirrar os ânimos e fomentar a dicotomia. Quando por mais não seja, bastaria tornar pública a gravação da fatídica reunião ministerial de 22 de abril para pôr um ponto final nessa história.
(*) Bola cantada, bola encaçapada: Menos de um mês depois de substituir Mandetta no comando do Ministério da Saúde, o oncologista Nelson Teich — que na cerimônia de posse disse estar alinhadíssimo com Bolsonaro — pediu demissão na manhã desta sexta-feira. A live do presidente na véspera, marcada por ataques gratuitos ao ministro e a seu trabalho, e a ingerência no ministério, coroada pelo decreto que incluiu cabeleireiros, barbeiros e academias de ginástica à lista das atividades "essenciais", foram a gota que fez o copo transbordar. O médico deixou o ministério na noite de ontem disposto a seguir no governo, e pavimentava o caminho para tentar reduzir a tensão, mas as palavras do general da banda na internet deixaram evidente que ele já não fazia questão de preservar seu soldado no front de batalha. A demissão pegou de surpresa até mesmo os auxiliares que vinham tentando auxiliar o ora ex-ministro no gerenciamento da crise. Bolsonaro chegou a convidar o número dois da pasta, o general Eduardo Pazuello, para assumir o posto, caso Teich se demitisse. Mas Osmar Terra — esse, sim, alinhadíssimo com o capitão sem luz no que tange ao afrouxamento da quarentena e ao uso da cloroquina — também é um forte candidato. Faças suas apostas.
Vivemos num país em que políticos se elegem para roubar, roubam para se reeleger e escrevem leis em causa própria e para favorecer seus bandidos de estimação. Aqui, a raposa é pilhada na porta do galinheiro, com as penas da galinha grudadas no focinho, mas considerada inocente até que regurgite a ave, devolva-lhe a vida e torne a comê-la, desta vez dentro do galinheiro e sob as vistas "imparciais" das corujas supremas, que só enxergam o que lhes convém e quando lhes convém.
A estratégia do ex-ministro Sergio Moro nunca foi a de simplesmente
apontar o
caminho das provas no inquérito, mas, principalmente, de tornar pública a
forma incauta como seu ex-chefe insistiu na troca de peças-chave no comando da
PF. Na última quarta-feira, seus advogados afirmaram que a divulgação
integral do vídeo da reunião ministerial “trará à luz
inquietantes declarações de tom autoritário inviáveis de permanecerem nas
sombras” e que “caracterizará
verdadeira lição cívica”. O que vai ao encontro do que eu disse linhas atrás.
Ao dizer em seu depoimento à PF que não apontou crime contra
o presidente, e que esse juízo caberá às “instituições competentes”, Moro
se defendeu, mas, em seguida, contra-atacou: “que o
declarante [Moro] gostaria de sintetizar as provas que pode indicar a respeito
do seu relato; [como] as declarações do Presidente no dia 22 de abril de 2020,
na reunião com o conselho de ministros, e que devem ter sido gravadas como é de
praxe”.
Na avaliação de investigadores
da PF e de procuradores do MPF, a vinculação entre a troca na superintendência da instituição do Rio e
a proteção à primeira-família pode dificultar bastante o arquivamento da investigação. Resta saber se o PGR resistirá à tentação de se desviar do caminho da denúncia se o alvo da denúncia tenta desviá-lo desse caminho, balançando na ponta de uma vara, diante de
seu nariz, a sedutora cenoura da vaga de Celso de Mello no STF.
Mesmo que o procurador entenda que não houve crime na postura
do capitão e defenda o arquivamento do inquérito, a divulgação do vídeo, defendida por Moro, permitirá que qualquer cidadão submeta as evidências ao presidente da Câmara na forma de mais um pedido de impeachment. Há quem diga que o arquivamento da denúncia esvaziaria o processo no Legislativo, mas não é isso que mostra a história recente (vide o impeachment
do caçador de marajás de araque, em 1992).
Para o colunista de Veja Thomas
Traumann, o capitão pode enfrentar uma tempestade perfeita: a crise moral pela pandemia e a postura
negacionista responsável em parte pela propagação da doença, a crise econômica
causada pelo fechamento do comércio para combater o vírus e, finalmente, a
política, agravada pelas denúncias de Moro. E de acordo com o também colunista de Veja Matheus Leitão,
um importante ator e jurista brasileiro avalia que parte dos apoiadores do
presidente pode debandar ao ver, na gravação da reunião, a forma torpe como
o capitão e alguns de seus ministros se comportaram, sem falar na obviedade ululante da ingerência na PF, que somente um cego não vê que era impedir investigações contra rebentos e aliados.
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