Só mesmo quem acredita em Papai Noel, na Fada do
Dente e na inocência de Lula põe fé na mal-ajambrada bandeira
branca com que Jair Bolsonaro passou a acenar para o STF e
o Congresso.
Esse armistício, trégua, paz armada — enfim, o rótulo é o
que menos importa — não passa de uma estratégia adotada pelo presidente e sua
prole depois da prisão de Fabrício Queiroz e diante da perspectiva
de Fred Wassef não ficar de bico calado.
Consta que o ex-factótum do clã estaria negociando uma delação premiada, mas seu advogado, Paulo Catta Preta, afirma tê-lo questionado a respeito e ouvido dele que “não quer delatar e não tem o que delatar”. Já a mulher de Queiroz, foragida desde 18 de junho, usou terceiros para consultar pelo menos dois escritórios de advocacia sobre a possibilidade de delação. E ela sabe tão bem quanto o próprio Queiroz como funcionava o esquema de rachadinha no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro na Alerj. O mafioso de comédia, por seu turno, enrola-se mais a cada nova narrativa que cria para explicar por que diabos Queiroz
foi pilhado em seu simulacro de escritório de advocacia em Atibaia.
Talvez Queiroz tenha mudado de ideia (sobre a delação) depois da
vitória parcial obtida pela advogada Luciana Pires, que representa Flávio
Bolsonaro no imbróglio das “rachadinhas” e agora conta com a parceria do ex-advogado
de Sérgio Cabral, Rodrigo Roca, já que Fred Wassef se
afastou do caso “para não prejudicar a família Bolsonaro”. Mas a decisão
da 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ, que assegurou o direito de foro privilegiado
ao primogênito do general da banda, deve ser derrubada, pois vai de encontro ao
entendimento do próprio Supremo. Como a
decisão sobre o recurso do MP-RJ cabe a ninguém menos que o ministro Gilmar
Mendes, é melhor cantar a caçapa depois que a bola cair (e só vai cair em agosto, depois do recesso de meio de ano dos magistrados; afinal, ninguém é de ferro, não é mesmo?).
Observação: Paira também sobre o ex-deputado e hoje senador Flávio Bolsonaro a ameaça de ter o mandato parlamentar cassado, mas eu duvido muito disso, já que “ética” e “política” são conceitos mutuamente excludentes, e tanto esse verbete (falo de "ética") quanto seus sinônimos não constam do dicionário das comissões de ética da Câmara e do Senado.
Dora Kramer — a melhor colunista da Veja, em minha desvaliosa opinião — publicou na edição da semana passada da revista que “em um ano e meio, de maneira mais
acentuada nos últimos quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de
intimidadores a intimidados”, referindo-se à possibilidade de Bolsonaro
golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e absolutos
poderes. Eu bem que gostaria de compartilhar desse otimismo.
Tudo bem que depois da prisão de Queiroz o general da
banda suspendeu as duas funções diárias do cirquinho que promovia na porta do
Alvorada, e vem se abstendo de participar das performances dominicais em que
seus apoiadores descerebrados defendem o fechamento do Congresso e do STF,
a instalação de uma ditadura militar com o “mito” à frente e a reedição
do AI-5 (ainda que a maioria deles não faça a menor ideia do que seja o AI-5).
Dora diz que o presidente & filhos foram acometidos de
um súbito gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos
ideológicos perderam a loquacidade. Lembra que faz algum tempo que Damares
e Araújo não dão vazão em público a suas ideias reacionárias, e que os
ativistas do extremo digital reduziram drasticamente sua presença nas redes e
trataram de apagar vídeos no YouTube para eliminar rastros e não
facilitar a coleta de provas nas investigações acerca dos patrocínios e da
organização de atos atentatórios à verdade e à Constituição. Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato,
mas já perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força
de expressão) com a estridência de suas cordas vocais.
Dizem que a luz do sol é
o melhor detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao
cenário tem sido o olho e as mãos da lei. Não são fortes o bastante para
impedir o retrocesso civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT
com o menosprezo do picareta dos picaretas pela educação formal, pelo uso
correto do idioma e pelo respeito à ética (ói ela aí traveis) na política e com a introdução
da dinâmica do “nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro.
Mas, se é real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos
mecanismos de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na
era petista.
Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa
engrenagem na imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse
aparato legal que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas
comparações com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário,
Legislativo e Forças Armadas foram tomados de assalto como
pré-requisito para transformar a Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui,
fica a cada dia, a cada fato, a cada reação mais patente: isso é impossível.
Dora pondera ainda que “o candidato a golpista está
identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A cada dobra de aposta nesse
jogo perde mais espaço no tabuleiro onde se posicionam as instituições, a massa
crítica de setores organizados e a maioria da sociedade, conforme atestam as
pesquisas de opinião”, mas salienta que “o fracasso dos intentos
autoritários não significa que esteja tudo bem, que o governo Bolsonaro não
tenha imposto grandes malefícios ao nosso país (...) que o Brasil era um, hoje
é outro bem pior aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.”
Dora pergunta “se a situação tem remédio ou se
remediada está”, e responde que nem um coisa, nem outra: “Para a segunda,
que implicaria o impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a
primeira, dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair
Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um
milagre.” E aí eu volto ao que disse no parágrafo de abertura desta
postagem: “Só mesmo quem acredita em Papai Noel, na Fada do Dente e na
inocência de Lula põe fé na mal-ajambrada bandeira branca com que Jair Bolsonaro
passou a acenar para o STF e o Congresso...”
Somada às justificativas estapafúrdias de D. Fred,
essa história me traz à mente a “estratégia do caldeirão furado”. De
acordo com Christian Dunker, psicanalista, professor titular do
Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia
e Psicanálise da USP, “quando temos algo que está recalcado, mobilizamos
justificativas que, independentemente, seriam até razoáveis, mas, em conjunto,
provam que a coisa não fica de pé; no afã de esconder o que queremos esconder, trazemos
um superávit de argumentos."
A associação com o "caldeirão
furado" se deve ao fato de essa teoria ser baseada na história do
sujeito que procura outro e reclama porque este devolveu furado um caldeirão
que havia sido tomado em empréstimo. E ouve como resposta: "nunca vi o
seu caldeirão", "nunca peguei o seu caldeirão",
"mas quando o devolvi, ele já estava furado".
Resumo da ópera: Quem fala demais da bom-dia a cavalo.