sexta-feira, 3 de julho de 2020

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS E UM MAFIOSO DE COMÉDIA


A educação no Brasil está horrível” disse Bolsonaro a apoiadores, na tarde de ontem, no chiqueirinho defronte ao Alvorada. Menos mal que o presidente tenha descoberto que merda fede. Falta agora ele descobrir quem foi o autor da cagada, ou por outra, quem empossou a piada de humor negro colombiana em janeiro de 2019, quem a substituiu pelo dublê de ativista combativo e ministro de merda (que ganhou uma diretoria no Banco Mundial como prêmio pelos bons serviços à frente de MEC) e, finalmente, por um suposto oficial da marinha, professor e pós-doutor, cuja permanência no cargo se tornou insustentável devido a divergências entre seu lustroso currículo e os fatos à luz inclemente da realidade. Não podia mesmo ter dado certo. Dito isso, passemos à postagem do dia.

O Brasil não é, positivamente, um país para distraídos. A verdade que vale hoje pode não estar valendo nada amanhã, e se o sujeito não presta muita atenção nas mudanças súbitas que fazem o certo virar errado e o errado virar certo vai acabar andando fora do passo.

Até outro dia, quando havia por aqui algo chamado Operação Lava-Jato e os corruptos viviam no medo de acordar com o camburão da Polícia Federal na sua porta, era exigida das autoridades públicas, como se exige de um muçulmano diante de Alá, uma obediência cega, surda e muda ao “direito de defesa”. Hoje, quando a grande atração em cartaz é o combate ao que se considera ameaças à democracia, e quem está aflito com a PF são os suspeitos de extremismo de direita, o que se cobra da Justiça é o contrário: vale passar por cima da lei e de seus detalhes incômodos para punir tudo o que possa ser descrito como “fascismo”.

Trocaram os polos da pilha – de negativo para positivo e vice-versa. O primeiro dos dez mandamentos, nos tempos de Lava-Jato, era: é preciso combater a corrupção, sim, mas desde que as leis sejam respeitadas em suas miudezas mais extremadas. O problema do Brasil, na época, não era o saque ao erário e a punição dos ladrões; era a possibilidade de haver o mais delicado arranhão em qualquer direito dos acusados. Muito melhor deixar um culpado sem castigo do que correr o mínimo risco de punir alguém se não for cumprido tudo o que as milhões de leis em vigor no país oferecem em sua defesa. O primeiro mandamento, hoje, é o oposto: não se pode ficar com essa história de “cumprir a lei” ao pé da letra, pois “a democracia tem de estar acima de tudo”.

Onde foram parar os “garantistas”? Você talvez ainda se lembre deles: eram os ministros do STF, advogados de corruptos milionários e toda uma multidão de juristas amadores que acusavam a Lava-Jato de desrespeitar o direito de defesa, exigiam que suas decisões fossem anuladas e pediam punição para o juiz Sérgio Moro e os procuradores da operação. O ministro Gilmar Mendes chamou a Lava-Jato de “operação criminosa” e acusou a PF da prática de “pistolagem”. Também disse que “a República de Curitiba é uma ditadura de gente ordinária” e que a Lava-Jato foi “uma época de trevas”.

O presidente do STF, Antônio Dias Toffoli, acusou a operação de “destruir empresas”. Seu colega Marco Aurélio Mello disse não queria ser substituído por Moro quando se aposentasse.

Temos agora o episódio da “ativista” de direita que foi presa por um mínimo de cinco dias sob a acusação de atentar contra a Lei de Segurança Nacional. Sara xingou a mãe do ministro Alexandre de Moraes; disso não há dúvida. Mas desde quando xingar a mãe de ministro ameaça a segurança do Brasil, ou de qualquer país? O crime, aí, se a Justiça assim o decidir, é o de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal. Não pode ser outro, e para ele a lei não prevê prisão temporária de cinco dias, nem de mais e nem de menos. Conclusão: extremistas de direita devem ter menos direitos que extremistas de esquerda, ou que delinquentes de outros tipos.

Da mesma forma, há muito escândalo porque o grupo de Sara foi soltar rojões na frente do STF. Mas ninguém achou que a segurança nacional foi ameaçada quando picharam de vermelho o prédio da ministra Cármen Lúcia, dois anos atrás, em Belo Horizonte, ou quando manifestantes “a favor da democracia” e “contra o fascismo” jogam pedra na polícia, destroem propriedade e tocam fogo em bancas de jornal. O que se condena, no Brasil de hoje, não é o que foi feito. É quem faz.

Mudando de um ponto a outro, quando Fabrício Queiroz foi preso num simulacro de escritório do então advogado de Flávio Bolsonaro em Atibaia, o mafioso de comédia parecia ter violado a ética da advocacia e a própria legislação. Mas suas manifestações mais recentes demonstraram tratar-se de uma alma superior.

Wassef contou à revista Veja que soube que Queiroz estava às voltas com um câncer. Ficou sensibilizado. O presidente, amigo do ex-factótum do clã desde sempre, cortara qualquer contato com ele, a exemplo de seu ex-chefe na Alerj. Assim, o nobre causídico decidiu ajudar. Não porque era advogado de Flávio, mas por razão "100% humanitária", como declarou esse ser humano especial.

Depois, Wassef descobriu que havia uma trama para matar Queiroz e colocar a culpa na família Bolsonaro, acusando o presidente e seu filho de queima de arquivo para evitar uma delação. O que seria, naturalmente, uma fraude. A partir desse momento, além de proteger a vida de Queiroz, Fred passou a favorecer o presidente e seu filho, evitando que um cadáver lhes caísse no colo. Fez isso sem avisar aos Bolsonaro. O presidente poderia ter acionado a Polícia Federal. Mas por que preocupá-lo com algo tão trivial? O doutor revelou-se um sublime cultor da amizade.

Tratado como criminoso, Wassef diz que a Justiça e o MP-RJ deveriam lhe agradecer. Não fosse por suas iniciativas, Queiroz não estaria vivo. Bolsonaro e sua família estariam sendo investigados por um suposto assassinato.

O advogado disse ter pedido desculpas ao presidente pelos dissabores que possa ter causado. Mas não receia ser esquecido pela primeira-família. Além de todas as qualidades que fazem dele um ser notável, Wassef realça sua lealdade. "Não traio ninguém nunca."

Wassef pronunciou uma frase simbólica: "Não se deveria virar as costas para antigos aliados." Um observador maldoso poderia interpretar como um recado. Mas o douto jurisconsulto se declara apaixonado por Bolsonaro: "Amo o presidente", disse ele. Confesso que fiquei decepcionado comigo mesmo por ter pensado mal de alguém como o doutor Wassef. Se alguém tem culpa nessa história, sou eu.

Na tarde de ontem, em depoimento presencial tomado pelo promotor Eduardo Benones no Complexo Penitenciário de Bangu, Queiroz falou por cerca de duas horas e meia. 

Segundo Benones, “o depoimento dele não inocentou ninguém, foi capaz de tirar ninguém da cena do crime, entendeu? Dá pra continuar investigando. Foi um bom depoimento. A gente continua acreditando que a partir de hoje, mais do que nunca, que as investigações devem prosseguir”. Analistas da GloboNews avaliaram que o depoimento reforça as suspeitas de vazamento (conforme denúncia do empresário Paulo Marinho, que participou da campanha de Bolsonaro à presidência).

Esse foi o segundo depoimento do ex-assessor de Flávio Bolsonaro. No primeiro, prestado à PF do Rio em 29 de junho, no inquérito que também analisa as denúncias na operação, Queiroz disse que não obteve informações privilegiadas, que não foi demitido porque Flávio teve conhecimento prévio da Operação Furna da Onça, mas sim exonerado a pedido, porque estava “cansado de trabalhar no cargo” e que precisava tratar de sua saúde”.

O MP-RJ intimou o ex-chefe de Queiroz a depor, a despeito de sua defesa ter conseguido procrastinar a investigação alegando conflito de competência (na semana passada, a Justiça do Rio transferiu a apuração do caso para a segunda instância, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça fluminense; o STF deve devolvê-lo à instância de origem, mas somente em agosto, devido ao recesso do Judiciário). 

Os advogados de Zero Um estrilaram, mas o MP-RJ afirmou em nota que a chefia institucional delegou aos promotores de Justiça do GAECC os poderes para prosseguirem nas investigações até seu termo final. "Diante disso, as investigações seguem seu curso normal, sem paralisações desnecessárias por conta de mudanças de competência jurisdicional", acrescentou o MP.

Com J.R. Guzzo e Josias de Souza