terça-feira, 23 de junho de 2020

MAIS SOBRE A NOVELA QUEIROZ/BOLSONARO(S) — PARTE 3



O outono se foi, o inverno chegou, e nem sinal de um plano econômico para fazer frente à recessão ou de um médico, sanitarista, farmacêutico ou enfermeiro à frente do Ministério da Saúde — que está acéfalo há mais de um mês, sob um interino que não se sabe se está lá provisoriamente permanente ou permanentemente provisório.

Sobre as quiméricas reformas estruturantes — panaceia que recolocaria o país na trilha do crescimento —, ninguém mais fala. Aliás, surpreendentemente, nosso sempre boquirroto e grandiloquente presidente silenciou sobre a prisão de seu amigo de fé, irmão, camarada e rachadista Fabrício Queiroz. Até onde eu sei, a única vez que Bolsonaro se manifestou sobre o caso foi em sua live semanal, quando disse que a prisão de Queiroz foi “espetaculosa”, e que para ele “o assunto está encerrado”. Para ele, talvez; para a Justiça, a merda só começou a feder.

Meses atrás, Paulo Marinho — que abrigou na própria casa o comitê de campanha de Jair Bolsonaro — revelou à Folha que o filho do presidente, Flávio, teria sido avisado antecipadamente de uma operação a ser deflagrada pela PF que mirava Fabrício Queiroz. O pimpolho demitiu o assessor e a filha do dito-cujo de seu gabinete na Alerj, e então vestiu a máscara dos três macaquinhos sábios. E o capitão fez o mesmo em se próprio gabinete, defenestrando apaniguados do velho amigo de fé, irmão e camarada.

Bolsonaro & filhos atuavam de forma tão coesa que era virtualmente impossível dizer onde terminava um gabinete e começava o outro — e, portanto, as responsabilidades de cada um. Desde que vieram a público as primeiras notícias sobre as movimentações financeiras atípicas de Queiroz, Bolsonaro e seu clã passaram a tratar os brasileiros como um bando de idiotas. 

Queiroz é um lembrete da falta de transparência de uma família com quatro homens públicos que influenciam os destinos do país pelo fato de o presidente governar como um patriarca de clã e perder a linha (força de expressão; ninguém perde algo que nunca teve) sempre que imprensa o questiona (questionava, que agora a pergunta não faz mais sentido) sobre o paradeiro do “espírito que anda”, que se prontificou a ir para o sacrifício, mas somente se sua família — notadamente a mulher e a filha que também trabalharam em gabinetes dos Bolsonaro — ficassem protegidas.

Faltou combinar com o MP-RJ, que decretou a prisão da cara metade do fantasminha camarada e pediu que seu nome fosse incluído na lista dos procurados da Interpol... E agora, José, digo, Jair?

Às vezes eu me pergunto por que alguém que não quer, não pode ou não sabe governar aspira tanto à reeleição, sobretudo quando ela se torna mais improvável (e indesejável) a cada dia. Mesmo que esse alguém seja o ex-capitão que Geisel classificou de “anormal e mau militar”; que foi excluído dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e insubordinação (mas acabou sendo absolvido das acusações pelo STM); que aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais ao longo dos quase 30 anos de carreira política, e que, três meses depois de ter subido a rampa do Palácio do Planalto, disse com todas as letras que não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar.

Como bem alertou Pelé em 1973, "os brasileiros não estão preparados para votar" — opinião que o general-ditador João Batista Figueiredo ratificou em 1978, ao dizer que "um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar". Coincidência? Não. Pura sabedoria.

Como ficará a situação de Jair Bolsonaro com a prisão de Queiroz, só o tempo dirá. Além de haver uma miríade de variáveis, cada ator dessa ópera bufa parece empenhado em criar narrativas tão mirabolantes quanto conflitantes. Frederick Wassef é um bom exemplo.

Até meados da semana passada, Fred era um ilustre desconhecido que atuava nos bastidores e se orgulhava de ser (mais um entre muitos) próximo do presidente. Depois que Queiroz foi preso no imóvel que figura nos registros da OAB como sede de seu escritório de advocacia — a exemplo do que informa a vistosa placa afixada no muro frontal da casa —, o causídico se tornou suspeito de ser o “Anjo” que vinha protegendo Queiroz, esposa e outros familiares do fantasma igualmente mergulhados até o pescoço nessa merdeira.

No sábado (20), em entrevista à Folha, o advogado não só negou ter "escondido" Queiroz como também ser o "Anjo". Em outra entrevista, afirmou ser consultor jurídico dos Bolsonaro e advogado de Flávio no caso das rachadinhas. No domingo (21), numa segunda entrevista à CNN Brasil — a quarta no último final de semana — negou que Jair e Flávio Bolsonaro soubessem que Queiroz estava escondido em sua propriedade, e teceu críticas contundentes à advogada do presidente, Karina Kufa.

Observação: Na quinta-feira, Kufa havia soltado uma nota dizendo que Wassef não advoga para Jair Bolsonaro — embora o presidente nunca tenha desmentido o advogado quando ele dizia para meio mundo que o representava. No mesmo dia, Wassef telefonou a Kufa e, aos berros, disse que iria desmenti-la.

Wassef disse que substabeleceria um colega para assumir a defesa de Flávio Bolsonaro e se desculpou: “Qualquer dano de imagem que eu possa ter causado ao presidente e ao senador eu peço desculpas”. Mas em momento algum da longa e confusa entrevista explicou por que Queiroz estava morando na casa dede (de Fred) quando foi capturado. Disse que, a despeito de Queiroz ter sido preso em seu imóvel, ele (Fred) não tem seu telefone e não fala com ele (Queiroz). Perguntado por que o fantasminha camarada foi se tratar do câncer em Atibaia, sendo que é do Rio de Janeiro, o rábula especulou: "Quem sabe ele estava sem dinheiro, abandonado?"

Wassef disse ainda que movimentação atípica não é crime. “Estamos transformando extratos bancários de várias pessoas, uma verdadeira contabilidade. Isso parece mais milhares de operações matemáticas e de contabilidade que uma investigação. (...) Se era tão grave, por que não ofereceram denúncia em um ano? Posso te dar mil explicações para essa movimentação financeira”, concluiu. Mas não deu explicação nenhuma. Repetiu sem parar, interrompendo o entrevistador, que seu cliente é vítima de perseguição, de “Santa Inquisição”, e seguiu com sua narrativa confusa e contraditória, dizendo que nunca foi transferido dinheiro de Queiroz para Flávio Bolsonaro.

Fred deixou patente a impressão de que sua maior preocupação era midiática. Demonstrou mais preocupação com a exposição de seu cliente (agora ex-cliente) do que em refutar as acusações que pesam contra ele. Como se vê, estamos — mais uma vez — diante de uma guerra de narrativas. E como em toda guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.

Lauro Jardimem sua coluna no Globo, publicou:

 "Jair e Flavio Bolsonaro têm mais um problema pela frente. E não é pequeno. É um problema de quase dois metros de altura e que está se sentindo humilhado e com raiva: Frederick Wassef, o advogado de Flavio Bolsonaro e ex-hospedeiro de Fabrício Queiroz, está possesso. Sente-se abandonado. De acordo com relatos de pessoas próximas, sentiu-se traído e achincalhado com a nota oficial assinada pela advogada Karina Kufa, desmentindo que ele algum dia tenha sido advogado do presidenteWassef tem reclamado de modo acerbo e raivoso de Bolsonaro. Além de ter detestado que fatos do seu passado e também velhas histórias de Cristina Boner, sua ex-mulher, mas de quem ainda é muito próximo, terem sido remexidos em meio ao furacão da prisão de Queiroz".

A deputada estadual Janaína Paschoal, ex-apoiadora de primeira hora do presidente, disse que os fatos são chocantes, sobretudo porque Wassef dizia não saber o paradeiro de Queiroz. "É algo chocante porque você pensa: 'de quem foi essa ideia [de 'esconder' Queiroz na casa de Wassef]?'. A gente fica sem entender se foi uma iniciativa do advogado, se alguém solicitou". 

Ainda segundo Janaína, o fato de o legisperito ter abrigado Queiroz aproxima o caso do presidente e do filho Flávio, ambos clientes de Fred: "Esse senhor [Wassef] frequenta o Palácio [do Planalto]. Quem olha de fora tem a sensação de que o doutor tem alguma intimidade. De certa forma, o fato traz o caso para perto do presidente. Acho uma ideia tão ruim que tomei um choque".

A deputada comparou o caso Queiroz e os acontecimentos no entorno de Bolsonaro com a "época do PT": "Lembra da época do PT, quando os aloprados do PT faziam dossiês? Tem coisas que acontecem em volta do governo que me lembram muito. De repente o senador poderia avaliar uma colaboração premiada com o MPF, fazer uma colaboração e entregar tudo o que acontecia naquela Alerj. Cai quem tiver que cair. Esses mistérios, a situação desse homem, vai gerando uma instabilidade que prejudica o País. E o presidente prometeu que iria colocar o País acima de tudo".

Bem fez o ex-ministro Abraham Weintraub — outro ideólogo inútil —, que desembarcou nos EUA, no último sábado, valendo-se de seu passaporte diplomático para entrar no país onde o aguarda uma diretoria no Banco Mundial e um aumento de salário de quase 400% — e pago em dólares. Detalhe: o Planalto só publicou a exoneração do imprestável depois de sabê-lo seguro em solo americano. O ex-ministro deve estar morrendo de rir dos trouxas que cá discutem quão escandalosas foram sua indicação para o Banco Mundial e sua saída do país à francesa.

Resumo da ópera: Queiroz é o grande calcanhar de Aquiles da primeira-família. Alegando problemas de saúde decorrentes de um câncer, driblou diversas convocações para prestar depoimentos. Fez uma declaração por escrito em que reconheceu a prática da rachadinha, mas isentou o chefe de qualquer participação ou conhecimento do esquema. De acordo com o MP-RJ, há abundantes indícios de desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Se ele revelar tudo o que sabe, pode garantir não apenas uma cassação de mandato ou prisão a seu ex-chefe, mas também derrubar do altar de mentirinha o santarrão do pau oco e pés de barro que diz ser Messias, mas que não consegue fazer milagres.