Nesta era de extremos em que vivemos, a segunda vítima (depois da verdade, a primeira) de vozes e olhares radicais é o espaço existente entre o oito e o oitenta. Nele vicejam atitudes moralmente condenáveis e/ou criminalmente enquadráveis. Não obstante, avoluma-se a aglomeração nos polos opostos. De um lado, os defensores do imediato impedimento do presidente da República; do outro, os convictos da reeleição em 2022.
O atual epicentro da discussão é a notória reunião de abril. O vídeo ensejou interpretação mais ou menos generalizada de que ali não havia prova cabal das pressões do presidente sobre a Polícia Federal, apontadas por Sergio Moro.
Por essa óptica, na ausência da tal da “bala de prata”, o procurador-geral da República não teria razão para oferecer denúncia ao Supremo Tribunal Federal contra Bolsonaro, que estaria, assim, livre da ameaça do impeachment.
O raciocínio materializou-se na reação do “mercado”. Os financistas, parceiros de empresários na falta de perspicácia política, respiraram aliviados ante a queda do dólar e a subida das ações na bolsa. Na versão de seus analistas, não havia nada ali de mais grave além das grosserias. Muitos até fora da bolha dos súditos do Jair concordaram.
Pode até ser que essa também venha a ser a conclusão do procurador Augusto Aras e que ele não veja razão para enquadrar Bolsonaro como suspeito de nenhum dos crimes listados por ele no pedido de abertura de inquérito no STF para apurar a denúncia de Moro. Isso não significa ausência de dolo, nem serve para limpar a extensa folha corrida do presidente no quesito palavras e atos abusivos.
A destituição legal de um presidente da República é medida extrema. Pode vir ou pode não vir. Se não vier, agora ou mais adiante, não equivale à absolvição no tribunal da opinião pública. Ao se tomar o impedimento como a única punição cabível, acaba-se por considerar que tudo o mais é permitido e qualquer coisa que não venha a resultar na interrupção do mandato possa ser aceita como atestado de boa conduta.
O foco exclusivo na cápsula detonadora de lobisomens e outros monstros só favorece a teoria conspiratória que alimenta súditos caninos, sejam eles ideológicos, ressentidos entusiasmados com a fama ou os empenhados em se desviar da rota do iceberg, figura usada naquela reunião pelo presidente para expressar seu medo do naufrágio.
Ocorre por vários motivos, sendo o impeachment uma hipótese. Mas um governo também sucumbe por outras razões. Uma delas, quando rompe o pacto constitucional da harmonia entre os poderes e, isolado, passa a vagar tal cadáver insepulto com interlocução de precária a inexistente na institucionalidade e na sociedade. Pois aquela reunião aproximou o presidente da situação-zumbi.
Mais uma vez, Bolsonaro errou o cálculo. Ficou perdida no registro das barbaridades diárias a ideia dele de dar publicidade à reunião do dia 22 a fim de mostrar-se ao país em situações de mando. Entre elas, cobranças feitas ao então ministro Moro sobre a prisão de rebeldes às determinações da quarentena.
Imaginou que a pose de valente lhe renderia benefícios políticos/eleitorais. Por isso mandou gravar. Por isso substituiu referências à polícia por “segurança nossa”. Só não divulgou porque foi “desaconselhado”. Certamente por auxiliares cientes do que ali ocorrera: uma série de atitudes passíveis de enquadramento criminal e condenação moral. Tinham razão, conforme demonstraram os fatos. Fosse a gravação favorável, a Advocacia-Geral da União não teria tentado impedir na Justiça a divulgação, nem haveria ataques à decisão do ministro Celso de Mello de liberar o vídeo.
Um desastre completo: pôs o ministro da Educação na mira da Justiça, o do Meio Ambiente na corda bamba da improbidade, o da Economia no altar do cinismo pretensioso, a dos Direitos Humanos em delírio policialesco, os presidentes da Caixa, do Banco do Brasil e do BNDES em posição de sabujice explícita.
A todos impôs alistamento compulsório em seu exército e fez mais: incentivou milícias populares, debochou do serviço oficial de inteligência, menosprezou o Congresso (“esse pessoal aqui do lado”), explodiu pontes com o Supremo e mostrou aos palavrões quanto era falsa a civilidade exibida no encontro da semana passada com os governadores. Uma obra de destruição. Se é vista como ganho, invertido está o sentido do que seja perda.
Texto de Dora Kramer publicado em Veja de 3 de junho de 2020