terça-feira, 2 de junho de 2020

UM PÉ EM CADA CANOA



Nas manifestações do último domingo, apoiadores extremistas do presidente lunático ganharam na mais paulista das avenidas o contraponto das extremadas torcidas organizadas de times de futebol, que se mostraram dispostas a sair no braço contra a volta da ditadura — o furdunço só não foi pior porque a PM dispersou os antípodas com uma chuva de bombas de gás.

Em Brasília, onde a participação nos protestos foi maior, Bolsonaro, com o ministro da Defesa a tiracolo, sobrevoou de helicóptero a Praça dos Três poderes e acenou para os apoiadores, muitos dos quais carregavam faixas com os dizeres "abaixo à ditadura do STF" e "intervenção militar". Depois, seguiu a pé até onde estavam os manifestantes e apertou a mão dos que se aglomeravam ao longo da grade. Em seguida, levou a claque ignara ao delírio montando num cavalo da PM e percorrendo novamente o local antes de retornar à residência oficial.

Observação: Um dia após operação policial ordenada pelo STF ter atingido empresários, políticos e ativistas bolsonaristas, o presidente elevou as ameaças de se insubordinar contra a corte. "Não teremos outro dia como ontem, chega'", disse o capitão, em declaração transmitida pela rede CNN Brasil. "Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de fake news" afirmou. À fala somaram-se declarações de tom golpista do filho Eduardo, para quem "será natural se a população recorrer às Forças Armadas caso esteja insatisfeita com o desempenho do Congresso e do STF".

A situação de Bolsonaro fica menos confortável a cada dia, mas, fiel à crença de que para sair do buraco é preciso cavar mais fundo, ele continua atuando contra os próprios interesses. Isso ficou patente na semana passada quando, após o Supremo deflagar operação que atingiu deputados, empresários e blogueiros alinhados com o Planalto, esbravejou o famoso “Acabou, porra!”. Não à toa, a mais recente pesquisa Datafolha mostra que já não existe mais a equivalência dos três terços entre os que consideram o governo ótimo, regular ou péssimo. A parcela dos fiéis continua em 33%, mas a coluna do meio desceu para 22% e a rejeição subiu para 43%.

Labora em desfavor do capitão delirante o inusitado alinhamento dos membros do STF, resultante da obstinação do chefe do Executivo em acossá-los. Se o Congresso ainda mantém um pé em cada canoa, isso se deve à necessidade do presidente da Câmara de não perder de vez a interlocução com o Centrão — e sua prudência em não atropelar os fatos, dada sua condição de juiz da pauta do impeachment e seus 36 pedidos encaminhados à Casa. Mesmo assim, tanto ele quanto o presidente do Senado se posicionam constantemente contra a radicalização militante do presidente.

A incógnita, para além das notas de afirmação democrática, continua a ser a posição das Forças Armadas. Objetivamente, Bolsonaro não tem o poder — a não ser o do grito — para dar um passo adiante das meras intenções autoritárias. Já as instituições detêm as armas mais poderosas, dentre as quais a Constituição e o bom senso majoritário da população, com as quais, aos poucos, vão encurtando o prazo de validade do capitão.

Nos últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência à Carta Magna nem se discutiu, nem mesmo no plano hipotético, a possibilidade de golpe militar. Não obstante, a ascensão de Bolsonaro subverteu ordem dos fatores, posto que altas patentes aceitaram se submeter às ordens de um capitão (reformado por indisciplina, acrescente-se), tornado a instituição alvo de suspeições golpistas.

A compreensão de que generais que dividem mesa de reunião ministerial — na qual a postura e a linguagem de alguns interlocutores fariam corar marinhos e as marafonas que os servem na zona portuária — não traduzem o pensamento majoritário no contingente das corporações armadas deixou de ser perceptível para sociedade quando os ministros estrelados não moderaram, como era a expectativa, os modos do general da banda. Resta saber o que farão, além de comunicados oficiais de afirmação democrática, para evitar o alastramento do contágio e, com ele, a perda da indispensável credibilidade.

O ministro general Fernando Azevedo e Silva tem suscitado críticas dentro das Forças Armadas por estar encampando de forma excessiva e pública o discurso de Bolsonaro. E com efeito. Às Forças Armadas não compete defender o presidente da República — embora o presidente da república seja o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Tampouco o artigo 142 da Constituição assegura ao presidente a prerrogativa convocar as FFAA para fechar o Congresso e o STF e decretar a “intervenção militar constitucional” que os apoiadores atávicos do capitão delirante têm reivindicado nas redes sociais e em manifestações de rua, embasando-se no artigo 142 da Constituição — ou melhor, numa leitura distorcida desse artigo, que diz o seguinte:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Vê-se claramente que o dispositivo legal em assunto determina as funções das Forças Armadas, mas não prevê qualquer possibilidade de tomada do poder pelos militares — que, mesmo temporária, caracterizaria um golpe de Estado. Além disso, o artigo 34 da Constituição prevê a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal, mas limitada a situações específicas. Além disso, mesmo nesses casos é necessária a autorização do Congresso Nacional e da Assembleia Legislativa local em até 24 horas.

Observação: O jurista Modesto Carvalhosa, co-signatário do impeachment de Dilma e autor de pedidos de impedimento de ministros do STF, considerou “golpista” a interpretação feita por Ives Gandra Martins do artigo 142 da Constituição Federal, compartilhada por Jair Bolsonaro e bolsonaristas para intimidar o Supremo. “O art. 142 da CF coloca as Forças Armadas a serviço da manutenção da lei e da ordem a pedido de qualquer um dos três Poderes. Não dá prerrogativa de o Exército intervir no STF. O povo brasileiro não admite essa interpretação golpista”, escreveu Carvalhosa no Twitter. Ângela Gandra, filha Ives Gandra Martins, tem cargo no governo Bolsonaro. Ela é secretária nacional de Família, no ministério comandado por Damares Alves.

Em entrevista durante a campanha eleitoral, o então candidato a vice-presidente, general Hamilton Mourão, afirmou que a Constituição permitiria ao próprio presidente dar um “autogolpe”, convocando as Forças Armadas para garantir o funcionamento dos Poderes em uma situação que definiu como “anárquica”. Mas depois relativizou sua afirmação: “Eu não vejo no momento que o Brasil está vivendo, com todas dificuldades que nós temos, com um Congresso com muita gente envolvida em atos de corrupção, com um Executivo sem conseguir realizar suas tarefas. Às vezes, com as reclamações que nós temos em relação à lentidão do Judiciário, à falta de ação do Judiciário. Mas prosseguem funcionando as instituições brasileiras”.  

A política de confronto está chegando a seu limite, e em algum momento o presidente terá de decidir até quanto estará disposto a pagar para fugir das investigações que o enroscam e o que fará com seu triunvirato — que virou um fardo, mas por agir em defesa do pai. Quanto mais ódio, tanto maior isolamento político e mais alto o preço cobrado pelo Centrão em troca de proteção contra eventuais pedidos de impeachment ou denúncias criminais. Já os filhos, alvejados no inquérito sobre a PF e no caso das fake news, serão usados como peças do enredo em que Bolsonaro fará o papel de vítima de perseguição.

A conferir como o presidente reagirá quando a pandemia baixar, os mortos forem contabilizados e a população atribuir a culpa a ele, Bolsonaro, e não aos governadores e prefeitos, contrariando a narrativa estapafúrdia que só convence os convertidos. Não há nada que o capitão possa fazer contra o STF, mas ele parece não ter noção do que sejam os limites de um presidente. É nítido que, em sua psicopatia narcisista e ególatra, ele se julga acima de todos e só governa para si mesmo e para os seus.

Enquanto ficar na retórica, o capitão caverna continuará produzindo a tensão e o permanente conflito que ele tanto aprecia. Mas para fechar o STF seria preciso mandar o soldado e o cabo (como disse o pimpolho 03), o que exigiria o apoio das Forças Armadas e, portanto, seria um golpe militar.