No Brasil, o inimigo é quem defende um ponto de vista
diferente do seu. A única arma contra a peste é a honestidade.
Eis aí o que mais está faltando ao Brasil destes tempos de
epidemia, morte e miséria. Há gestores que não acabam mais — um em cada
esquina, do Oiapoque ao Chui. Há a multiplicação geométrica de palpites que se
transformam em decisão de governo. Há autoridades que querem acabar com o vírus
produzindo feriados, filas de ônibus ou congestionamentos de trânsito. Rodízios
de carro são feitos, desfeitos e refeitos; a única certeza que deixam é de que
as autoridades que decidem sobre eles não têm ideia do que estão fazendo. A
cada meia hora aparece alguma nova facção obcecada em defender alguma coisa, ou
em guerrear contra ela — da cloroquina à proibição da abertura dos armarinhos.
Mas a coragem de assumir posições honestas está desaparecida há três meses no
Brasil.
Nunca foi muito presente. Hoje em dia, sumiu de vez. Entra
de tudo neste cozido. O público teve direito, inclusive, a uma declaração
realmente extraordinária do ex-presidente Lula, que se juntou à multidão
de celebridades com algum manifesto essencial a lançar sobre a Covid-19. “Ainda
bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado
coronavírus”, disse Lula. O lado bom da tragédia, segundo ele, seria o
efeito didático do vírus. “Esse monstro está permitindo que os cegos comecem a
enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”,
disse Lula. Que solução? Se a Covid-19 está provando alguma coisa nesse
país, é justamente a incapacidade terminal do Estado em lidar com o problema.
Basta olhar para a lista de mortos que cresce desde março – ou o que acontece
dentro dos hospitais públicos onde a epidemia é tratada.
E a roubalheira, então? A primeira consequência da majestade
do “Estado” perante a Covid-19 foi a suspensão das licitações públicas para
despesas relacionadas com o combate ao vírus; a partir daí, rouba-se com
inédita ousadia em todos os Estados e 5.500 municípios, sem que o Ministério
Público incomode realmente ninguém.
Mas é nisso mesmo que está a verdadeira alma do atual
debate: a realidade que vá para o diabo. A única coisa que interessa é
aproveitar o vírus para vender o seu peixe ideológico, político ou financeiro.
A população brasileira precisa, mais do que nunca, de uma
trégua; só então se abriria mais espaço para a competência, a eficácia e a
seriedade científica no trato da calamidade que está arruinando o País. Mas
nenhuma trégua será possível sem honestidade – mesmo com todas as declarações
de bons propósitos como as que foram feitas outro dia pelo presidente da
República, os 27 governadores e os presidentes do Senado e da Câmara, em sua
reunião virtual. O problema real é que os políticos — e milhões de cidadãos –
acham que hoje só existe um tipo de fato: o que confirma as suas próprias
opiniões, crenças ou convicções sobre a epidemia. Mas não é assim. Há fatos
independentes entre si que convivem ao mesmo tempo; a existência de um não
anula a existência de outro. O medo de morrer é um fato que está acima de
dúvida. O medo de ficar sem dinheiro para sobreviver é outro, do mesmo tamanho.
Na maioria dos países do mundo há um inimigo comum – o
vírus. No Brasil, o inimigo é quem defende um ponto de vista diferente do seu.
O resultado é essa aberração que está aí, na qual o confinamento deixou de ser
um meio para combater a epidemia e se transformou numa meta política que divide
o poder público em dois campos opostos. É o ideal para fazer o que estão
fazendo: matar cada vez mais gente e, ao mesmo tempo, destruir o País.
Texto de J.R. Guzzo