sábado, 15 de agosto de 2020

FIRME COMO GELATINA

 

A despeito de o ministro Félix Fischer, do STJ, ter determinado o retorno de Fabrício Queiroz à cadeia, revogando, assim, a liminar do presidente da Corte, ministro João Otávio Noronha — a quem Jair Bolsonaro se refere como “um caso de amor à primeira vista” —, o mandado de prisão contra Queiroz não havia sido cumprido até o início da noite de ontem. O motivo da demora, alvo de questionamento por parte da imprensa e de especulação pelos comentaristas políticos, veio à tona horas mais tarde, quando o semideus togado Gilmar Ferreira Mendes restabeleceu o status quo ante. “Diante do exposto, defiro a medida liminar para suspender a ordem de prisão decretada em desfavor dos pacientes, se por outro motivo não estiverem presos”, decidiu o poderoso laxante. Tem horas que eu sinto saudades do velho Janot. Enfim, vamos à postagem do dia.

O presidente-cloroquina foi eleito pelo Washington Post o pior líder do planeta no combate à Covid-19 — pior até mesmo que Donald Trump —, cuja avaliação negativa, nos primeiros 3 meses de mandato, superou a de todos os presidentes em início de primeiro mandato desde 1990 e, ao final do primeiro ano, foi a pior entre os presidentes eleitos desde 1994. Agora, parece que ele descobriu que o dinheiro compra tudo, de amor verdadeiro a popularidade. Graças à prorrogação do “coronavoucher” de R$ 600 reais, sua aprovação aumentou 7% na comparação com o resultado da pesquisa Datafolha de junho, enquanto a rejeição caiu 10 pontos percentuais.

Detalhe: o Nordeste — tradicional reduto de Lula, Ciro e outros populistas de esquerda, onde a periculosidade da récua de muares com título de eleitor ombreia com a de uma capela de chimpanzés num stand de tiro — foi a região que mais contribuiu para o aumento da pontuação no quesito “ótimo e bom”.  

O fato de o Brasil ter se tornado um país de analfabetos funcionais é sopa no mel para políticos sevandijas e corruptos. Povo esclarecido não votaria nessa gentalha e tampouco se sujeitaria a trabalhar 5 meses por ano para pagar impostos (que somaram R$ 1.537 trilhão em 2019) sem receber a devida contrapartida. Aliás, enquanto o país contabiliza 12,3 milhões de desempregados — e quem ainda tem emprego abre mão de até 75% do salário para não ir pro olho da rua —, os ministros do STF aprovaram um aumento orçamentário de R$ 712,46 milhões para 2021 (que não inclui o reajuste no salário dos magistrados, que atualmente é de R$ 39,2 mil).

A educação no Brasil está horrível, disse Bolsonaro a um grupo de apoiadores. E nem poderia ser diferente depois de três meses sob Ricardo Vélez Rodriguez, outros catorze sob Abraham Weintraub (que foi agraciado pela Câmara Legislativa do DF com o título de persona non grata), cinco dias sob Carlos Alberto Decotelli e acéfalo desde a demissão deste último do ministro-fantasia (Milton Ribeiro, atual responsável pela pasta, testou positivo para a Covid-19 assim que tomou passe, e só começou a cumprir agendas presenciais na última semana).

Imaginar que o MEC pudesse vencer tais adversidades seria o mesmo que acreditar que a Saúde, sob intervenção militar desde a demissão do oncologista Nelson Teich, há exatos 3 meses, obtivesse um sucesso estrondoso no combate à Covid-19. Enfim, há quem acredite na Fada do Dente, no Coelho da Páscoa, na inocência do criminoso Lula...   

O candidato Bolsonaro fingiu ser contra a corrupção porque isso lhe renderia votos, e convidou Paulo Guedes para ser seu “Posto Ipiranga” de olho no apoio do empresariado e do mercado financeiro. Em 27 anos como deputado do baixo clero, o Messias que não miracula jamais foi liberal ou a favor de privatizações. Sua prioridade é salvar o rabo dos filhos, o próprio rabo, e conquistar a tão sonhada reeleição (não necessariamente nessa ordem) que ele esconjurou durante a campanha por mero pragmatismo.

Política, dizia Magalhães Pinto, é como nuvem: você olha e ela está de um jeito; olha de novo e ela já mudou. Guedes tornou-se protagonista de um filme parecido com aquele em que o prestígio de Moro morreu no final. Bolsonaro reduz o pé-direito do Posto Ipiranga ameaçando trocar o rigor fiscal do teto de gastos pela gastança de um populismo que mira a reeleição. Enquanto os superpoderes de Moro foram diminuindo na proporção direta do crescimento da deterioração ética da família Bolsonaro, a força que Guedes presumia ter é debilitada pelo desejo do capitão de fortalecer sua popularidade às custas do déficit público.

O superministro já viu como esse tipo de encrenca termina. A franqueza com que expôs publicamente seu próprio calcanhar de vidro foi uma tentativa vã de mudar o final do filme no replay. Mas ao dizer que Bolsonaro será conduzido a “uma zona de impeachment” se der ouvidos a quem o aconselha a furar o teto, e sobretudo por ter dito isso ao lado de Rodrigo Maia, que é senhor do destino de mais de 50 pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo, e com quem este mantém desde sempre um relacionamento conturbado, Guedes cutucou a onça com vara curta. Bolsonaro sabe que não é o momento para fechar o Posto Ipiranga, mas acredita que, se o fizer, os tumultos no mercado financeiro serão passageiros, pois o substituto (fala-se no presidente do BC, Roberto Campos Neto) terá a garantia de que os compromissos do governo com o ajuste fiscal serão mantidos.

A impressão que se tem é de que a cúpula da República resolveu dançar a coreografia da enganação. Bolsonaro diz que quer a responsabilidade fiscal, as privatizações e a reforma administrativa, Guedes finge que acredita e Maia e Alcolumbre posam para a foto ao lado dos dançarinos. Mas o mais curioso é os atores partirem do pressuposto de que a plateia deve acreditar neles. Menos de 24 horas depois desse balé no Alvorada, o “mito” posou para novas fotos, dessa vez ao lado do ministro Rogério Marinho, chamado por Guedes de "fura-teto", enquanto Maia disse em entrevista que que o presidente precisa ser convencido a enviar ao Congresso a reforma administrativa, e que a saída de mais alguns assessores de Guedes faria bem ao Ministério da Economia.

Quem quiser que acredite que está tudo normal em Brasília, mas é bom ter em mente que o fato de ser compartilhada por muita gente não transforma uma ilusão em realidade. A cadeira de Guedes está tão firme quanto estava a poltrona de Moro. Cabe ao Posto Ipiranga decidir até que ponto deseja conviver com os parafusos frouxos. Está entendido que, para o presidente, ele deixou de ser insubstituível.