domingo, 12 de julho de 2020

UMA SEMANA DIFERENTE... PERO NO MUCHO.

Combinada com outras circunstâncias adversas, a “chuva” que Bolsonaro profetizou que “vai apanhar todo mundo mais cedo ou mais tarde” apanhou sua excelência e resultou na tal “gripezinha” que o pôs em quarentena e ativou seu “modo armistício”.

Falo em “armistício”, não em “paz”, porque este vocábulo não consta do dicionário daquele que foi forjado no confronto e no confronto forjou sua prole).

Fato é que há semanas não se ouve falar em manifestações subversivas dominicais, com ou sem participação do presidente. Aliás, o autodeclarado “Messias que não faz milagres” suspendeu até os tradicionais minicomícios que fazia no chiqueirinho montado diante do Alvorada, onde levava ao delírio a choldra de desocupados que sorviam sofregamente suas palavras e depois as defecavam nas redes sociais.

A prisão do ex-factótum do Clã dos Bolsonaros, que a polícia encontrou escondido no simulacro de escritório do jurisconsulto da família e representante legal do senador Flávio Bolsonaro na investigação sobre a suposta (?!) prática de rachadinha em seu antigo gabinete na Alerj, ajudou a baixar um pouco fervura no caldeirão da política em Brasília. 

A questão é saber até quando, pois o lobo perde o pelo, mas não abandona o vício. E, em se tratando especificamente desse lobo, a prudência recomenda manter não um, mas os dois pés atrás. Dito de outra maneira: Jair Bolsonaro precisa comer muito pão com leite condensado para conseguir ser digno de alguma confiança. Ou, como bem disse Dora Kramer, seria preciso que o capitão desmentisse as palavras ditas, revogasse os próprios pensamentos, renegasse a vida pregressa, rejeitasse a fé de seus devotos, jogasse tudo isso no lixo e nascesse de novo.

Esse armistício ao menos me permitiu publicar — entre a segunda e a sexta-feira passadas — os primeiros cinco capítulos da minissérie “DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA”. Caso dure  mais uma semana, talvez eu consiga concluir a sequência — que interrompi ontem para reproduzir um texto polêmico que o jornalista Helio Schwartzman publicou na Folha na última terça, e aproveitei o embalo para atualizar neste domingo os acontecimentos últimos dias. Como escreveu George Orwell, talvez sob efeito de alguma substância alucinógena, quem controla o passado é dono do futuro.

Voltando a Bolsonaro & filhos, salta aos olhos que a linha demarcatória que motivou a troca da versão dos lobos-maus pela vestimenta em feitio de pele de cordeiro foi traçada por pura conveniência, e que a opção do clã por maneiras institucionais mais adequadas é meramente transitória. 

Antes mesmo da posse já estava claro que o trio de filhos políticos seria um fator desestabilizador do governo, e que isso parecia não desagradar ao pai, já que os impropérios e as impropriedades do triunvirato animavam a torcida. Mas o patriarca clânico não previu que dali a 18 meses seus rebentos estariam enrolado com a lei a ponto de forçá-lo a vestir o figurino de moderado para garantir a seus rebentos tratamento mais ameno por parte das instâncias de investigações.

A situação de Zero Um se agravou com a prisão de Queiroz o desenrolar dos fatos direta e indiretamente ligados à prática da “rachadinha” — criminalmente enquadrada como crime de peculato. A decisão estapafúrdia do TJ-RJ tirou das mãos dos procuradores do MP-RJ e da alçada do juiz Flavio Itabaiana o imbróglio que se convencionou chamar de “Caso Queiroz”) deve ser revertida assim que terminar o recesso de meio de ano do Judiciário. Aliás, isso ocorreu em fevereiro, quando o ministro Marco Aurélio devolveu ao MP-RJ a competência que havia sido questionada pela defesa do filho do presidente, e que Dias Toffoli, responsável pelo plantão da Corte durante o recesso, suspendera temporariamente.

É bom não perder de vista que o responsável pela decisão em questão foi o desembargador João Otávio de Noronha, a quem, por ocasião da cerimônia de posse de André Mendonça como ministro da Justiça e de José Levi como advogado-geral da União, Bolsonaro dirigiu as seguintes palavras

"Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário. Muito obrigado a Vossa Excelência". 

Noronha também é cotado para ocupar a vaga no STF que se abrirá em novembro com a aposentadoria do decano Celso de Mello. Deu pra entender ou eu preciso desenhar?

Além de conceder a prisão domiciliar para Queiroz — alegando que a saúde do ex-factótum do clã de seu admirador oculto ora revelado justifica a prisão residencial, sobretudo em tempos de pandemia sanitária —, Noronha estendeu o benefício para Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, que está foragida desde a prisão do marido... Enfim, melhor nem comentar. Como disse Blaise Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Um velho amigo meu, menos famoso, mas notório por suas citações jocosas, dizia que “amor de *... onde bate fica”.

Márcia era vista como um fator de desestabilização do próprio Queiroz, já que muitos apontavam a família como o ponto fraco do ex-assessor. De forma reservada, ministros de tribunais superiores viram com surpresa a concessão de prisão domiciliar a alguém que estava foragido, como era o caso da dita-cuja. Nas investigações, ela aparece com um papel fundamental não só para manter Queiroz escondido, mas também para estabelecer contato com a família do capitão Adriano Nóbrega, apontado como miliciano, e morto numa ação da polícia na Bahia no início do ano.

Zero Dois se complica mais a cada dia no imbróglio que envolve a contratação de funcionários fantasmas no gabinete da Câmara Municipal da ex-cidade maravilhosa. Com a decisão do MP de manter seu caso na primeira instância, ele perdeu, primeiro, a chance de ter reconhecido o chamado foro privilegiado; depois, o rumo: com a faxina do Facebook, o pitbull palaciano resolveu desistir da candidatura a vereador no Rio e se mudar para o Texas (EUA) — ou para Brasília, a fim de ficar mais perto do pai.

Zero Três, que também já era personagem das investigações iniciadas na CPMI das fake news e reforçadas por inquérito sobre o mesmo assunto em curso no STF, tornou-se agora alvo da PGR, que quer apurar as circunstâncias e motivações da declaração dada por ele sobre “o Brasil estar à beira de uma ruptura”.

Bolsonaro pai foi tão fundo que, por mais novo que seja o normal pós-pandemia, ele já terá deixado um legado difícil de ser refeito enquanto no poder perdurar a assombração do espírito do velho anormal. Se estiver mesmo interessado na mudança, o capitão deve saber que o trabalho nem começou. 

Como reagirá se, e quando, o andamento das investigações das quais ele e os filhos são objetos não for o esperado, e por isso não se considerar devidamente recompensado pelo bom comportamento? Qual das duas versões de si o país verá caso o Centrão não lhe devolva em votos os cargos concedidos? O que fará se o Congresso sob o comando de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre seguir na toada de independência adotada nesta legislatura para se contrapor à ofensiva de desmoralização da Casa?

Considerando que a estrutura do pensamento bolsonarista continua em vigor e não muda pelo fato de o presidente ter sido compelido a trocar de figurino, o mais provável é que Bolsonaro retorne à velha anormalidade antes de compreender que, uma vez apertada, a pasta de dente não retorna ao tubo (como nos ensinou Dilma Vana Rousseff). As ilegalidades serão julgadas e, a depender, condenadas. As animosidades cultivadas no campo político o fazem colher desconfiança.

A palavra de Bolsonaro não está valendo meio real furado e seus atos, mesmo depois da baixada de bola no tom do atrito, não recomendam precipitação na assinatura de tratados de paz. Demitiu Abraham Weintraub, mas deu guarida ao plano de fuga para os Estados Unidos. Sinalizou disposição de escolher um titular para a pasta da Educação levando em conta o critério do notório saber na área, mas deixou-se enredar um bom tempo por disputas de grupos que pouco ou nada tinham a ver com qualificação. Logo ele, um adepto das afirmações retóricas de autoridade.

O chamado gabinete do ódio continua a operar, ainda que de modo mais discreto. Não se fala em desmontar o bunker da sem-cerimônia no Itamaraty, tampouco se nota alguma intenção de desmontar a bomba armada no Meio Ambiente para explodir o arcabouço de preservação montado ao longo de anos. E por que isso? Porque não é obra de Salles, Araújo nem de Carvalho. A ela se dá o nome de Jair Bolsonaro, que, enquanto no Planalto estiver, será com um passo à frente e dois atrás que o Brasil caminhará. Até se convencer de que urna não é penico.

Last, but not least:

No último dia 30, os editores da primeira página dos maiores jornais brasileiros foram confrontados com a inesperada pedra no caminho: faltavam más notícias sobre a Covid-19 para a manchete do dia seguinte. Havia um punhado de informações animadoras, mas o primeiro mandamento do jornalismo funerário adverte: é proibida a entrada no espaço mais nobre da edição de qualquer fato vinculado à pandemia de coronavírus que possa prejudicar a ampliação da epidemia de medo.

Em São Paulo, por exemplo, as curvas desenhadas pelos registros de casos confirmados e óbitos atestavam que o pior já passou. O número de mortes por Covid-19 sofrera outra queda consistente. A quantidade de novos infectados se tornara muito menos preocupante que a alcançada nas semanas em que São Paulo figurou no mapa da pandemia como o mais aflitivo epicentro. E, ao contrário do que se temia, o abrandamento das restrições impostas pelo isolamento social não estimulara a expansão do coronavírus. Em todas as regiões paulistas, a taxa de ocupação de leitos de UTI permanecia abaixo de 80%.

Os editores certamente interrogaram os repórteres designados para a cobertura do desastre sanitário: e no resto do país, nada de alarmante? Lamentavelmente para a turma da primeira página, a resposta foi negativa. Em qualquer país do mundo, teria virado manchete a notícia alentadora vinda de Campo Grande: em todo o mês de junho, ocorrera uma única morte por Covid-19 na capital de Mato Grosso do Sul. Mas uma coisa dessas é boa demais para conseguir alguns centímetros de atenção dos especialistas em terrorismo jornalístico.

Foi por isso que as edições da última quarta-feira baniram da primeira página notícias sobre os estragos sanitários causados pelo coronavírus. Os editores tiveram de conformar-se com danos infligidos à economia. É compreensível que muitos jornalistas e políticos estejam torcendo pela chamada "segunda onda". Ou sonhando com o aparecimento de outro vírus chinês.

Avec Dora Kramer, Augusto Nunes et moi.