sexta-feira, 8 de maio de 2020

SEGREDO ENTRE TRÊS, SÓ MATANDO DOIS. SE VOCÊ PRECISA DE ALGUÉM EM QUEM CONFIAR, CONFIE EM SI MESMO



No âmbito jurídico, a expressão latina Periculum in mora remete ao perigo que envolve decisões tardias — ou, colocando de outra forma, adverte para a necessidade de o pedido ser julgado com urgência, de modo a evitar danos graves e de difícil reparação.

Sérgio Moro deixou o governo no dia 24 do mês passado. Na segunda-feira, 27, o ministro Celso de Mello determinou abertura de inquérito para investigar as supostas tentativas do presidente de interferir na Polícia Federal. A investigação foi deflagrada pela equipe montada na gestão do próprio Moro por Maurício Valeixo, exonerado por Bolsonaro do comando da PF. Antevendo possíveis mudanças à toque de caixa na estrutura do órgão, o decano reduziu de 60 dias para 5 dias o prazo para a oitiva de Moro, e a PF adiantou ainda mais o relógio: o ex-ministro da Justiça prestou depoimento no sábado passado.

Bolsonaro, no melhor estilo Lula (aliás, a condenação do criminoso de Garanhuns no processo do sítio de Atibaia foi confirmada anteontem, por decisão unânime da 8ª Turma do TRF-4), reclamou que a Justiça só é rápida quando age contra ele. No domingo, 3, discursou em apoio a manifestantes subversivos que pleiteavam a volta da ditadura, o fechamento do Congresso e do STF e a reedição do AI-5 — como havia feito no dia 19 do mês passado, também em apoio a atos subversivos em frente ao QG do Exército, quando bravateou: “Nós não vamos negociar nada. Temos de acabar com essa patifaria. Esses políticos têm de entender que estão submissos à vontade do povo brasileiroÉ o povo no poder”. Enquanto isso, oficiais do Exército tiravam selfies e sorriam para a multidão.

A conclusão inarredável dessa aleivosia é de que Bolsonaro se vale dessa estratégia (um tanto heterodoxa, para dizer o mínimo) visando: 1) manter sobre si os holofotes da mídia; 2) mandar ao mundo político o recado de que, no seu entendimento, a massa da população está com ele, e não com os deputados, senadores e magistrados, que pretende apostar no apoio da rua para enfrentar o inimigo, e que as Forças Armadas o apoiarão num improvável — mas não impossível — autogolpe.

Enquanto o mito discursava, o general Edson Pujol, comandante do Exército, falava da disposição dos militares em combater o vírus, mas nem ele nem qualquer outro fardado interferiu na manifestação. Claro que estamos numa democracia, que a Constituição garante o direito à livre expressão e que as Forças Armadas não podem impedir que as pessoas se manifestem, mas ninguém viu (pelo menos por enquanto) os militares assinarem proclamações de apoio aos presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ou aos ministros do STF. Se não podem contar com a devoção das Forças Armadas, muito menos é o povo nas ruas que vai salvar os políticos numa briga de verdade. Nem eles próprios acreditam nisso.

Como tudo que é ruim sempre pode piorar, o clima na política ficou ainda pior com a pandemia viral e a monumental crise econômica que ela trouxe a reboque. Até então, o conflito aberto, rancoroso e intransigente entre o chefe do Executivo e as chefias que dão o tom à atuação do Congresso Nacional já incomodava, e o Judiciário, no olho do furacão, não contava com a confiança de nenhuma das duas partes para mediar as pendengas (e menos ainda da população). Agora, a disputa ficou ainda mais perniciosa, e será tão ruim quanto o vírus se ela degenerar em guerra.

Tanto de um lado quanto do outro é possível que haja mais gente fazendo cena para a plateia do que operando a sério para virar a mesa, mas a situação jamais pareceu tão complicada como agora. A ver se isso é mais uma batalha de Itararé — a que nunca aconteceu — ou se a briga é pra valer.

Mudando de um ponto a outro, Bolsonaro não ouve a voz do bom senso ou segue conselhos ponderados de quem quer que seja, mas, sentindo no cangote o bafo quente do perigo, acabou dando ouvidos ao que lhe sopraram vozes da moderação e desistiu de divulgar a reunião que teve com Moro e outros ministros no dia 22 de abril. Antes do recuo, ele havia dito que mostraria a todos, com o vídeo, a maneira como tratava sua equipe — como se quisesse enfatizar — mais uma vez — que é ele quem manda e ponto final. Foi uma pena sua excelência ter recuado. Se cumprisse a promessa, teria juntado mais provas às que já produziu ao respostar o pronunciamento de Moro, quando deixou claro seu inconformismo com a recusa do então ministro em lhe fornecer relatórios sobre investigações em curso na PF. Não à toa, uma das provas de tentativa de interferência na PF fornecidas por Moro aos investigadores, por ocasião do depoimento no último sábado, foi justamente a gravação da tal conversa em que foi ameaçado de demissão caso não cedesse às investidas.

Dia sim, outro também, Bolsonaro intercala em sua insensatez rompantes de aparente lucidez. Se o fizesse uma única vez, poder-se-ia dizer que fora um simples ato falho. Se ocorresse uma vez ou outra, poder-se-ia classificar os episódios como simples coincidências. Mas quando a coisa se repete sucessivamente, de duas uma: ou é psicopatia, ou estratégia, ou as duas coisas.

A necessidade é a mãe da invenção e a incapacidade, o pai das solução estapafúrdias. Crises brotam espontaneamente, mas crescem assustadoramente se e quando as adubamos com o estrume da nossa inépcia. O capitão, diante de uma crise que não sabe resolver, cria outra para atrair o foco da mídia e da opinião pública, esquecendo-se que ninguém falar mais da crise anterior não significa necessariamente que ela foi extinta. Mas comparando, essa técnica e a mesma usada pelos mágicos de palco, que se cercam de assistentes bonitas e seminuas para para distrair a atenção da plateia enquanto ele faz o truque. Como ilusionismo, a estratégia funciona. No caso das crises, é preciso estar prevenido para sua volta, porque esqueletos no armário e eguns mal despachados sempre voltam a nos assombrar. Isso sem mencionar que a repetição ad nauseam desse estratagema, que já era incomodativo num passado nada remoto que ora chamamos de pré-pandemia, beira o insuportável no auge da crise que está levando o país para o buraco (literalmente).

Em março, Bolsonaro desconvocou a manifestação contra o Congresso e o Supremo que havia estimulado via WhatsApp, mas ela aconteceu mesmo assim e ele foi ao encontro dos manifestante, violando as recomendações de isolamento social recomendadas por seu ministro da Saúde (isso a despeito de mais de 20 integrantes da comissão que o acompanhara numa viagem aos EUA testaram positivo para o coronavírus). Semanas depois, discursou para uma multidão que clamava por intervenção militar com fechamento do Congresso e do Supremo e um novo AI-5 — que pressupõe, entre outras barbaridades, a censura à imprensa. Tudo isso na frente do QG do Exército, nas barbas dos fardados. No dia seguinte, teve o desplante de dizer que respeita o Judiciário e o Legislativo, e, como se não bastasse, a certo ponto do pronunciamento declarou candidamente: "Eu sou a Constituição”.

O Rei-Sol dos pobres emulou Luís XIV (a quem se atribui a frase "O Estado sou Eu"), mas o monarca francês viveu no século XVII e permaneceu no poder por 72 anos, enquanto seu dublê tupiniquim vive no século XXI, num país em que mesmo os presidentes que se imaginam reis têm prazo de validade. Com seu comportamento absolutista, o “mito” conspira contra a renovação do prazo do seu mandato, porque um número cada vez maior de pessoas não consegue enxergar a utilidade da sua Presidência. De quebra, arrisca-se o capitão a ter seu momento à Luís XV.

O sucessor de Luís XIV se notabilizou pela frase “depois de mim, o dilúvio”. E o dilúvio veio na forma da Revolução Francesa, que matou milhares de franceses e desaguou na ditadura de Bonaparte. Já a ditadura bolsonariana pode ser improvável, mas os mortos já estão garantidos.

P. S. Na manhã de ontem, Bolsonaro atravessou a pé a Praça dos Três Poderes levando a tiracolo o superministro Paulo Guedes, empresários e representantes do setor industrial. Foram todos ao STF para, numa reunião fora da agenda, marcada de última hora, pedir a Toffoli que as medidas restritivas nos Estados sejam amenizadas. Segundo informou o Blog do Camarotti, integrantes do STF consideraram o movimento improvisado do presidente como uma tentativa de constranger e dividir com o tribunal o ônus dos efeitos da pandemia do coronavírus. Mais adiante, veio-se a saber que a opinião geral foi de que sua excelência conseguiu desagradar a todos ao mesmo tempo. Noves fora os defensores atávicos de Bolsonaro, que interpretaram a visita midiática do capitão e sua trupe aos domínios do Maquiavel de Marília como uma forma de "sensibilizar o judiciário", não ouvi uma única opinião positiva sobre mais essa investida do presidente (que, durante o agradável bate-papo, brandiu a ameaça de assinar um decreto para ampliar a quantidade de atividades essenciais em meio à pandemia da Covid-19. Fato é que em casa onde falta pão todos gritam e ninguém tem razão.