segunda-feira, 29 de junho de 2020

MENOS MITOS E MAIS RESULTADOS


Em 28 anos no baixo clero da Câmara, Bolsonaro exercitou o hábito da ofensa sob o guarda-chuva da imunidade parlamentar. Depois de um ano e meio na Presidência, descobriu que não é prudente xingar a mãe do leão enquanto não tiver atravessado a floresta. E Bolsonaro está no meio da travessia, em meio a um inquérito criminal no Supremo, pedidos de cassação no TSE e ameaça de eventual delação de Queiroz. E ainda tem de andar na ponta dos pés para não incomodar Frederick Wassef.

Observação: Fred é passível de investigação, embora Queiroz não fosse considerado foragido da Justiça no período em que ficou entocado no simulacro de escritório de advocacia do causídico, em Atibaia. O MP-RJ aponta o conspícuo jurisconsulto como o responsável por articular a ocultação do paradeiro do ex-assessor de seu então cliente, e o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP abriu processo administrativo para apurar sua conduta.

A prisão de Queiroz obrigou o capitão a se distanciar do próprio filho e manter sua imensa boca fechada. Até o final da semana passada, Bolsonaro não havia dado em público um único pio de solidariedade ao enrolado primogênito. A estratégia funcionou: de acordo com a última pesquisa Datafolha, o governo não deve ser colocado no respirador. Ainda.

Bolsonaro sempre se dedicou a fabricar crises e colocar a culpa em terceiros. Nos últimos dois meses, empurrou para fora do governo um ministro da Justiça e dois ministros da Saúde. Entregou a cabeça de um ministro descerebrado da Educação. Convivia com 1,2 milhão de infectados do coronavírus, 55 mil mortos e quase 13 milhões de desempregados e nada tinha a dizer sobre eles. Agora, além de tomar distância do filho, já não dá a mesma atenção ao cercadinho do Alvorada e levanta a bandeira branca para o Legislativo e o STF. O Bolsonaro que até ontem queria jantar magistrados e parlamentares quer agora jantar com eles.

Em conversa reservadas, o capitão demonstra preocupação com a situação jurídica dos dois rebentos mais velhos, chegando a ficar com a voz embargada e os olhos rasos d’água diante da possibilidade de eles serem presos. A preocupação teve início na semana passada, quando a PF cumpriu mandados de busca e apreensão contra aliados do governo em inquérito sobre protestos antidemocráticos. No final de maio, ativistas bolsonaristas também foram alvos no inquérito das fake news, e ambas as investigações têm como relator o ministro Alexandre de Moraes, que citou o “gabinete do ódio" — bunker digital do Palácio do Planalto formado por três assessores presidenciais e é tutelado por Carluxo, o pitbull palaciano, que coordenou a estratégia digital da campanha eleitoral do pai em 2018.

Após a segunda operação, Bolsonaro, que era useiro e vezeiro em disparar petardos contra o Supremo, baixou o tom e começou a fazer apenas críticas indiretas (afinal, o lobo perde o pelo, mas não abandona o vício). A mudança de postura, ainda pontual, teve de ser ampliada após uma nova crise envolvendo a prisão de Queiroz e as negociações de colaboração premiada que estão em andamento. Os dois episódios impactaram o presidente, que na mesma tarde demitiu Weintraub, reuniu-se com deputados do Centrão e teceu elogios a Rodrigo Maia, com quem já protagonizou diversas trocas de críticas durante o mandato — e a quem compete decidir o destino de mais de 30 pedidos de abertura de processo de impeachment contra o chefe do Executivo.

No dia seguinte, para reforçar o gesto, Bolsonaro enviou a São Paulo três ministros para um encontro com Alexandre de Moraes — sinalizando sua disposição a iniciar uma nova relação com o STF — e estendeu uma bandeira branca a Luiz Fux, futuro presidente do Supremo, com quem quer construir um canal de diálogo para evitar uma fissura permanente. O movimento em relação ao Legislativo visa não só evitar a instauração de um processo de impeachment, mas também proteger o filho Flávio — cuja cassação do mandato parlamentar está sob análise do Conselho de Ética do Senado (a prisão de Queiroz levou a Rede a pedir inclusive urgência na abertura do processo).

Na live da última quinta-feira, após anunciar a prorrogação do pagamento do vale-corona por mais três meses, Bolsonaro pediu a um sanfoneiro que tocasse "Ave Maria" em homenagem às vítimas do coronavírus. Passou a falar em "entendimento e cooperação" com o Judiciário, a Câmara e o Senado e a pregar a "paz" e a "tranquilidade". Chegou a agradecer a todos "pelo entendimento, pela cooperação e pela harmonia." Mais um pouco e acaba virando um ex-Bolsonaro.

No trecho predileto do capitão, o Evangelho de João anota: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." No inquérito sobre a tentativa de transformar a PF em aparato político, o mitômano se tornou prisioneiro de uma inverdade. A partir de esclarecimentos prestados pelo Gen. Augusto Heleno, irmão de farda, amigo e ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, descobriu-se que Bolsonaro opera num mundo em que há duas verdades: a dele e a verdadeira.

Heleno informou à PF que "não houve óbices ou embaraços" para a realização de substituições na equipe de segurança do presidente no Rio de Janeiro. Confirmou que houve três trocas. Com isso, virou farelo o argumento que o capitão vinha esgrimindo de que se dirigia ao general, não a Moro, quando cobrou mudanças na "segurança" do Rio de Janeiro (na fatídica na reunião ministerial de 22 de abril). Ficou entendido que Bolsonaro falava mesmo sobre a PF quando disse que não ia esperar foderem sua família e amigos para trocar o comando da "segurança" no Rio. "Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse ele na tal reunião.

Bolsonaro se considera um bom presidente, acha que merece respeito. A PF passou a considerar que ele merece um bom interrogatório. Guardadas as devidas proporções, isso já tinha acontecido com Michel Temer, que também foi interrogado pela PF no exercício da Presidência. Esperava-se que Bolsonaro fugisse desse figurino. Mas o Brasil parece condenado a ser o mais antigo país do futuro do mundo.

A nova postura do presidente é elogiada por congressistas e membros do Judiciário, mas ninguém ali nasceu ontem. Bolsonaro encena essa mesma pantomima toda vez que se sente acuado, mas retoma o discurso beligerante assim que a ameaça é mitigada. Como o escorpião da fábula, é incapaz de agir contra sua natureza. Para convencer o país de que deseja a paz, teria de enxergar a crise no reflexo do espelho. Mas isso ainda não aconteceu. Em privado, o general da banda ainda flerta com a superstição do “mito”. O que é uma pena. O brasileiro não quer mitos, mas resultados.