sexta-feira, 24 de julho de 2020

UM PODER QUE SE SERVE EM VEZ DE SERVIR É UM PODER QUE NÃO SERVE

Viralizou nas redes sociais o vídeo em que se vê um cidadão mal educado que, flagrado sem máscara quando caminhava numa praia do litoral paulista no último sábado, chamou de analfabeto o guarda civil municipal que lhe pediu — educadamente, vale ressaltar — que colocasse a focinheira, digo, a proteção facial de uso obrigatório em logradouros públicos (segundo decreto da prefeitura de Santos).

Decreto não é lei”, ouve-se claramente o insolente dizer ao guarda — a quem caberia tê-lo lembrado, com o devido respeito, que desembargador de justiça é autoridade no Tribunal; na rua, é um cidadão como outro qualquer e, portanto, sujeito à lei como qualquer outro cidadão

É por culpa de gente como o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que o Judiciário perdeu a credibilidade e o respeito da população. Salvo raras e honrosas exceções, nossos Tribunais tornaram-se antros de ególatras arrogantes. A exemplo dos ocupantes de cargos eletivos — e isso vale para todas as esferas do Executivo e do Legislativo, do mais simples edil ao todo-poderoso inquilino de turno do Palácio do Planalto —, juízes, desembargadores e ministros togados são servidores públicos. Categorizados, mas ainda assim funcionários pagos com dinheiro público para servir ao povo. E um poder que se serve em vez de servir é um poder que não serve.

A culpa, volto a insistir, é dos apedeutas que votam nessa récua. Afinal, ninguém brota no gabinete por geração espontânea. No Judiciário a história é um pouco diferente — magistrados são concursados, mas os ministros dos tribunais superiores são indicados pelo chefe do Executivo e chancelados pelo Senado. E é aí que a porca torce o rabo. Senão vejamos.

O povo elege o presidente, mas compete ao Congresso Nacional (que engloba a Câmara Federal e ao Senado) julgar o morubixaba da tribo por crime de responsabilidade (crimes comuns são investigados e julgados pelo STF, mas somente se 2/3 da Câmara Federal autorizarem a abertura do processo). 

O julgamento do impeachment cabe ao Senado, mas quem determina se o pedido deve ser aceito ou arquivado é o presidente da Câmara. Dado o sinal verde de seu presidente, o plenário da Casa decide se o caso segue ou não adiante — para que siga, é preciso maioria qualificada de 2/3 (ou seja, que pelo menos 342 dos 513 deputados votem nesse sentido). 

Deputados federais e senadores tem direito a foro especial por prerrogativa de função — isto é, são processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Detalhe: mais de 30% dos deputados federais são investigados, denunciados ou réus naquela Corte. E o percentual entre os senadores é ainda maior — cerca de 40%.

A Constituição garante a magistrados vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio. Os togados supremos são passíveis de impeachment, mas compete ao presidente do Senado decidir se dá ou não andamento ao pedido de abertura do processo, e ao plenário o julgamento do mérito. Mutatis mutandis, a coisa lembra um pouco o que disse certa vez o jogador Vampeta sobre sua relação com o Flamengo. Em outras palavras, os parlamentares não mexem com os ministros, os ministros não mexem com os parlamentares e todo mundo fica feliz.

Voltando à carteirada (ou “chave de crachá”, ou “sabe com quem você está falando?”) do desembargador desmascarado, é bom lembrar que esse não foi um episódio isolado, embora isso não torne esse caso específico menos lamentável. A questão é que não vai acontecer absolutamente nada. 

O “pior” que poderia acontecer a sua alteza o desembargador seria perder o cargo, mas essa "punição" resultaria na sua aposentadoria compulsória. Assim, dispensado de dar expediente no Tribunal, mas percebendo salário integral e todas as demais vantagens pecuniárias inerentes ao cargo, o servidor desembargador teria mais tempo para caminhar pela orla da praia em busca de guardas metropolitanos para desacatar. É revoltante! 

Igualmente revoltante é o espírito de porco, digo, espírito de corpo de alguns integrantes da categoria (coisa que também não chega a surpreender, sobretudo no Brasil — basta lembrar que Aécio Neves ainda não foi cassado, que Dirceu e Lula, apenas para citar dois criminosos notórios que foram condenados pela Justiça criminal e estão soltinhos da silva). 

O advogado Alberto Carlos Dias, que preside a Comissão de Direito dos Refugiados e dos Migrantes da OAB/SP, Subseção de Santo André, saiu em defesa do desembargador-faraó. Segundo o nobre causídico, a conduta do magistrado, que é “uma pessoa idosa” e foi abordado “de maneira abrupta”, foi “retratada indevidamente pelos veículos de comunicação, com o fito apenas em impingi-lo como autoritário” (clique aqui para ler a nota na íntegra).

Atualização: A OAB/SP Subseção Santo André anunciou o afastamento do advogado do cargo de presidente da Comissão. Em nota e em vídeo, a presidente da OAB de Santo André, Andréa Tartuce, disse que "nenhuma comissão setorial possui autorização para falar em nome da entidade" e que "o tema enfrentado não guarda relevância com a referida comissão". Por isso, o advogado seria destituído da função. Após a repercussão do documento, Dias divulgou outra nota dizendo que a opinião era pessoal, e pedindo desculpas à Ordem. "Muito embora eu tenha feito a retratação, falei em nome próprio, da comissão que eu presido. Nunca falei em nome da OAB", argumentou. "Fui destituído por emitir opinião."

Em dezembro de 2018, num voo de São Paulo para Brasília, o ministro Ricardo Lewandowski mandou prender um passageiro que ousou lhe dirigir a palavra para dizer que “o STF é uma vergonha” (o abusado foi levado para a PF do aeroporto de Brasília, onde prestou depoimento e foi liberado em seguida). 

Gilmar Mendes, o grande, foi achincalhado mais de uma vez por brasileiros quando caminhava pelas ruas da capital portuguesa. Em julho do ano passado foi a vez de Alexandre de Moraes, durante um evento na cidade portuguesa de Coimbra, onde foi chamado de golpista. “Elogios” parecidos foram endereçados também ao governador fluminense Wilson Witzel e os ministros Gilmar Mendes (o inevitável), Marco Aurélio e Lewandowski, que estavam presentes no evento,

Até o julgamento do Mensalão, quase ninguém sabia quem eram os ministros do STF, embora quase todo mundo soubesse de cor e salteado os nomes dos titulares da Seleção Canarinho. Noves fora algum ouvinte contumaz da “Voz do Brasil”, a maioria dos brasileiros jamais ouvira falar no Supremo. Hoje, dá-se o inverso: qualquer zé-mané é capaz de citar nominalmente pelo menos um togado. Gilmar Mendes, a quem José Nêumanne se refere como “Maritaca de Diamantino”, é arroz de festa, mas Dias Toffoli — o “Maquiavel de Marília”, também segundo Nêumanne — e Alexandre de Moraes costumam ser igualmente lembrados. E nem sempre bem lembrados. E não sem razão.

Segundo publicou a revista eletrônica Crusoé, o ministro Gilmar Mendes é sócio de uma faculdade que recebe patrocínios oficiais e nem tanto. Antonio Dias Toffoli recebe — ou recebia — uma mesada de 100 mil reais da mulher advogada e o COAF não foi informado pelo banco. 

Magistrados vão a convescotes patrocinados por bacharéis com causas em tribunais superiores. Luís Roberto Barroso (um dos poucos ministros que eu admiro, apesar de nem sempre concordar com suas decisões) desabafou que havia gabinetes no Supremo “distribuindo senha para soltar corruptos”

Ricardo Lewandowski notabilizou-se como fiel escudeiro da bandidagem vermelha no julgamento da Ação Penal 470 (também conhecida como “processo do Mensalão”). Perguntado pela imprensa sobre quando liberaria o relatório do ministro Joaquim Barbosa, o eminente magistrado, então relator do processo, respondeu que “primeiro teria de recebê-lo”. Ocorre que o relatório já estava disponível havia sete meses na rede local do STF; segundo se noticiou na época, a estratégia de Lewandowski era dar tempo ao tempo para que alguns crimes prescrevessem.

ObservaçãoLewandowski só liberou o processo para julgamento depois de receber uma “prensa” do ministro Ayres Britto, mas mais constrangedor foi ele ter tramado com o advogado Márcio Thomas Bastos o fatiamento do processo, remetendo às instância estaduais a parte referente aos réus que não tinham direito ao foro privilegiado, como era o caso de José Dirceu. Se a maracutaia tivesse prosperado, muitos bandidos teriam saído impunes por obra e graça da prescrição. 

Ao longo do julgamento, Lewandowski atuou mais como defensor do réus do que como juiz, e teve atritos memoráveis com o relator, Joaquim Barbosa. Mas o “ministro-cumpanhêro” é mais conhecido como “flagelo da Constituição” devido à sua atuação no processo de impeachment de Dilma, cujos direitos políticos ele se empenhou em salvar, e também por ter autorizado o presidiário Lula a dar entrevistas a jornalistas “cumpanhêros”, para atacar a Justiça que o prendeu e o proibiu de disputar as eleições presidenciais em 2018.

Sem abandonar o jargão que lhes é ferramenta, os juízes da Suprema Corte Americana não corrompem a língua com o juridiquês e literatices encobridoras. Obrigam-se a que as suas sentenças sejam cristalinas e, portanto, inteligíveis a qualquer cidadão americano com instrução média. E, em 2014, passaram a exigir que as petições dos advogados também fossem em “plain terms” — objetivas, diretas, sem trololós. Quando é clara, a linguagem traduz posições límpidas; como forma é conteúdo, ela também produz comportamentos transparentes.

Um cidadão americano pode até não concordar com as decisões de sua Suprema Corte, mas jamais poderá dizer que ela é “uma vergonha”. Os juízes seguem um código de conduta rigoroso, estejam eles à direita ou à esquerda no espectro político. O conservador Antonin Scalia, que morreu em 2016, protagonizou um episódio exemplar no Brasil.

Convidado para um jantar no Copacabana Palace, organizado por ex-alunos de Harvard, Scalia, ao saber que um advogado brasileiro com uma causa na Suprema Corte americana estaria presente, pediu que ele fosse tirado da lista. O pedido não foi atendido, e Scalia não foi ao jantar.