terça-feira, 30 de junho de 2020

OS MILITARES E A FALTA QUE FAZ UM MILLEY


A sociedade Bolsonaro & Filhos está a caminho de tornar-se apenas a fachada folclórica do processo a que assistimos bestificados. Imperioso mesmo, para quem se importa com a saúde das instituições e a sobrevivência da democracia, é prestar atenção nos militares.

Nas Páginas Amarelas da última VEJA, um dos generais do Planalto, Luiz Eduardo Ramos, afirmou: (…) é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”. Vivemos uma quadra em que, como na ditadura, se impõe dissecar cada vírgula, nas palavras dos oficiais.

A fala do general Ramos teve ampla repercussão, com destaque para o conceito de “esticar a corda”. Merece mais atenção ainda o de “outro lado”. Quando a menção é a “esticar a corda”, vem de imediato à mente que, na modalidade, o campeão é o próprio governo. Cinco episódios recentes em que a corda foi esticada são: 1. Presença do presidente em atos pró-ditadura; 2. Exposição, na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, da intenção de armar a população; 3. Sistemática sabotagem dos esforços de combate à pandemia de Covid-19; 4. Tentativa de fraudar os números de vítimas da pandemia; 5. Incitação à invasão de hospitais destinados a infectados. As duas primeiras convidam ao golpe e à guerra civil. A terceira e a quarta atentam contra a saúde da população. A quinta desvela uma mente insana, e todas as cinco são esticadas de corda do gênero monstruoso.

A menção ao “outro lado”, segundo tópico a ressaltar na fala do general, vale mais pelo que oculta. Se existe um “outro lado”, ao qual as Forças Armadas não permitirão que estique a corda, é porque elas ocupam o lado oposto. Estamos diante de uma confissão. A de que as Forças Armadas, contra tudo o que rege a teoria a respeito de sua natureza, têm um lado. O ministro do Luís Roberto Barroso costuma argumentar que a confusão entre governo e Forças Armadas é uma impossibilidade lógica. Se assim ocorresse, sendo o governo derrotado numa eleição, seguir-se-ia o inconcebível — as Forças Armadas serem derrotadas. O argumento falha quando se recorda que militares no governo podem: (1) cancelar eleições, como na ditadura de Getúlio, ou (2) torná-las mansas e de resultado predeterminado, como na ditadura militar.

Vivemos os trinta primeiros anos do atual período republicano sem saber o nome dos generais de plantão. O último de que tivemos notícia foi o do general Leônidas Pires Gonçalves, que deu palpites no período da transição democrática. Hoje eles voltam ao procênio, e o primeiro a fazê-lo foi o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército. Em abril de 2018, tempo de pré-campanha eleitoral, ele lançou nota de advertência ao STF na véspera do julgamento da legalidade da prisão em segunda instância cujo resultado poderia livrar o ex-presidente Lula da prisão. Hoje os militares crescem no governo (são quase 3000) num ritmo que ameaça o venezuelano, ao mesmo tempo que, como no período do segundo Getúlio ou de Jango, multiplicam-se seus manifestos e notas — explícitas e cafajestes da parte dos militares de pijama, ambíguas e ameaçadoras quando dos palacianos.

Que querem os militares? Eis a questão. É intuitivo supor o que não querem — a volta da esquerda ao poder. O horror do Lula parece ter substituído na cabeça deles o horror ao comunismo. Espanta que, em nome dessa causa, avalizem um tipo como Bolsonaro, e deem respaldo não só às esticadas de corda enumeradas acima como a políticas que vão da degradação do meio ambiente ao desprezo racista de camadas da população. O “bestificados” escrito na primeira frase deste texto alude ao famoso comentário do político e jornalista Aristides Lobo sobre o passeio a cavalo do marechal Deodoro que passou à história como “proclamação da República”: “O povo assistiu a tudo aquilo bestificado, atônito, surpreso (…)”. 

É uma sina do povo brasileiro assistir “bestificado” a movimentos dos militares. Falta-nos, nesta difícil hora, um general Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto americano que se desculpou por ter participado de uma presepada do presidente Trump. Um Milley, cioso de seu papel e da dignidade da farda, seria decisivo para a nossa democracia e iria além. Poderia salvar o próprio Exército do que ameaça se revelar uma das maiores frias de sua existência.

Texto de Roberto Pompeu de Toledo publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692