Antes de qualquer outra coisa, uma introdução desnecessária, mas
oportuna (não se preocupe em ferir suscetibilidades pulando esse trecho, até
porque eu não tenho como saber se você leu ou não).
Há cerca de 15 anos, depois de meses trabalhando no projeto de um livro sobre hardware, resolvi sepultá-lo. Não havia como conciliar a elaboração de um tratado de mais de 300 páginas e a “linha de produção” de
artigos sobre TI que eu publicava na mídia impressa, naquela época, e que tinham
prioridade, pois ajudavam a pagar as contas. Mas o "xis" da questão era a velocidade com que a evolução tecnológica substituía produtos de ponta por outros ainda mais avançados.
Eu havia criado um esboço que previa uma introdução contemplando a evolução do computador desde a criação do ábaco, há 5 mil anos, e a história do sistema operacional Windows, que se confunde, em grande medida, com a da Microsoft. Uma vez concluída essa parte, era só tocar o resto adiante. Mas esse "resto" previa um capítulo para cada componente de hardware (placa-mãe, processador, memórias, disco rígido, monitor e outros periféricos etc.), e conforme eu terminava de escrever um capítulo, os anteriores já clamavam por atualizações. Até que um belo dia eu resolvi que não tinha vocação para Penélope, e preferi abortar o livro a parir um natimorto.
Eu havia criado um esboço que previa uma introdução contemplando a evolução do computador desde a criação do ábaco, há 5 mil anos, e a história do sistema operacional Windows, que se confunde, em grande medida, com a da Microsoft. Uma vez concluída essa parte, era só tocar o resto adiante. Mas esse "resto" previa um capítulo para cada componente de hardware (placa-mãe, processador, memórias, disco rígido, monitor e outros periféricos etc.), e conforme eu terminava de escrever um capítulo, os anteriores já clamavam por atualizações. Até que um belo dia eu resolvi que não tinha vocação para Penélope
Esse episódio me veio à lembrança há poucos dias, quando encontrei alguns esboços do finado projeto (que eu havia imprimido por qualquer motivo e achava que havia descartado em algum momento). Aí bateu uma curiosa sensação de déjà-vu:
guardadas as devidas proporções, a mesma necessidade de atualização ad perpetuam que me fez desistir do livro volta a me assombrar nas postagens de política, porque o cenário muda tão rapidamente
quanto imagens num caleidoscópio — ou, parafraseando o velho Magalhães Pinto:
“política
é como nuvem; você olha e ela está de um jeito, você olha de novo e ela já
mudou”.
Do final da tarde (horário em que geralmente concluo meus posts) até a zero hora do dia seguinte (horário no qual eles são publicados), o risco de o cenário mudar e a postagem se tornar matéria vencida ou, literalmente, “jornal de ontem” é cada vez maior. E falando em ontem (no caso, anteontem, porque hoje é sábado,
mas este post foi escrito na tarde da sexta-feira), a visita extemporânea do atual inquilino do Palácio do Planalto
ao atual inquilino do gabinete da presidência do STF causou
surpresa, constrangimento e desagrado, dependendo de para quem você
pergunta.
Só defenderam a marcha do general da banda sobre o Supremo (tudo
bem, agora eu exagerei) os bolsomínions e os comentaristas de extrema direita —
que, de tão à direita, às vezes caem da borda do planeta, que, como sabemos, é
plano. Cá entre nós, o fanatismo dessa caterva está pior que o dos
esquerdopatas, e olha que eu achei que não viveria para ver uma coisa dessas.
Após ter dito que não
pode passar por cima do Supremo — referindo-se à decisão que deu
autonomia para estados e municípios estabelecerem restrições à circulação e ao
comércio —, nosso indômito capitão atravessou a pé a Praça dos Três Poderes. Com ele, marcharam o onipresente filho zero um (um obelisco à lisura no
desempenho de funções parlamentares), empresários dos setores têxtil,
farmacêutico, de produção de cimento, automóveis, energia, cimento, máquinas e
calçados, entre outros, e os ministros da Casa Civil, da Defesa, e da Economia.
Oficialmente, o propósito era sensibilizar
os togados com a situação precária que a Economia enfrenta devido às medidas de isolamento, que já duram quase dois meses.
Paulo Guedes, a certa altura da efeméride que classificou de “visita de cortesia”,
disse que o Brasil corre o risco de se “transformar numa
Venezuela” (do ponto de vista da economia, não da política, como ele fez questão
de frisar). Em outro momento, o superministro comparou a economia a um paciente na UTI
com sinais vitais estáveis, mas fadado a acabar no cemitério (se as medidas
restritivas de isolamento social não forem afrouxadas).
A analogia se aplica ao próprio Guedes, que Bolsonaro
ora frita, ora adula. No final de semana que sucedeu ao desembarque de Moro, correu um zunzunzum de que Guedes seria o próximo a cair, e o
presidente encenou uma coletiva de imprensa — com o primeiro escalão do
Executivo servindo de pano de fundo — para dizer que “O
homem que decide economia no Brasil é um só, e chama-se Paulo Guedes”.
Pois
bem, na última quarta-feira o líder do governo na Câmara disse que “foi
uma determinação do presidente da República, cumprida pelo líder do governo; eu
sou líder do governo, não de qualquer ministério, referindo-se ao
destaque do PDT no âmbito do projeto de socorro a estados e municípios,
que reduziu a economia de R$ 130 bilhões para R$ 43 bilhões. Com
amigos assim, quem precisa de inimigos?
A mesma analogia se aplica também ao próprio Jair Bolsonaro,
cujo governo cambeta pode evoluir da UTI para o cemitério se Rodrigo
Maia der andamento a um dos mais de 30 pedidos de impeachment que estão
sobre sua mesa, ou dependendo de qual for o desfecho do inquérito aberto pela PGR,
com autorização do ministro Celso de Mello, sobre a tentativa
de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, com base nas “denúncias”
do ex-ministro Sérgio Moro.
Voltando à “visita midiática” do presidente e companhia a
nossa mais alta Corte, togados ouvidos por Josias de Souza utilizaram
termos como “presepada”, “molecagem” e “pegadinha” para qualificar o cirquinho
encenado pelo capitão das trevas. O pretexto da visita, conforme eu mencionei parágrafos atrás, foi o de informar ao Supremo que a política de
isolamento social adotada na crise sanitária empurra as empresas para o
colapso.
"Se estivesse na presidência do Supremo, não sairia da minha
casa para uma presepada dessas", disse um dos ministros, que foi
ecoado por um colega: "O que o presidente fez pode ser classificado
como uma molecagem. Ele tenta transferir para o Supremo uma responsabilidade
que é dele." Um terceiro magistrado avalia que "Toffoli foi
vítima de uma pegadinha". Ele esmiuçou o raciocínio: "O
presidente da República pediu para ser recebido. Por civilidade, o Toffoli
concordou. De repente, o presidente do Supremo viu-se no centro de uma
transmissão ao vivo, ouvindo queixas sobre um problema que cabe ao Executivo
gerenciar, não ao Judiciário. Isso não é sério."
Os três ministros concordaram em dois pontos: 1) Bolsonaro
agiu com o intuito deliberado de transferir para o Supremo a responsabilidade
pelos efeitos econômicos da crise sanitária —exatamente como faz com
governadores e prefeitos; 2) o Supremo não eximiu Bolsonaro de
responsabilidades ao reconhecer no mês passado, em decisão unânime, que estados
e municípios têm poderes para tomar providências como o isolamento social e o
fechamento do comércio durante a pandemia.
O próprio Toffoli exortou Bolsonaro a coordenar o gerenciamento da crise a partir de
Brasília, "chamando os outros Poderes, chamando os estados,
representantes de municípios." Insinuou que talvez seja necessário
compor "um comitê de crise" para discutir a volta ao trabalho —
coisa que, aliás, já deveria ter sido feita há muito tempo, mas Brasilia é a Ilha da Fantasia e os eminentes togados vivem numa bolha, muito além
da realidade da plebe ignara, dos mortais comuns.
Observação: Suas excelências percebem salários de R$
39.293, fora os penduricalhos, gozam férias (ou melhor, “entram em
recesso”, que é mais chique) duas vezes ao ano, fruem de um sem-número de
mordomias (lagosta, vinhos premiados etc.) e contam com 223 vassalos cada um —
o número de funcionários da Corte varia conforme o mês, mas nunca fica abaixo
de 2.450. Em 2016, esse séquito faraônico consumiu mais de meio
bilhão de reais — as informações são do site políticos.org.br;
se alguém achar que isso é fake news, que processe o site, não a mim.
Dois dos ministros avaliaram que Toffoli não foi
suficientemente enfático nas suas intervenções. "Deveria ter dito
claramente que os visitantes estavam no lugar errado", disse um deles.
E o outro: "É preciso esclarecer, de uma vez por todas, que o Supremo
não age senão quando provocado. E as matérias relacionadas à crise sanitária só
chegam a nós porque viraram um problema. O presidente da República precisa
perguntar a si mesmo se deseja ser parte do problema ou se prefere ser parte da
solução."
Resumo da ópera: Bolsonaro decidiu se queixar ao
bispo. Na falta de uma batina, foi ao encontro da toga na marcha cenográfica desta quinta-feira. A resposta do
bispo, digo, de Toffoli, em palavra mais elegantes, foi: “Vire-se”. No
que cabe razão ao ministro, pois é da competência do Poder Executivo inaugurar
um comitê de crise e negociar uma solução com governadores e prefeitos; se o chefe
de turno é incompetente, aí já são outros quinhentos...
Na saída, numa entrevista improvisada, o superministro Paulo
Guedes despejou sobre os microfones um tema que deixou a cena ainda mais
surreal. Disse ter pedido a Bolsonaro o veto do trecho do projeto de
socorro a estados e municípios que livrou várias corporações de servidores
públicos do congelamento de salários — que, como dito parágrafos atrás, foi
aprovado com o apoio do próprio Bolsonaro. Mas ali, ao lado do ministro,
o capitão prometeu vetar aquilo que mandou aprovar.
Para completar a irracionalidade, faltou um personagem à
pantomima de Brasília. Não ocorreu ao presidente chamar para a pajelança o
ministro da Saúde, Nelson Teich. O mesmo que, na véspera, ao falar sobre
o recorde de mortos do coronavírus, admitiu que o lockdown, mais draconiano do que o isolamento social,
pode ser necessário em algumas localidades. Ou seja: Bolsonaro revela-se
capaz de tudo, menos de presidir uma saída planejada da crise. O país precisa
conhecer o Plano Bolsonaro de volta à hipotética normalidade.
Para fechar com chave dourada (que o dólar está nas alturas
e o ouro não lhe fica atrás), o capitão da caverna das trevas programou para
este sábado um churrasco, uma aglomeração gourmet para 30 convidados. "Estou cometendo um
crime", disse o presidente aos repórteres, entre risos, no cercadinho
do Palácio da Alvorada. "Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa.
Vamos bater um papo, quem sabe uma 'peladinha'. Alguns ministros, alguns
servidores mais humildes que estão do meu lado."
A melhor novidade proveniente do governo desde que o vírus
fugiu ao controle foi a notícia de que a taxa de insensibilidade do presidente
não aumentou. Continua nos mesmos 100%. Bolsonaro se queixa da paralisia do país, mas há um empreendimento que prospera no Planalto: a indústria do
descaso. Tomado pelo alheamento, o “mito” exibe as feições de um ex-presidente
no exercício da Presidência. Ele não governa a crise que apavora o Brasil.
Preside um país qualquer situado no Mundo da Lua.
Para encerrar (agora a sério), uma boa notícia em meio ao
festival de desgraças a que vimos assistindo nos últimos tempos: Por
unanimidade de votos, a 8º Turma do TRF-4 rejeitou, na última quarta-feira,
os embargos protelatórios, digo, os embargos declaratórios apresentados pela
defesa de Lula no processo sobre o sítio em Atibaia, e manteve
a condenação do criminoso a 17 anos de prisão.