sexta-feira, 17 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — OITAVA PARTE


Plantar populistas no poder sempre foi a melhor maneira de colher consequências indesejáveis. Mas seria preciso ter bola de cristal para prever que Jânio Quadros, eleito presidente em 3 de outubro de 1960 e empossado em 31 de janeiro de 1961, renunciaria dali a pouco mais de seis meses, e que, ao fazê-lo, pavimentaria a estrada que levaria ao golpe de 1964, aos 21 anos de ditadura militar e a quase 3 décadas sem eleições diretas para presidente da República.

Jânio sempre foi evasivo quanto aos motivos pelos quais deixou o gabinete mais cobiçado do Palácio do Planalto menos de 7 meses depois de lá se ter aboletado, sempre demonstrou desconforto quando questionado a respeito, o que alimentou teorias conspiratórias sobre o que, em última análise, não passou de mais um do atos espetaculosas do homem da vassoura (Jânio respaldou sua campanha na promessa de "varrer a corrupção" e adotou como símbolo uma vassoura). Certa vez, durante um almoço em casa de amigos, uma convidada suscitou o assunto, e ele respondeu: “Renunciei porque a comida no Palácio da Alvorada era uma droga como é aqui, e a companhia era quase tão ruim quanto a companhia daqui”. E foi-se embora sem sequer se despedir do anfitrião.

Mas bastava ler as entrelinhas para inferir que o verdadeiro propósito do então presidente foi causar comoção popular e forçar o Congresso a lhe pedir que reconsiderasse. Tivesse o plano funcionado, Jânio muito provavelmente se sentiria fortalecido e teria posto em prática o plano do autogolpe, que lhe permitiria governar sem ser "incomodado" pelo Legislativo. Vale lembrar que a cúpula militar via em João Goulart, o vice eleito com o apoio da esquerda (naquela época, os cargos de presidente e vice eram preenchidos mediante votações independentes), um herdeiro do getulismo e a porta de entrada para o comunismo no Brasil.

Jânio acertou quanto ao vice e os militares, mas enganou-se em relação ao Congresso, que não só aceitou sua renúncia como se aproveitou do fato de Jango estar em missão na China para nomear presidente interino o deputado Ranieri Mazzilli  (então presidente da Câmara Federal), enquanto os ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica formaram uma junta informal para obstar a posse de Jango. Como o que está ruim consegue piorar, a tramoia acirrou os ânimos e aprofundou a crise a tal ponto que foi preciso aprovar a toque de caixa uma emenda constitucional para instituir o parlamentarismo e empossar Jango como Chefe de Estado (ou seja, como presidente decorativo, com poderes reduzidos). 

A gestão de Jango seria marcada por diversas turbulências. A fase parlamentarista de seu governo durou 14 meses e teve três primeiros-ministros — Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes de Lima. O Brasil vivenciou ingerências presidenciais nas atividades dos gabinetes ministeriais e decisões unilaterais do Congresso, não raro em total desacordo com o primeiro-ministro. Em janeiro de 1963, após a antecipação do plebiscito marcado originalmente para 1965, o presidencialismo foi restabelecido, mas, devido a diversos fatores que não vêm ao caso neste momento, não foi a panaceia que muitos esperavam. Jango ganhou poderes de chefe de governo, mas meteu os pés pelas mãos e perdeu sua base de apoio (composta majoritariamente por partidos ligados a interesses de latifundiários). Os EUA, que o consideravam "muito à esquerda", passaram a financiar conservadores e reacionários para desestabilizá-lo politicamente, ao mesmo tempo que parte da ala militar defendia a implementação de uma ditadura para pôr ordem no galinheiro.

Em 1964, politicamente emparedado e sem condições de levar adiante suas reformas, Jango resolveu guinar de vez à esquerda, e no célebre discurso da Central do Brasil, em 13 de março, reafirmou publicamente seu compromisso de realizar a qualquer custo as Reformas de Base. A resposta conservadora não se fez por esperar: seis dias depois, meio milhão de pessoas mobilizadas por grupos direitistas realizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, pedindo a tomada do poder pelos militares.

Na virada de 31 março para 1º de abril de 1964 (que coincidentemente é o dia dos tolos), um levante iniciado em Juiz de Fora avançou para o Rio de Janeiro. Jango foi instado por Leonel Brizola — seu cunhado — a resistir, mas negou-se para evitar uma guerra civil. O golpe militar foi completado no dia 2 de abril, quando Auro de Moura, presidente do Senado, declarou vaga a presidência da República. Dias depois, uma vez decretado o Ato Institucional nº 1 para embasar o que viria a seguir, o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco assumiu a presidência. 

Começavam, então, os célebres anos de chumbo, que perdurariam até 1985.

Continua no próximo capítulo...