Viralizou nas redes sociais o
vídeo em que se vê um cidadão mal educado que, flagrado sem máscara quando caminhava numa praia
do litoral paulista no último sábado, chamou de analfabeto o guarda civil
municipal que lhe pediu — educadamente, vale ressaltar — que colocasse a
focinheira, digo, a proteção facial de uso obrigatório em logradouros públicos (segundo decreto
da prefeitura de Santos).
“Decreto não é lei”, ouve-se claramente o
insolente dizer ao guarda — a quem caberia tê-lo lembrado, com o
devido respeito, que desembargador de justiça é autoridade no Tribunal; na
rua, é um cidadão como outro qualquer e, portanto, sujeito à lei como qualquer outro
cidadão.
É por culpa de gente como o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que o Judiciário perdeu a
credibilidade e o respeito da população. Salvo raras e honrosas exceções, nossos
Tribunais tornaram-se antros de ególatras arrogantes. A exemplo dos ocupantes de
cargos eletivos — e isso vale para todas as esferas do Executivo e do
Legislativo, do mais simples edil ao todo-poderoso inquilino de turno do
Palácio do Planalto —, juízes, desembargadores e ministros togados são
servidores públicos. Categorizados, mas ainda assim funcionários pagos com dinheiro público para servir ao povo. E um
poder que se serve em vez de servir é um poder que não serve.
A culpa, volto a insistir, é dos apedeutas que votam
nessa récua. Afinal, ninguém
brota no gabinete por geração espontânea. No Judiciário a história é um pouco diferente — magistrados são concursados, mas os ministros dos
tribunais superiores são indicados pelo chefe do Executivo e chancelados
pelo Senado. E é aí que a porca torce o rabo. Senão vejamos.
O povo elege o presidente, mas compete ao Congresso
Nacional (que engloba a Câmara Federal e ao Senado) julgar o morubixaba da tribo por crime de responsabilidade (crimes comuns são investigados e
julgados pelo STF, mas somente se 2/3 da Câmara Federal
autorizarem a abertura do processo).
O julgamento do impeachment cabe ao Senado,
mas quem determina se o pedido deve ser aceito ou arquivado é o
presidente da Câmara. Dado o sinal verde de seu presidente, o plenário da Casa decide se o caso segue ou não adiante — para que siga, é preciso maioria
qualificada de 2/3 (ou seja, que pelo menos 342 dos 513 deputados votem nesse sentido).
Deputados federais e senadores tem direito a foro especial por prerrogativa de função — isto é, são processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Detalhe: mais de 30% dos deputados federais são investigados, denunciados ou réus naquela Corte. E o percentual entre os senadores é ainda maior — cerca de 40%.
A Constituição garante a magistrados vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio. Os
togados supremos são passíveis de impeachment, mas compete ao presidente do
Senado decidir se dá ou não andamento ao pedido de abertura do processo, e
ao plenário o julgamento do mérito. Mutatis mutandis,
a coisa lembra um pouco o que disse certa vez o jogador Vampeta sobre sua relação
com o Flamengo. Em outras palavras, os parlamentares não mexem com os ministros, os
ministros não mexem com os parlamentares e todo mundo fica feliz.
Voltando à carteirada (ou “chave de crachá”, ou “sabe com quem
você está falando?”) do desembargador desmascarado, é bom lembrar que esse não foi um episódio isolado, embora isso não torne esse caso específico menos lamentável. A questão é que não
vai acontecer absolutamente nada.
O “pior” que poderia acontecer a sua alteza o desembargador seria perder o cargo, mas essa "punição" resultaria na sua aposentadoria compulsória. Assim, dispensado de dar expediente no Tribunal, mas percebendo salário integral e todas as demais vantagens pecuniárias inerentes ao cargo, o servidor desembargador teria mais tempo para caminhar pela orla da praia em busca de guardas metropolitanos para desacatar. É revoltante!
Igualmente revoltante é o espírito de porco, digo, espírito
de corpo de alguns integrantes da categoria (coisa que também não chega a surpreender,
sobretudo no Brasil — basta lembrar que Aécio Neves ainda não foi
cassado, que Dirceu e Lula, apenas para citar dois criminosos
notórios que foram condenados pela Justiça criminal e estão soltinhos da silva).
O advogado Alberto Carlos Dias, que preside a Comissão de Direito
dos Refugiados e dos Migrantes da OAB/SP, Subseção de Santo André, saiu em
defesa do desembargador-faraó. Segundo o nobre causídico, a conduta do magistrado, que é “uma
pessoa idosa” e foi abordado “de maneira abrupta”, foi “retratada
indevidamente pelos veículos de comunicação, com o fito apenas em impingi-lo
como autoritário” (clique aqui
para ler a nota na íntegra).
Atualização: A OAB/SP Subseção Santo André anunciou o afastamento do advogado do cargo de presidente da Comissão. Em nota e em vídeo, a presidente da OAB de Santo André, Andréa Tartuce, disse que "nenhuma comissão setorial possui autorização para falar em nome da entidade" e que "o tema enfrentado não guarda relevância com a referida comissão". Por isso, o advogado seria destituído da função. Após a repercussão do documento, Dias divulgou outra nota dizendo que a opinião era pessoal, e pedindo desculpas à Ordem. "Muito embora eu tenha feito a retratação, falei em nome próprio, da comissão que eu presido. Nunca falei em nome da OAB", argumentou. "Fui destituído por emitir opinião."
Em dezembro de 2018, num voo de São Paulo para Brasília, o
ministro Ricardo Lewandowski mandou
prender um passageiro que ousou lhe
dirigir a palavra para dizer que “o STF é uma vergonha” (o abusado foi
levado para a PF do aeroporto de Brasília, onde prestou depoimento
e foi liberado em seguida).
Gilmar Mendes, o grande, foi
achincalhado mais de uma vez por brasileiros quando caminhava pelas
ruas da capital portuguesa. Em julho do ano passado foi a vez de Alexandre
de Moraes, durante um evento na cidade portuguesa de Coimbra, onde foi
chamado de golpista. “Elogios” parecidos foram endereçados também ao governador
fluminense Wilson Witzel e os ministros Gilmar Mendes (o
inevitável), Marco Aurélio e Lewandowski, que estavam presentes
no evento,
Até o julgamento do Mensalão, quase ninguém sabia quem eram os ministros do STF, embora quase todo mundo soubesse de cor e
salteado os nomes dos titulares da Seleção Canarinho. Noves fora algum
ouvinte contumaz da “Voz do Brasil”, a maioria dos brasileiros jamais ouvira falar no Supremo. Hoje, dá-se o inverso:
qualquer zé-mané é capaz de citar nominalmente pelo menos um togado. Gilmar
Mendes, a quem José Nêumanne se refere como “Maritaca de
Diamantino”, é arroz de festa, mas Dias Toffoli — o “Maquiavel de
Marília”, também segundo Nêumanne — e Alexandre de Moraes costumam
ser igualmente lembrados. E nem sempre bem lembrados. E não sem razão.
Segundo publicou a revista eletrônica Crusoé, o ministro
Gilmar Mendes é sócio de uma faculdade que recebe patrocínios oficiais e
nem tanto. Antonio Dias Toffoli recebe — ou recebia —
uma mesada de 100 mil reais da mulher advogada e o COAF não
foi informado pelo banco.
Magistrados vão a convescotes patrocinados por
bacharéis com causas em tribunais superiores. Luís Roberto Barroso (um
dos poucos ministros que eu admiro, apesar de nem sempre concordar com suas decisões)
desabafou que havia gabinetes no Supremo “distribuindo senha para soltar
corruptos”.
Ricardo Lewandowski notabilizou-se como fiel escudeiro da bandidagem vermelha no julgamento da Ação
Penal 470 (também conhecida como “processo do Mensalão”). Perguntado
pela imprensa sobre quando liberaria o relatório do ministro Joaquim
Barbosa, o eminente magistrado, então relator do processo, respondeu que “primeiro
teria de recebê-lo”. Ocorre que o relatório já estava disponível havia sete
meses na rede local do STF; segundo se noticiou na época, a
estratégia de Lewandowski era dar tempo ao tempo para que alguns
crimes prescrevessem.
Observação: Lewandowski só
liberou o processo para julgamento depois de receber uma “prensa” do
ministro Ayres Britto, mas mais constrangedor foi ele ter
tramado com o advogado Márcio Thomas Bastos o fatiamento do
processo, remetendo às instância estaduais a parte referente aos réus que não
tinham direito ao foro privilegiado, como era o caso de José Dirceu.
Se a maracutaia tivesse prosperado, muitos bandidos teriam saído impunes por
obra e graça da prescrição.
Ao longo do julgamento, Lewandowski atuou
mais como defensor do réus do que como juiz, e teve atritos memoráveis com o relator, Joaquim Barbosa. Mas o “ministro-cumpanhêro” é mais
conhecido como “flagelo da Constituição” devido à sua atuação no processo de
impeachment de Dilma, cujos direitos políticos ele se empenhou em salvar, e também por ter autorizado o presidiário Lula a dar entrevistas a jornalistas “cumpanhêros”, para atacar a Justiça que o
prendeu e o proibiu de disputar as eleições presidenciais em 2018.
Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes
da Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês
e literatices encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam
cristalinas e, portanto, inteligíveis a qualquer cidadão americano com
instrução média. E, em 2014, passaram a exigir que as petições dos advogados
também fossem em “plain terms” — objetivas, diretas, sem trololós.
Quando é clara, a linguagem traduz posições límpidas; como forma é conteúdo,
ela também produz comportamentos transparentes.
Um cidadão americano pode até não concordar com as decisões
de sua Suprema Corte, mas jamais poderá dizer que ela é “uma vergonha”. Os
juízes seguem um código de conduta rigoroso, estejam eles à direita ou à
esquerda no espectro político. O conservador Antonin Scalia, que morreu
em 2016, protagonizou um episódio exemplar no Brasil.
Convidado para um jantar no Copacabana Palace,
organizado por ex-alunos de Harvard, Scalia, ao saber que um
advogado brasileiro com uma causa na Suprema Corte americana estaria presente,
pediu que ele fosse tirado da lista. O pedido não foi atendido, e Scalia não
foi ao jantar.