O outono se foi, o inverno chegou, e nem sinal de um plano
econômico para fazer frente à recessão ou de um médico, sanitarista, farmacêutico
ou enfermeiro à frente do Ministério da Saúde — que está acéfalo há mais de um
mês, sob um interino que não se sabe se está lá provisoriamente permanente ou
permanentemente provisório.
Sobre as quiméricas reformas estruturantes — panaceia que
recolocaria o país na trilha do crescimento —, ninguém mais fala. Aliás, surpreendentemente, nosso
sempre boquirroto e grandiloquente presidente silenciou sobre a prisão de
seu amigo de fé, irmão, camarada e rachadista Fabrício Queiroz. Até onde
eu sei, a única vez que Bolsonaro se manifestou sobre o caso foi em sua live semanal,
quando disse que a prisão
de Queiroz foi “espetaculosa”, e que para ele “o assunto está
encerrado”. Para ele, talvez; para a Justiça, a merda só começou a feder.
Meses atrás, Paulo Marinho — que abrigou na própria casa o comitê de
campanha de Jair Bolsonaro — revelou à Folha que o filho do presidente, Flávio, teria sido avisado antecipadamente de uma operação a ser deflagrada pela PF
que mirava Fabrício Queiroz. O pimpolho demitiu o assessor e a filha do dito-cujo
de seu gabinete na Alerj, e então vestiu a máscara dos três
macaquinhos sábios. E o capitão fez o mesmo em se próprio gabinete, defenestrando apaniguados do velho amigo de fé, irmão e camarada.
Bolsonaro & filhos atuavam de forma tão
coesa que era virtualmente impossível dizer onde terminava um gabinete e
começava o outro — e, portanto, as responsabilidades de cada um. Desde que vieram
a público as primeiras notícias sobre as movimentações financeiras atípicas de Queiroz, Bolsonaro e seu clã passaram a tratar os brasileiros como um bando de idiotas.
Queiroz é um lembrete da falta de transparência de
uma família com quatro homens públicos que influenciam os destinos do país pelo
fato de o presidente governar como um patriarca de clã e perder a linha (força de expressão; ninguém perde algo que nunca teve) sempre que imprensa o questiona (questionava, que agora a pergunta não faz mais sentido) sobre o
paradeiro do “espírito que anda”, que se
prontificou a ir para o sacrifício, mas somente se sua família — notadamente a
mulher e a filha que também trabalharam em gabinetes dos Bolsonaro —
ficassem protegidas.
Faltou combinar com o MP-RJ, que decretou a prisão da cara metade do fantasminha camarada e pediu que seu nome fosse incluído na lista dos procurados da Interpol... E agora, José, digo, Jair?
Faltou combinar com o MP-RJ, que decretou a prisão da cara metade do fantasminha camarada e pediu que seu nome fosse incluído na lista dos procurados da Interpol... E agora, José, digo, Jair?
Às vezes eu me pergunto por que alguém que não quer, não
pode ou não sabe governar aspira tanto à reeleição, sobretudo quando ela se torna mais improvável
(e indesejável) a cada dia. Mesmo que esse alguém seja o ex-capitão que Geisel
classificou de “anormal
e mau militar”; que foi excluído dos quadros da Escola de Oficiais por indisciplina e
insubordinação (mas acabou sendo absolvido
das acusações pelo STM); que aprovou
dois míseros projetos e colecionou mais de trinta
ações criminais ao longo dos quase 30 anos de carreira política, e que, três
meses depois de ter subido a rampa do Palácio do Planalto, disse com todas as letras que não
nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar.
Como bem alertou Pelé em 1973, "os
brasileiros não estão preparados para votar" — opinião que o general-ditador João
Batista Figueiredo ratificou em 1978, ao dizer que "um
povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar". Coincidência? Não. Pura sabedoria.
Como ficará a situação de Jair Bolsonaro com a prisão de Queiroz,
só o tempo dirá. Além de haver uma miríade de variáveis, cada ator dessa ópera
bufa parece empenhado em criar narrativas tão mirabolantes quanto conflitantes.
Frederick Wassef é um bom exemplo.
Até meados da semana passada, Fred era um ilustre
desconhecido que atuava nos bastidores e se orgulhava de ser (mais um entre muitos) próximo do
presidente. Depois que Queiroz foi
preso no imóvel que figura nos registros da OAB como sede de seu
escritório de advocacia — a exemplo do que informa a
vistosa placa afixada no muro frontal da casa —, o causídico se tornou suspeito de ser o “Anjo” que vinha
protegendo Queiroz, esposa e outros familiares do fantasma igualmente mergulhados
até o pescoço nessa merdeira.
No sábado (20), em entrevista à Folha, o advogado não só negou ter "escondido" Queiroz como também ser o "Anjo".
Em outra entrevista, afirmou ser consultor jurídico dos Bolsonaro e
advogado de Flávio no caso das rachadinhas. No domingo (21), numa
segunda entrevista à CNN Brasil — a quarta no último final de semana — negou que Jair e Flávio Bolsonaro soubessem que Queiroz
estava escondido em sua propriedade, e teceu críticas contundentes à advogada do
presidente, Karina Kufa.
Observação: Na quinta-feira, Kufa havia
soltado uma nota dizendo que Wassef não advoga para Jair Bolsonaro
— embora o presidente nunca tenha desmentido o advogado quando ele dizia para
meio mundo que o representava. No mesmo dia, Wassef telefonou a Kufa
e, aos berros, disse
que iria desmenti-la.
Wassef disse que substabeleceria um colega para
assumir a defesa de Flávio Bolsonaro e se desculpou: “Qualquer dano
de imagem que eu possa ter causado ao presidente e ao senador eu peço desculpas”.
Mas em momento algum da longa e confusa entrevista explicou por que Queiroz
estava morando na casa dede (de Fred) quando foi capturado. Disse que, a despeito de Queiroz
ter sido preso em seu imóvel, ele (Fred) não tem seu telefone e não fala com ele (Queiroz). Perguntado
por que o fantasminha camarada foi se tratar do câncer em Atibaia, sendo que é do Rio
de Janeiro, o rábula especulou: "Quem sabe ele estava sem dinheiro, abandonado?"
Wassef disse ainda que movimentação atípica não é
crime. “Estamos transformando
extratos bancários de várias pessoas, uma verdadeira contabilidade. Isso parece
mais milhares de operações matemáticas e de contabilidade que uma investigação.
(...) Se era tão grave, por que não ofereceram denúncia em um ano? Posso te
dar mil explicações para essa movimentação financeira”, concluiu. Mas não
deu explicação nenhuma. Repetiu sem parar, interrompendo o entrevistador, que
seu cliente é vítima de perseguição, de “Santa Inquisição”, e seguiu com sua narrativa
confusa e contraditória, dizendo que nunca foi transferido dinheiro de Queiroz para Flávio
Bolsonaro.
Fred deixou patente a impressão de que sua maior
preocupação era midiática. Demonstrou mais preocupação com a exposição de seu
cliente (agora ex-cliente) do que em refutar as acusações que pesam contra ele.
Como se vê, estamos — mais uma vez — diante de uma guerra de narrativas. E como
em toda guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.
Lauro Jardim, em sua coluna no Globo, publicou:
"Jair e Flavio Bolsonaro têm mais um problema pela frente. E não é pequeno. É um problema de quase dois metros de altura e que está se sentindo humilhado e com raiva: Frederick Wassef, o advogado de Flavio Bolsonaro e ex-hospedeiro de Fabrício Queiroz, está possesso. Sente-se abandonado. De acordo com relatos de pessoas próximas, sentiu-se traído e achincalhado com a nota oficial assinada pela advogada Karina Kufa, desmentindo que ele algum dia tenha sido advogado do presidente. Wassef tem reclamado de modo acerbo e raivoso de Bolsonaro. Além de ter detestado que fatos do seu passado e também velhas histórias de Cristina Boner, sua ex-mulher, mas de quem ainda é muito próximo, terem sido remexidos em meio ao furacão da prisão de Queiroz".
"Jair e Flavio Bolsonaro têm mais um problema pela frente. E não é pequeno. É um problema de quase dois metros de altura e que está se sentindo humilhado e com raiva: Frederick Wassef, o advogado de Flavio Bolsonaro e ex-hospedeiro de Fabrício Queiroz, está possesso. Sente-se abandonado. De acordo com relatos de pessoas próximas, sentiu-se traído e achincalhado com a nota oficial assinada pela advogada Karina Kufa, desmentindo que ele algum dia tenha sido advogado do presidente. Wassef tem reclamado de modo acerbo e raivoso de Bolsonaro. Além de ter detestado que fatos do seu passado e também velhas histórias de Cristina Boner, sua ex-mulher, mas de quem ainda é muito próximo, terem sido remexidos em meio ao furacão da prisão de Queiroz".
A deputada estadual Janaína Paschoal, ex-apoiadora de
primeira hora do presidente, disse que os fatos são chocantes, sobretudo porque
Wassef dizia não saber o paradeiro de Queiroz. "É algo
chocante porque você pensa: 'de quem foi essa ideia [de 'esconder' Queiroz na
casa de Wassef]?'. A gente fica sem entender se foi uma iniciativa do advogado,
se alguém solicitou".
Ainda segundo Janaína, o fato de o legisperito ter abrigado Queiroz aproxima o caso do presidente e do filho Flávio,
ambos clientes de Fred: "Esse senhor [Wassef] frequenta o Palácio
[do Planalto]. Quem olha de fora tem a sensação de que o doutor tem alguma
intimidade. De certa forma, o fato traz o caso para perto do presidente. Acho
uma ideia tão ruim que tomei um choque".
A deputada comparou o caso Queiroz e os acontecimentos
no entorno de Bolsonaro com a "época do PT": "Lembra
da época do PT, quando os aloprados do PT faziam dossiês? Tem coisas que
acontecem em volta do governo que me lembram muito. De repente o senador
poderia avaliar uma colaboração premiada com o MPF, fazer uma colaboração e
entregar tudo o que acontecia naquela Alerj. Cai quem tiver que cair. Esses
mistérios, a situação desse homem, vai gerando uma instabilidade que prejudica
o País. E o presidente prometeu que iria colocar o País acima de tudo".
Bem fez o ex-ministro Abraham Weintraub — outro
ideólogo inútil —, que desembarcou nos EUA, no último sábado, valendo-se de seu passaporte diplomático para entrar no país
onde o aguarda uma diretoria no Banco Mundial e um aumento de salário de
quase 400% — e pago em dólares. Detalhe: o Planalto só publicou a exoneração do imprestável depois
de sabê-lo seguro em solo americano. O ex-ministro deve estar
morrendo de rir dos trouxas que cá discutem quão
escandalosas foram sua indicação para o Banco Mundial e sua saída do país à
francesa.
Resumo da ópera: Queiroz é o grande calcanhar de
Aquiles da primeira-família. Alegando problemas de saúde decorrentes de um câncer, driblou diversas convocações para prestar depoimentos. Fez uma declaração por escrito em que reconheceu a prática da rachadinha, mas isentou o chefe de qualquer participação ou conhecimento do esquema. De acordo com o MP-RJ, há abundantes
indícios de desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização
criminosa. Se ele revelar tudo o que sabe, pode garantir não apenas uma
cassação de mandato ou prisão a seu ex-chefe, mas também derrubar do altar de
mentirinha o santarrão do pau oco e pés de barro que diz ser Messias,
mas que não consegue fazer milagres.