sexta-feira, 29 de maio de 2020

QUER QUE EU FAÇA O QUÊ? FAZ UM OVO!


Por uma série de motivos que não vou detalhar neste momento (até porque seria chover no molhado), o Brasil se tornou o epicentro latino americano da pandemia de Covid-19 e já ocupa o segundo lugar no ranking mundial. Segundo dados da última quinta-feira, são 414.661 casos confirmados da doença, 166.647 pacientes recuperados e 25.697 óbitos.

Mesmo que a norma culta da língua abomine o uso de chavões, há situações em eles calçam tão bem quanto um chinelo velho num pé doente, o que os torna irresistíveis. É o caso da mais conhecida das “Leis de Murphy”, segundo a qual nada é tão ruim que não possa piorar. E com efeito.

Depois de bloquear parcialmente a malha viária da capital paulista e de implementar um mega rodízio de veículos, o prefeito Bruno Covas resolveu torturar o calendário gregoriano transformando o dia 20 de maio em 11 de junho (feriado de Corpus Christi) e o dia seguinte em 20 de novembro (dia da Consciência Negra).

Para não ficar atrás, o governador João Doria repetiu a dose na segunda-feira subsequente, 25 de maio, que passou a ser 9 de Julho (feriado comemorativo da Revolução Constitucionalista de 1932). O motivo que levou ambos a essa estultice era, obviamente, aumentar a adesão da população ao isolamento, mas o resultado, obviamente, ficou muito aquém do desejado.

Manda quem pode e obedece quem tem juízo, diz outro velho chavão. Ninguém tentou (ainda) antecipar o verão para o mês de junho — talvez porque as crises nas regiões Norte e Nordeste sugiram que o calor não dificulta a propagação do Sars-CoV-2. Por outro lado, o frio (que já deu o ar da graça por aqui, onde os termômetros registraram temperaturas abaixo dos 10º C nas últimas madrugadas) leva as pessoas a se agrupar em ambientes fechados. Isso sem mencionar que, com temperaturas mais baixas, os movimentos ciliares no pulmão diminuem, prejudicando remoção de impurezas, vírus e bactérias e, consequentemente, aumentando a incidência de doenças respiratórias — e o número de óbitos entre os infectados pelo coronavírus.

Mas a crise sanitária é "apenas" um dos nossos problemas. Igualmente preocupante é a recessão que se avizinha: a julgar pelo aumento do desemprego e pela projeção da queda do PIB (em torno de 4 pontos percentuais em 2020), a crise econômica tende a ser a maior da história recente. “Estamos no pior dos mundos: a adesão ao isolamento social é baixa e os negócios estão fechados. Não se têm nem os benefícios de um nem de outro”, afirma Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.

Para piorar o que já está bem ruim, ocupa a cabine de comando da Nau dos Insensatos um capitão considerado pelo jornal The Washington Post o pior dos líderes globais no combate à pandemia da Covid-19. E não sem razão: Bolsonaro nega desde o início a gravidade do problema (que qualificou de "gripezinha de nada") e não perde uma oportunidade sequer de conclamar as pessoas a voltarem às ruas.

Com um governo hesitante e desorganizado no combate à doença, a média de respeito à quarentena em território nacional vem caindo ao longo das semanas. Enquanto a maior parte do Brasil ainda caminha no escuro, sem saber quando poderá retornar à normalidade, alguns estados à beira do colapso no sistema de saúde têm sido obrigados a decretar o chamado lockdown — política que bloqueia e limita drasticamente o trânsito de pessoas e veículos e suspende atividades não essenciais.

Em São Paulo, epicentro da pandemia no país, o governador tornou obrigatório o uso de máscara em locais públicos e já alertou diversas vezes para a possibilidade de decretar o lockdown, o que, em considerando o número moradores em situação de rua e de favelas (ou comunidades, como quer a polícia do politicamente correto), provavelmente seria outro tiro no pé.

Fazer previsões de como estaríamos agora se essa ou aquela medida tivesse sido adotada meses atrás — como o cancelamento do carnaval, que muitos consideram um dos grandes responsáveis pelo desembarque do vírus no Brasil e, principalmente, por acelerar sua disseminação (por motivos cuja obviedade dispensa comentários) — não passa de mero e infrutífero exercício de futurologia do pretérito (mais detalhes nesta postagem).

Por outro lado, parece evidente que a entrada do Brasil nessa situação — em que todos perdem e ninguém ganha — deve-se sobretudo aos embates entre um presidente que prega a volta à normalidade, uma maioria de governadores que decretam quarentenas e dezenas de prefeitos que ora pendem para um lado, ora para o outro. Além, evidentemente, da gritante falta de educação e informação da população tupiniquim. Todavia, nada indica que a situação seria muito diferente (isso se não fosse pior) no caso de terem sido eleitos os adversários políticos dessa seleta confraria que hoje nos desgoverna.

Atribuir responsabilidades, a esta altura, é cretinice. Urge resolver os problemas. Mas o problema (mais um) é que o presidente Bolsonaro tanto é culpado por grande parte dos problemas quanto se torna parte ele próprio desses problemas ao criar cizânias com governadores ("Esse vírus trouxe uma certa histeria e alguns governadores, no meu entender, estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia"), dar caneladas no presidente da Câmara Federal e em ministros do STF, boladas nas costas de aliados, e por aí vai.

Observação: O caso de Sergio Moro (que Bolsonaro fritou que durante 16 meses) é emblemático, sem desmerecer os episódios envolvendo Henrique Mandetta (o capitão moveu montanhas para forçar a demissão do médico) e Nelson Teich (que, menos resiliente, pediu demissão antes mesmo de completar um mês no cargo). 

Duas trocas no comando na Saúde em pouco mais de três semanas — e isso em meio a uma pandemia viral de proporções épicas — só não é mais absurdo que deixar o Ministério acéfalo, sob a interinidade de um militar de alta patente que talvez seja expert em logística, mas não entende bulhufas de medicina. Dizendo de outra maneira, é como chamar um borracheiro para cuidar das unhas e uma manicure para consertar um pneu furado.

Em meio a tantos problemas, não existe uma definição sobre um novo titular para a pasta. Outros países fizeram trocas no comando da saúde por razões políticas pessoais ou de gestão, como Bolívia, Equador e Holanda. Mas a queda de dois ministros em curto espaço de tempo é uma triste exclusividade brasileira. Durante a maior tempestade sanitária dos últimos 100 anos, o país sofre com a falta de liderança e com os desmandos do presidente.

Quanto mais íngreme se torna a curva de contágio da Covid-19, mais o presidente sobe o tom das asnices e lustra os cascos das patas do coice. Quando o número de vítimas fatais ultrapassou a marca dos 5 mil, o desvairado posou para fotos num stand de tiro e reagiu à notícia com o sarcasmo habitual: “Vai morrer gente. E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. E esse é só um exemplo dentre muitos que eu poderia citar — mas não vou.

Na terça, 19, o mesmo dia em que o número de mortos por aqui ultrapassou a barreira dos 1.000 casos, Bolsonaro gastou tempo em uma live fazendo piada com uma rima forçada de cloroquina com tubaína. Ele ri — e a nação chora uma tragédia diária, sob os olhares surpresos e preocupados do mundo inteiro com a catástrofe que vem acontecendo por aqui. 

É de pequenino que se desentorta o pepino, diz outro velho chavão. No caso do capitão caverna, deixamos um câncer evoluir para metástase e tornar-se impossível de controlar senão mediante a extirpação dos órgãos atingidos e boa parte de seu entorno. Mas não há leito vago na clínica do Dr. Rodrigo Maia, e 35 pedidos de impeachment correm sério risco de morrer na fila por omissão de socorro. E recorrer ao Dr. Augusto Aras parece não fazer o menor sentido, já que interessa mais a esse douto senhor uma cadeira no "conselho de administração do nosocômio" do que fazer seu trabalho. Assim, o risco de o carcinoma crescer a ponto de se tornar inoperável fica maior a cada dia.

Em setembro do ano passado, logo depois de indicar Aras para o cargo, Bolsonaro comparou o procurador-geral à figura da rainha em um jogo de xadrez. A peça tem a maior capacidade de movimentação e, por isso, é, ao mesmo tempo, a mais potente arma de ataque aos adversários e o mais importante esteio de defesa do rei no tabuleiro. Antes da posse, Aras comentou com um amigo o tamanho da responsabilidade que estava prestes a assumir. “O PGR tem mais poder que o papa”, brincou. É fato. Um procurador negligente pode proteger amigos e perseguir adversários. Um procurador justiceiro pode fulminar carreiras e destruir a biografia de inocentes. Um procurador omisso pode favorecer criminosos. Oito meses depois da posse, Aras terá a oportunidade de mostrar que não é negligente, justiceiro nem omisso diante das bombas que estão sobre sua mesa. É apenas um PGR responsável e meticuloso.

Nesse entretempo, o inquérito das fake news, as investigações sobre o folclórico gabinete do ódio (que a deputada Joice Hasselmann havia cantado em prosa e verso, meses atrás, para parlamentares que se fizeram de moucos) e o imbróglio que teve como estopim a demissão do ex-ministro Sergio Moro vêm contribuindo para azedar o humor do general da banda.

Ontem, o ministro Fachin decidiu encaminhar para deliberação plenária o pedido de suspensão das investigações do inquérito das notícias falsas, feito pelo PGR após a deflagração de operação da PF para cumprir  29 mandados de busca e apreensão contra empresários, blogueiros e políticos aliados do presidente, supostamente vinculados a uma rede de disseminação fake news (o tal gabinete do ódio). O procedimento foi aberto em março por decisão monocrática de Dias Toffoli, sob a alegação de combater a veiculação de notícias que atingem a honorabilidade e a segurança da Corte, de seus membros e parentes.

Não é a primeira vez que a PGR defende fim das investigações. No ano passado, antes de deixar o comando da instituição, Raquel Dodge determinou o arquivamento do inquérito, mas decisão não foi aceita pelo ministro Alexandre de Moraes, que deu continuidade às investigações. O pedido de Aras foi feito no bojo de uma ação apresentada pela Rede Sustentabilidade, que questiona o inquérito e tem o ministro Fachin como relator.

Para Bolsonaro, que já estava irritado com Celso de Mello (por ter liberado o folclórico vídeo da reunião ministerial do dia 22 de março), a decisão de Alexandre de Moraes foi a gota: “Acabou, porra”, esbravejou o capitão, na porta do Palácio da Alvorada, depois de ter afirmado que "ordens absurdas não se cumprem".

O presidente da Câmara criticou as declarações do capitão sobre os ministros do STF e a operação da PF. Segundo Maia, isso “só cria um ambiente de maior radicalismo entre as instituições". O deputado também reprovou a declaração de Eduardo Bolsonaro sobre a necessidade de adoção de uma "medida enérgica" pelo pai: “A fala é muito ruim, muito grave, e vamos continuar trabalhando para que as instituições continuem trabalhando de forma independente e tentando ao máximo o diálogo e a harmonia”, disse. 

Sobre o pedido do Planalto para suspender o depoimento do ministro Abraham Weintraub à PF, Maia ponderou que as decisões dos poderes têm que ser respeitadas para que a democracia seja respeitada não apenas no país, mas internacionalmente, e que as decisões judiciais podem até ser contestadas e criticadas, mas que, se o recurso não for acatado, as determinações devem ser obedecidas.

Quando é cobrado a decidir sobre os mais de trinta pedidos de impeachment já apresentados contra Bolsonaro, o presidente da Câmara costuma dizer que pretende deixar como marcas de sua passagem pelo comando da Casa a moderação e a aprovação de uma agenda econômica prioritária para o país. A deflagração de uma guerra política, principalmente em meio à grave crise que o Brasil enfrenta, não estaria entre as suas prioridades. Evidentemente, sua ponderada posição não encerra apenas uma preocupação com o país, como Maia tanto faz questão de ressaltar. Ela traz também um cálculo político.

A moderação e a pauta econômica são as apostas do parlamentar para continuar se equilibrando como o principal interlocutor dos donos do dinheiro no Congresso mesmo quando ele deixar a presidência da Câmara. Mais: são suas apostas para figurar, pelo menos como vice, em alguma das chapas presidenciais de centro em 2022 — uma bela lição para quem acha que política é a arte de torcer pela desgraça alheia.

A ver que merda isso vai dar. Por enquanto, a única certeza que se tem é de que isso vai dar merda. Na atual conjuntura não dá para cantar a bola antes de ela cair na caçapa.