quinta-feira, 18 de junho de 2020

A CANOA VIROU


De “mau militar”, Bolsonaro passou a parlamentar medíocre: em quase 3 décadas no baixo clero da Câmara, ele aprovou míseros 2 projetos e obteve apenas 4 votos quando disputou a presidência da casa, em 2017. Se conseguiu se eleger Presidente, foi por uma formidável conjunção de fatores, a começar do baixíssimo nível dos concorrentes (salvo duas ou três honrosas exceções) e do flagrante despreparo do eleitorado. Mas também contribuíram (e muito) o articulador político Gustavo Bebianno, o publicitário Marcos Carvalho e o esfaqueador Adélio Bispo — cuja facada não só manteve Bolsonaro sob as luzes da ribalta como evitou que visse a público sua acachapante incompetência nos debates.

Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletam do Erário há décadas, foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada.

Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média, o deputado, adepto das práticas da baixa política e amigo de milicianos, foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada.

Para obter o apoio das Forças Armadas, o oficial de baixa patente despreparado, agressivo e falastrão, que foi suspenso dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e insubordinação, e enxotado da corporação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.

Eleito e empossado, o capitão publicou no Twitter um vídeo escatológico e indecente; debochou da primeira-dama da França; cancelou no último minuto uma reunião com o ministro de relações exteriores daquele país para... cortar o cabelo e gravar uma live desancando o presidente nacional da OAB; passou a agredir sistematicamente a imprensa e os presidentes dos outros Poderes.

"Envenenado" pelos primeiros-filhos — seguidores atávicos do ex-astrólogo e guru Olavo de Carvalho — o capitão sem luz demitiu (ou fez com que se demitissem) ministros do quilate de Bebianno, Floriano Peixoto, Santos CruzMandetta, Moro e Teich, rompeu com apoiadores de primeira hora (entre os quais Joice Hasselmann, Alexandre FrotaJanaína Paschoal) e, numa clara disputa por poder dinheiro do fundo partidário, desligou-se do oitavo partido a que foi filiado em seus 30 anos na política (PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e PSL).  

Fazendo pose de candidato antissistema, Bolsonaro convenceu o eleitorado de que governaria sem fazer concessões à velha oligarquia, de que não negociaria com o Centrão. Mas negociou. Prometeu que não entregaria estatais nem bancos públicos. Mas entregou. Jurou que não levaria ministérios ao balcão. Mas levou. E recriou a pasta das Comunicações para nela acomodar o deputado Fabio Faria, que é casado com a filha do “Homem do Baú”, dono do SBT.

Observação: Como bem salientou Josias de Souza, de falta de originalidade Bolsonaro não pode ser acusado. Inventou uma nova modalidade de aliança política: a coalizão-salame. Serve seu governo ao Centrão em fatias.  E o Centrão nunca se contenta com tudo. Sempre quer mais um pouco. De fatia em fatia, o presidente desliza quase sem sentir para o outro lado. Foi dormir imaginando que representava a "Nova Política" e acordou de mãos dadas com jeffersons, valdemares, liras e outros azares.

Para seduzir o ex-juiz da Lava-Jato a abrir mão de 22 anos de magistratura e assumir o ministério da Justiça e Segurança Pública, Bolsonaro assegurou-lhe “carta branca” e prometeu indicá-lo para a próxima vaga que se abrir no STF. Mas a lua-de-mel terminou quando viu que não convenceria o auxilar a atuar como seu advogado pessoal — e de seus filhos enrolados. E aí começou a fritura.

Bolsonaro fez Moro reverter uma nomeação, tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um superintendente da PF, esnobou seu projeto contra a corrupção, e assim por diante. O ministro fingiu que não viu, engoliu os sapos e bebeu toda a água da lagoa, até que a substituição de Maurício Valeixo — delegado-geral da PF e homem de total confiança de Moro — por Alexandre Ramagem, íntimo do clã do general da banda e disposto a municiá-lo com dados confidencias sobre as investigações sobre ele e distintíssima filharada. Foi a gota que fez transbordar o copo. E o ministro deixou o ministério para manter a dignidade que lhe restava.

Observação: O presidente também desautorizou Paulo Guedes, interferiu em seu ministério e sabotou seus projetos. Agora, com o Centrão, enterra de vez a agenda econômica. Se Guedes fica, vira um dois de paus e se desmoraliza; se sai, é acusado de traidor e se desmoraliza.

A atitude de Bolsonaro no que tange à pandemia da Covid-19 é catastrófica, talvez criminosa. Não à toa, foi eleito pelo jornal americano The Washington Post ser “eleito” pelo jornal americano The Washington Post o pior dos líderes globais no combate à pandemia, o que transformou o Brasil num pária aos olhos do mercado internacional, como comprova a fuga de capitais estrangeiros: não foi preciso muito esforço para os investidores concluírem que o país não tem mais uma política econômica, apenas um governo cambeta que luta para se manter a todo custo no poder, o que nos isola ainda mais da comunidade internacional. 

Os ataques a governadores, Congresso e STF são crime de responsabilidade. O capitão é alvo de duas investigações criminais e será respingado pela merda de outras três. Além disso, dormitam na escrivaninha de Rodrigo Maia, pelas últimas contas, 36 pedidos de impeachment. Mas o xis da questão é que os militares apoiam Bolsonaro. Aprovaram a demissão de Mandetta; Braga Netto é chefe do gabinete (inexistente) de crise; Ramos reclama que a imprensa só fala de “cova e corpo”.

Na Saúde, militares aprovaram a mudança no protocolo da cloroquina. Heleno e Ramos (e mais quatro ministros militares) acompanharam o “mito” a comícios golpistas e contra o isolamento. Ramos negocia o apoio do Centrão em troca de cargos e verbas, Braga Netto assina as nomeações. Com a maior cara de pau, os três corroboraram a tese de que Bolsonaro — contra todas as evidências — não falava da PF, mas de sua segurança pessoal.

A ameaça do golpe não é delírio de alarmistas: ela é real e imediata. Nos próximos meses, o aumento no número de mortes, o aprofundamento da recessão e eventuais escândalos de corrupção ligados ao Centrão devem se combinar para reduzir significativamente a popularidade do general-da-banda. Ao mesmo tempo, as investigações em curso devem revelar fatos muito comprometedores para ele. A junção desses fatores tende a ser desestabilizadora, levando, possivelmente, a um impeachment ou a um processo no STF.

Assombrado pelo espectro da queda, Bolsonaro confronta e desafia o Supremo com declarações ameaçadoras como “acabou, porra!” e “ordem absurda não se cumpre”, cortejando o impasse institucional. Aposta que, no impasse, os militares virarão a mesa e garantirão sua permanência na cadeira de presidente. A aposta se baseia no fato de que o presidente é o “chefe supremo” das Forças Armadas, mas também na cooptação dos militares: o capitão bajulou-­os, protegeu-os na reforma da Previdência, deu-lhes plano de carreira e aumento de salário, compareceu a todo tipo de cerimônia, nomeou milhares de oficiais, e entregou o dia a dia do governo a generais.

Até não muito tempo atrás, dizia-se que é ridículo falar em golpe porque a “democracia brasileira está consolidada”, “as Forças Armadas respeitam a democracia e a Constituição”. Quarteladas são coisas do século passado. Antes fossem (detalhes na postagem anterior).

Mas a reação foi rápida: o STF se uniu em torno de Alexandre de Moraes; Celso de Mello advertiu que desobediência à ordem judicial é crime; Ricardo Lewandowski, a OAB e juristas esclareceram que o artigo 142 da Constituição não ampara a tese golpista de que cabe às Forças Armadas arbitrar conflitos entre poderes; Rodrigo Maia e outros parlamentares apoiaram o Supremo; jornalistas e personalidades denunciaram o golpe; movimentos pela democracia obtiveram milhares de assinaturas.

Nos últimos 35 anos, as Forças Armadas tiveram uma conduta irrepreensível, merecedora da admiração e do reconhecimento dos brasileiros: a imagem que construíram é um patrimônio inestimável. Há muitos oficiais, como os generais Pujol, Santa Rosa ou Santos Cruz, que certamente reprovam a conduta do presidente e dos colegas de farda. Mas a imagem das FFAA depende de quem fala e age, não de quem está em silêncio.

Os militares precisam entender que no governo, que é civil, não devem obediência cega ao comandante supremo das Forças Armadas, nem é seu dever salvar o governo: sua lealdade maior é com o país. Se apoiarem o golpe, jogarão na lama a boa imagem que demoraram 35 anos para construir e serão vistos como traidores da pátria — e, dada à mobilização da sociedade, fracassarão. É hora de desembarcar da canoa furada.

Com Josias de Souza e Ricardo Rangel