segunda-feira, 1 de junho de 2020

RISCO CALCULADO OU TRAGÉDIA ANUNCIADA


Para não dizer que não falei das flores:

Como se o país não estivesse atravessando uma pandemia de proporções bíblicas e à beira de uma recessão sem paradigma na história, o presidente delirante sobrevoou a Praça dos Três poderes neste domingo (31) e, do alto, acenou para milhares de apoiadores que carregavam faixas com os dizeres "abaixo à ditadura do STF" e "intervenção militar". Coisa mais linda de se ver. Episódio igualmente tocante  ocorreu na mais paulista das avenidas, onde apoiadores extremistas do presidente lunático ganharam o contraponto das extremadas torcidas organizadas do CorinthiansPalmeirasSantos e São Paulo — a mais pura expressão do bolsonarismo vestida com a camisa de seus times  que se mostrou dispostas a sair no braço contra a volta da ditadura. Como não poderia deixar de ser, a baderna acabou em confronto com a PM

Dito isso, vamos à postagem do dia:

A exemplo de reformas domésticas e brigas em família, crises institucionais são coisas que sabemos como começam, mas não como nem quando terminam. E o imbróglio atual, com seus novos e emocionantes capítulos diários, torna-se cada vez mais preocupante.

Na última quinta-feira, as falas do presidente e de seu pimpolho 03 — o fritador de hambúrgueres que ora expõe com pompa e circunstância a magnitude da perda que sofremos por não o termo à frente da embaixada nos EUA — exibem a carantonha do golpe e exalam a catinga pútrida da ditadura. E os que têm poder para evitar o pior parecem subestimar os sinais eloquentes do autoritarismo, da ameaça real de golpe, pois continuam agindo como alguém que, acuado por cão raivoso, diz ao animal que fique calmo, que não o morda.

O ministro Celso de Mello comparou o Brasil à Alemanha de Hitler e, em mensagem reservada enviada a interlocutores no WhatsApp, disse que bolsonaristas “odeiam a democracia” e pretendem instaurar uma “desprezível e abjeta ditadura”. Relembrando Martin Niemöller, símbolo da resistência aos nazistas:

Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho, que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia, vieram
e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
A aí já não havia mais ninguém para se incomodar...


Cabe ao Augusto Aras decidir se o folclórico vídeo da despudorada reunião ministerial é prova suficiente para a abertura de processo criminal contra o presidente e, caso afirmativo, denunciá-lo; caso negativo, sepultar o inquérito. Cabe ao presidente da Câmara decidir o destino dos 35 pedidos de abertura de processo de impeachment conta o chefe do Executivo. Quando o indicou para substituir Raquel Doge na PGR, o capitão comparou o cargo de procurador-geral à figura da rainha no jogo de xadrez. Faz sentido. Um procurador negligente pode proteger amigos e perseguir adversários; um procurador justiceiro pode fulminar carreiras e destruir a biografia de inocentes; um procurador omisso pode favorecer criminosos.

Aras cresceu o olho na vaga do decano (que se aposenta em novembro) depois da traumática demissão de Sergio Moro, mas aí surgiu uma pedra no caminho: o “terrivelmente evangélico” ex-AGU e atual ministro da Justiça, André Mendonça. Na última sexta-feira, o capitão afirmou que não pretende indicar o PGR para nenhuma das duas vagas que se abrirão até o final de seu mandato (do decano agora em novembro e de Marco Aurélio em julho do ano que vem). Mas deixou no ar, assim como quem não quer nada, a possibilidade de indica-lo no caso de surgir uma “terceira vaga” — o que é curioso: a menos que imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, essa “terceira vaga” será a de Lewandowski, mas Lewandowski só completa 75 anos em 2023.

Bolsonaro constrange o PGR toda vez que insinua que poderá premiá-lo se ficar demonstrado que sua crença de engavetador é mais forte que sua desconfiança de procurador. Pega mal tratar o chefe do Ministério Público como alguém que troca a leniência pela perspectiva de um benefício pessoal.

Depois de pedir a suspensão do inquérito das fake news, criticar a divulgação do vídeo da reunião ministerial e se manifestar contrário ao pedido de apreensão do celular do presidente e do filhote 02, Aras foi condecorado com a Ordem do Mérito Naval. O laureado faria um bem a si mesmo se dissesse um par de palavras sobre o assédio de Bolsonaro. Algo assim: "Me respeite, presidente." Faria ainda melhor se, ao decidir sobre os inquéritos que interessam ao dito-cujo, revelasse que tem algum apreço pela curiosidade.

O que diferencia um procurador-geral da República de um engavetador é a curiosidade. O engavetador tem uma vontade inabalável de acreditar. O procurador tem um desejo irrefreável de descobrir. Aras precisa esclarecer rapidamente se o seu interesse é um ponto de exclamação ou de interrogação. A coisa está ficando feia.

Ontem, o capitão trevoso sobrevoou de helicóptero a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes e, do alto, acenou a cerca de 5 mil apoiadores que participavam de ato pró-governo. Em seguida, foi ao encontro dos manifestantes e, sem máscara (como de hábito), cumprimentou pessoas aglomeradas sobre a cerca de proteção. Depois, montando um cavalo emprestado pela PM, percorreu a área cercada em frente ao Planalto e acenou à multidão, que gritava “mito”, e “acabou, porra!”, além de exibir cartazes com “Fora, Maia!”.

Sempre que é instado a decidir sobre os pedidos de impeachment já apresentados contra Bolsonaro, o presidente da Câmara diz que deseja "deixar como marcas de sua passagem pela presidência da Câmara a moderação e a aprovação de uma agenda econômica prioritária para o país", e que "a deflagração de uma guerra política, principalmente em meio à grave crise que o Brasil enfrenta, não estaria entre as suas prioridades". Isso me faz lembrar Dias Toffoli, que, ao substituir Cármen Lúcia na presidência do STF, em setembro de 2018, disse que almejava entrar para os anais da corte como um “presidente conciliador”. Sem comentários!

É evidente que a “ponderada posição” de Rodrigo Maia não encerra apenas uma preocupação com o país, como ele tanto faz questão de ressaltar, mas traz um cálculo político: sua moderação e a pauta econômica são suas apostas para continuar se equilibrando como o principal interlocutor dos donos do dinheiro no Congresso, mesmo depois de deixar a presidência da Câmara, bem como de figurar, pelo menos como vice, em alguma das chapas presidenciais de centro em 2022.

Voltando a André Mendonça, não é função do ministro da Justiça impetrar habeas corpus, ainda que em tese, nada o impeça de fazê-lo — qualquer cidadão pode apresentar um HC em nome de outrem, redigindo-o, inclusive, numa folha de papel de pão (houve um tempo em que o pãozinho que a gente comprava na padaria era embrulhado numa folha de papel pardo, e a carne, no açougue, embrulhada em jornal). Mas no caso em tela existem algumas particularidades. Primeiro, porque a atuação do ministro "terrivelmente evangélico” caracteriza desvio de intenção; segundo, porque ele incluiu nos termos da ação o pedido de que sua solicitação em favor de Weintraub, caso seja acolhida, seja estendida a todos os demais alcançados pelas medidas do ministro Alexandre de Moraes.

A atuação de um integrante do governo federal em favor de bolsonaristas que não têm cargos na administração torna inexplicável, para dizer o mínimo, a impetração do habeas corpus por quem responde pelo ministério responsável por zelar pela Justiça no País para toda a sociedade, e não apenas para apoiadores do governo.

Como se vê, vale tudo na guerra, no amor e na política.