A sociedade Bolsonaro & Filhos está a caminho de tornar-se
apenas a fachada folclórica do processo a que assistimos bestificados.
Imperioso mesmo, para quem se importa com a saúde das instituições e a
sobrevivência da democracia, é prestar atenção nos militares.
Nas Páginas Amarelas da última VEJA, um dos generais do Planalto, Luiz Eduardo Ramos, afirmou: “(…) é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”. Vivemos uma quadra em que, como na ditadura, se impõe dissecar cada vírgula, nas palavras dos oficiais.
Nas Páginas Amarelas da última VEJA, um dos generais do Planalto, Luiz Eduardo Ramos, afirmou: “(…) é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”. Vivemos uma quadra em que, como na ditadura, se impõe dissecar cada vírgula, nas palavras dos oficiais.
A fala do general Ramos teve ampla repercussão, com
destaque para o conceito de “esticar a corda”. Merece mais atenção ainda
o de “outro lado”. Quando a menção é a “esticar a corda”, vem de
imediato à mente que, na modalidade, o campeão é o próprio governo. Cinco
episódios recentes em que a corda foi esticada são: 1. Presença do presidente
em atos pró-ditadura; 2. Exposição, na famigerada reunião ministerial de
22 de abril, da intenção de armar a população; 3. Sistemática sabotagem
dos esforços de combate à pandemia de Covid-19; 4. Tentativa de fraudar os
números de vítimas da pandemia; 5. Incitação à invasão de hospitais
destinados a infectados. As duas primeiras convidam ao golpe e à guerra civil.
A terceira e a quarta atentam contra a saúde da população. A quinta desvela uma
mente insana, e todas as cinco são esticadas de corda do gênero monstruoso.
A menção ao “outro lado”, segundo tópico a ressaltar
na fala do general, vale mais pelo que oculta. Se existe um “outro lado”,
ao qual as Forças Armadas não permitirão que estique a corda, é porque
elas ocupam o lado oposto. Estamos diante de uma confissão. A de que as Forças
Armadas, contra tudo o que rege a teoria a respeito de sua natureza, têm um
lado. O ministro do Luís Roberto Barroso costuma argumentar que a
confusão entre governo e Forças Armadas é uma impossibilidade lógica. Se
assim ocorresse, sendo o governo derrotado numa eleição, seguir-se-ia o
inconcebível — as Forças Armadas serem derrotadas. O argumento falha
quando se recorda que militares no governo podem: (1) cancelar eleições, como
na ditadura de Getúlio, ou (2) torná-las mansas e de resultado
predeterminado, como na ditadura militar.
Vivemos os trinta primeiros anos do atual período
republicano sem saber o nome dos generais de plantão. O último de que tivemos
notícia foi o do general Leônidas Pires Gonçalves, que deu palpites no
período da transição democrática. Hoje eles voltam ao procênio, e o primeiro a
fazê-lo foi o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército.
Em abril de 2018, tempo de pré-campanha eleitoral, ele lançou nota de
advertência ao STF na véspera do julgamento da legalidade da prisão em
segunda instância cujo resultado poderia livrar o ex-presidente Lula da
prisão. Hoje os militares crescem no governo (são quase 3 000) num ritmo que ameaça o venezuelano, ao
mesmo tempo que, como no período
do segundo Getúlio
ou de Jango, multiplicam-se seus manifestos e notas — explícitas e
cafajestes da parte dos militares de pijama, ambíguas e ameaçadoras quando dos
palacianos.
Que querem os militares? Eis a questão. É intuitivo supor o
que não querem — a volta da esquerda ao poder. O horror do Lula parece
ter substituído na cabeça deles o horror ao comunismo. Espanta que, em nome
dessa causa, avalizem um tipo como Bolsonaro, e deem respaldo não só às
esticadas de corda enumeradas acima como a políticas que vão da degradação do
meio ambiente ao desprezo racista de camadas da população. O “bestificados”
escrito na primeira frase deste texto alude ao famoso comentário do político e
jornalista Aristides Lobo sobre o passeio a cavalo do marechal Deodoro
que passou à história como “proclamação da República”: “O povo
assistiu a tudo aquilo bestificado, atônito, surpreso (…)”.
É uma sina
do povo brasileiro assistir “bestificado” a movimentos dos militares.
Falta-nos, nesta difícil hora, um general Milley, o chefe do
Estado-Maior Conjunto americano que se desculpou por ter participado de uma
presepada do presidente Trump. Um Milley, cioso de seu papel e da
dignidade da farda, seria decisivo para a nossa democracia e iria além. Poderia
salvar o próprio Exército do que ameaça se revelar uma das maiores frias de sua
existência.
Texto de Roberto Pompeu de Toledo publicado em
VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692