terça-feira, 4 de agosto de 2020

SÓ ELES? CADÊ OS OUTROS?

No humorístico Planeta dos Homens — que a Globo exibiu entre 1976 a 1982 —, sempre que era preso por alguma falcatrua o macaco Sócrates — interpretado por Orival Pessini — olhava em volta, como que à procura de políticos que tinham feito a mesma coisa impunemente, e tascava o bordão: “Mas sou só eu? Cadê os outros?

Lembrei-me desse quadro dias atrás, quando li em ÉPOCA que procuradores da Lava-Jato que apoiaram a eleição de Bolsonaro se dizem arrependidos de não terem anulado seus votos, dado o empenho do presidente em sepultar força-tarefa. Só eles? cadê os outros?

Se por “outros” entendermos os milhões de brasileiros que se decepcionaram com o governo do capitão cloroquina, eles estão em toda parte. Mas, cá entre nós, esperavam o que de um mau militar (limado da corporação por insubordinação), parlamentar medíocre (que aprovou miseravelmente dois projetos em 27 anos de deputância), mandatário sofrível e primeiro colocado no ranking mundial dos piores chefes de Estado no combate à pandemia do coronavírus?

Mais preocupante é o apoio do Congresso, da mais alta cúpula do Judiciário e da Procuradoria Geral da República à cruzada contra a Lava-Jato promovida pelo chefe do Executivo, sobretudo depois que ele e seus três rebentos passaram à condição de investigados. 

Dos deputados e senadores também não seria de se esperar nada diferente, haja vista que cerca de 30% dos membros da Câmara Federal e metade dos integrantes do Senado são réus ou investigados na Lava-Jato. Quanto ao STF, o presidente de turno e plantonista da Corte durante o recesso de meio de ano fez um strike na defesa da classe política.  

Logo no início de julho, Toffoli tomou partido na briga entre a Lava-Jato e Augusto Aras e determinou o compartilhamento de dados das investigações com o gabinete da PGR (numa decisão que para muitos viola a regra de que somente investigadores de um caso podem ter acesso a dados de um inquérito), e no dia 9 suspendeu liminarmente buscas e duas investigações contra o senador tucano José Serra.  

Observação: Para gáudio do supremo togado, que deixará de presidir os demais togados supremos em meados do mês que vem, o ministro Fachin, relator do caso junto ao STF, revogou, ontem, sula liminar, sob a alegação de inadequação processual e com eficácia retroativa (ou seja, os dados já compartilhados não poderão mais ser acessados pela PGR). Além disso, Fachin determinou que o processo não deve mais correr sob sigilo de Justiça. E mais: no último dia 27, uma semana após ser barrada na porta no Senado, a PF voltou ao Congresso, dessa vez para executar mandados de busca e apreensão no gabinete da deputada federal Rejane Dias (PT-PI). Diferentemente de Toffoli, a ministra Rosa Weber deu sinal verde para que a operação fosse realizada. Na visão da magistrada (e de acordo com o entendimento firmado no supremo por maioria de votos) juízes de primeira instância podem autorizar busca e apreensão na Câmara e no Senado quando os fatos investigados envolvem parlamentares, mas não têm relação com o mandato atual.

Toffoli também cobrou explicações da juíza de primeira instância que marcou um depoimento do tucano Aécio Neves; dissolveu a comissão de impeachment instalada pela Alerj para analisar o impeachment de Wilson Witzel; arquivou três inquéritos que haviam sido abertos contra ministros do STJ e do TCU a partir da delação de Sergio Cabral e suspendeu investigações envolvendo ministros de tribunais superiores — uma das quais contra o ministro João Otávio Noronha, do STJ — aquele que concedeu habeas corpus a Fabrício Queiroz e senhora — e dois de seus filhos, que são advogados.

Quanto à PGR, vale relembrar que Bolsonaro nomeou Augusto Aras apesar de o nome do procurador não constar da lista tríplice. Criticado por colegas por ter encampado bandeiras do presidente em meio à disputa pela indicação para chefiar o Ministério Público, Aras negou a possibilidade de atuar com submissão, pregou independência entre os Poderes e evitou explicitar alinhamento completo com teses bolsonaristas. Todavia, açodado pela promessa de uma futura indicação para uma vaga no STF, Aras se autopromoveu de Procurador-Geral a Passador-de-pano-geral da República.

Cabe ao Ministério Público agir na acusação contra delinquentes e representar o interesse público quando entender que este esteja sendo contrariado; seu papel é ficar contra os criminosos. Da mesma maneira, cabe aos advogados agir na defesa de quem é acusado pelo MP; seu papel é ficar a favor dos clientes. O primeiro tem de procurar a condenação e os segundos, de procurar a absolvição. Mas isso aqui é o Brasil, e no Brasil quase nada funciona como determinam a lógica, a decência e as próprias leis. Temos, assim, que o MP, segundo a postura pública de seu funcionário mais alto, se coloca contra quem faz as denúncias e a favor de quem é denunciado — ou, pelo menos, é assim quando se trata de combate à corrupção.

Na sua visão de justiça — exposta pela última vez numa palestra eletrônica que fez na semana passada — Augusto Aras nos informou que o grande problema da corrupção no Brasil não são os corruptos que durante anos a fio transformaram a administração pública em sua propriedade privada, mas sim a Lava-Jato. Acredite se quiser, o PGR lançou o seu manifesto contra a maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção jamais feita nos 520 anos de história do Brasil numa emissão fechada de imagem e som para cerca de 300 advogados criminalistas — em grande parte sócios de bancas milionárias e com clientes, ainda mais milionários, atolados na Lava-Jato sob acusações de ladroagem em primeiro grau.

Numa de suas mais conhecidas lições de ética, um antigo e afamado criminoso do Rio de Janeiro já ensinava: “Bandido é bandido, polícia é polícia”. Então: procurador é procurador, advogado é advogado. O lugar onde eles têm de se falar é no fórum, diante do juiz — e somente lá.

Num país classicamente desgraçado pela corrupção sem limite e pela impunidade quase absoluta dos ladrões, a Lava-Jato colocou na cadeia 300 dos mais perigosos, bilionários e influentes corruptos que já atuaram entre o Oiapoque e o Chuí ao longo da história nacional. Fez os criminosos devolverem bilhões ao erário. Liquidou uma praga que se imaginava invencível — as empreiteiras de obras públicas, que desde então pararam de governar o Brasil. (Querem voltar, é claro; mas aí já são outros quinhentos.) Levou para a prisão um ex-presidente da República, tido como homem mais poderoso e intocável do País. Pois é: o PGR acha que tudo isso está errado.

Aras acusa os procuradores do seu próprio MP das piores coisas — insinua, inclusive, chantagem e extorsão —, mas não foi capaz de apontar, objetivamente e com o apoio de fatos, um único delito cometido por eles. Fica escandalizado por haver na Lava-Jato informações sobre “38 mil pessoas, que ninguém sabe como foram colhidas”. E daí? Com a quantidade de ladrão que há neste país, poderiam ser 380 mil. E, se não sabe, deveria saber; problema dele. É um despropósito. Os atos do MP e os do ex-juiz Sergio Moro — que, como magistrado, vale uns 150 Aras — estiveram o tempo todo sujeitos ao exame dos tribunais superiores. E, se houve erros, por que diabos a Corregedoria do próprio MP jamais foi atrás deles? 

O problema não é o que a Lava-Jato fez. É o que o PGR está fazendo.

Com J.R. Guzzo