terça-feira, 22 de setembro de 2020

A DISPUTA PELA SUPREMA TOGA E O SUPREMO ACINTE

Não se sabe ao certo quando nem se o ministro Celso de Mello retornará da licença médica, mas sabe-se que ele deixará a Corte definitivamente em menos de 40 dias, já que a aposentadoria dos togados é compulsória aos 75 anos, e o decano comemora sua septuagésima quinta primavera no dia 1º de novembro. Essa será a primeira vaga de duas que se abrirão no STF durante este governo (a outra é a do ministro Marco Aurélio, que se aposenta em 12 de julho de 2021).

É prerrogativa do chefe do Executivo indicar sucessores dos togados que deixam as Cortes superiores durante sua gestão. Ao atual mandatário, além dos dois casos citados, caberá indicar ainda os substitutos de Renato Paiva, ministro do TST, e Napoleão Nunes Maia Filho e Felix Fischer, ambos do STJ. Maia completa 75 anos em 30 de dezembro p.f., e sua cadeira deve ser ocupada obrigatoriamente por um membro do TRF. Fischer, que é o relator dos processos da Lava-Jato no STJ, só atingirá a idade limite em agosto de 2022 (a vaga é da OAB, no revezamento com o MP), mas tudo indica que ele antecipará sua aposentadoria devido a problemas de saúde.

O art. 101 da Constituição Cidadã exige que candidatos a ministro do STF sejam brasileiros natos, tenham entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e notável saber jurídico. Após serem indicado pelo presidente da República, os postulantes às vagas precisam ser sabatinados e aprovados, por maioria absoluta de votos, em sessão plenária do Senado.

Essa sabatina é mera formalidade, naturalmente. Fosse mesmo para valer, como é nos EUA (que serviram de base para os constituintes criarem essa regra), o Senado não teria aprovado, em 2009, o ingresso de um obscuro e inexpressivo advogado petista, cujo currículo, para além de serviços prestados a Lula, a José Dirceu e ao partido, ostenta duas reprovações em concursos públicos para juiz de primeira instância em São Paulo. Caso o leitor nem imagine de quem se trata, uma dica: esse eminente magistrado presidiu a Corte durante o biênio que se encerrou no último dia 10).

Desde a proclamação da República, em 1889, apenas cinco indicados à Suprema Corte foram vetados (Barata Ribeiro, Innocêncio Galvão de Queiroz, Ewerton Quadros, Antônio Sève Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo), todos durante o governo do Marechal Floriano Peixoto (1891-1894) — confira essa e outras curiosidades sobre o STF no estudo publicado pelo decano Celso de Mello em 2014.

Bolsonaro vem se valendo dessa prerrogativa presidencial como um matuto se vale da técnica da cenoura e vara para fazer o burro andar. Foi a promessa da suprema toga que pesou na decisão de Sergio Moro de trocar 22 anos de magistratura por um ministério num governo medíocre, e a mesma estratégia vem edulcorando Augusto Aras (a quem, na condição de PGR, pode mandar arquivar o inquérito que investiga o presidente por interferência política na PF), André Mendonça (que foi promovido de AGU a Ministro da Justiça e tem atuado como advogado pessoal do capitão), além do ministro João Otávio de Noronha, do STJ , que o “mito” classifica como “um caso de amor à primeira vista". Não custa lembrar que ninguém promete tanto quanto aquele que não pretende cumprir.

A história demonstra ad nauseam que misturar política com religião não dá bons resultados, mas Bolsonaro precisa indicar alguém “terrivelmente evangélico”, seja para conquistar sua imorredoura gratidão, seja porque depende da “bancada evangélica” — grupo suprapartidário ligado a diferentes igrejas (predominantemente neo pentecostais) com ideologias não necessariamente homogêneas, mas em geral conservadoras. Essa bizarra agremiação surgiu no final de 1986, com a instalação da assembleia nacional constituinte, e continua articulando a aprovação de legislação de interesse religioso e pautando diversas discussões no Parlamento.

Sem um projeto de governo que não o da própria reeleição, o general da banda depende da fidelidade canina dos fanáticos manipulados pelo pastor isso, bispo aquilo e outros “papa-dízimo”, que vendem terrenos no céu para otários dispostos a pagar à vista e em dinheiro, mas que não podem reclamar, depois, quando descobrem que foram logrados. Como esse ativismo conservador evangélico traz para a luta política demandas moralistas que são reivindicações reais de setores populares não habituados a separar as esferas da política e da moralidade privada, está feita a merda.

O nome da ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos circulou em gabinetes do STF como uma das candidatas a entrar na corte na vaga de Celso de Mello. A surpresa foi grande — inclusive entre pessoas próximas a ela. A explicação para que a ideia circule é que há uma campanha informal nas redes para que Bolsonaro a indique. “Quero ver a senhora no STF, ministra Damares” e “Damares no STF!” são, segundo a Folha, algumas das palavras de ordem — e bolsonaristas já organizaram até uma enquete no Twitter com o nome dela entre os candidatos à corte. 

As apostas, tanto de integrantes da equipe palaciana quanto do Congresso, no entanto, recaem sobre Jorge Oliveira, hoje na Secretaria-Geral da Presidência. Caso ele seja indicado, André Mendonça pode ir para o TCU  — o outro candidato de BolsonaroWagner Rosário, hoje na CGU, enfrenta resistências na corte de contas. As peças ainda se movem no tabuleiro — a única coisa que Bolsonaro já deixou claro é que indicará uma pessoa de seu círculo próximo e de total confiança para o Supremo. Neste contexto, o nome "terrivelmente evangélico" indicado pelo pastor Silas Malafaia e outras lideranças religiosas — o do juiz federal William Douglas dos Santos — tem hoje poucas chances de emplacar.

Em entrevista ao programa Pingos nos Is (da Jovem Pan), a dublê de pastora e ministra disse, na semana passada, que não aceitaria uma indicação ao Supremo, caso seu nome fosse cogitado pelo presidente. “Não me sinto à altura de ser indicada para o STF, quero continuar aqui no chão de fábrica trabalhando com as crianças”, afirmou, acrescentando em seguida, em tom de brincadeira, que jamais usaria uma toga que não fosse cor de rosaBom para ela. Melhor para nós.

De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, Damares agiu nos bastidores para impedir que a menina capixaba de dez anos, que engravidou depois de ser estuprada por um tio ao longo de quatro anos, fosse submetida a um procedimento de aborto legal. A maracutaia coordenada pela ministra, diz a matéria, visava transferir a criança da cidade capixaba de São Mateus, onde ela vivia, para um hospital em Jacareí (SP), onde aguardaria a evolução da gestação e teria o bebê. Para tanto, a ministra-pastora encarregou representantes do ministério e aliados políticos de retardar o aborto e pressionar os responsáveis pelos procedimentos, oferecendo-lhes, inclusive, benfeitorias como o chamado “kit Renegade”, composto de um Jeep Renegade (cujo preço parte de R$ 70 mil) e equipamentos de infraestrutura, como ar-condicionado, computadores, refrigeradores, smart TVs e outros, além da instalação de um segundo conselho tutelar para atender a região.

Damares chegou a participar pessoalmente de pelo menos uma dessas reuniões e, segundo pessoas envolvidas no processo, os representantes da ministra foram os responsáveis por vazar o nome da menina à ativista Sara Giromini, que o divulgou em redes sociais.

No dia 10 de agosto, Damares postou no Twitter que acompanhava o caso, mas não explicitou seu objetivo. “Minha equipe está entrando em contato com as autoridades de São Mateus para ajudar a criança e sua família, e para acompanhar o processo criminal até o fim”, tuitou a ministra. Na sequência, informou que enviaria uma missão do ministério a São Mateus, da qual participaram Aline Duarte de Andrade Santana, coordenadora geral de proteção à criança e ao adolescente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Wendel Benevides Matos, coordenador geral da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e mais dois assessores. A eles juntou-se o delegado de polícia e deputado estadual Lorenzo Pazolini, do Republicanos, que em seguida anunciou sua candidatura à Prefeitura de Vitória. O político ganhou notoriedade ao invadir um hospital no município capixaba de Serra, em junho (após mensagem de incentivo de Jair Bolsonaro), para provar que leitos de UTI estavam vazios.

No dia 13, Damares voltou ao Twitter: “Estamos acompanhando o caso. Durante a semana, várias reuniões virtuais. Hoje, representantes do ministério, acompanhados do deputado Pazolini estiveram na cidade para acompanhar de perto as investigações”. Em momento algum, porém, afirmou que o intuito seria impedir o aborto. No mesmo dia, houve ao menos três reuniões, uma na 18.ª regional da Polícia Civil, outra no conselho tutelar e a terceira na sede da prefeitura. O juiz da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus e o promotor da Infância e da Juventude foram convidados, mas declinaram, alegando tratar-se de um caso concreto em andamento.

O ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos afirma já ter entregado “kits Renegade” a 672 conselhos tutelares país afora, que eles são adquiridos por meio de emendas parlamentares, e que 16 conselhos capixabas foram contemplados com o mimo entre 2019 e agosto passado. Registros das reuniões foram publicados por Alinne no Instagram, com os perfis oficiais da ministra Damares e do deputado Pazolini marcados. Um deles, na sede da prefeitura, mostra cerca de 20 pessoas ao redor de uma mesa. Além de Pazolini, Alinne e Wendel Benevides, estão a secretária municipal de Ação Social, Marinalva Broedel, os conselheiros Susi e Romilson, quatro representantes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social, dois membros do abrigo Casa Lar (onde a criança estava desde que a gravidez foi constatada), dois assessores de Pazolini e dois assessores da pasta comandada por Damares.

Aparecem também quatro mulheres que se identificaram como médicas do Hospital São Francisco de Assis, de Jacareí (SP), segundo diferentes relatos à Folha. Sem que sua vinda fosse anunciada, elas foram recepcionadas por Alinne, apresentadas como pessoas de confiança de Damares e que teriam uma solução para o caso da menina. Ao Hospital — que lista entre seus parceiros a Igreja Quadrangular, que teve como expoente no Brasil o pai de Damares e da qual própria Damares era pastora quando foi indicada ministra — foi proposto assumir os cuidados médicos da menor, fazendo seu pré-natal até que ela estivesse pronta para o parto. Como a proposta não prosperou — devido à oposição de alguns participantes e à ausência da instância judicial —, o grupo partiu para uma estratégia de intimidação.

Ainda segundo a reportagem, no dia 14 de agosto o juiz da Vara da Infância e do Adolescente autorizou o aborto, mas o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, de Vitória, se recusou a realizar o procedimento. Foi decidido então que o aborto seria feito no Recife, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros. Enquanto o debate se alongava, um morador de São Mateus, de nome Pedro Teodoro, abordou a família da vítima, disse que estava ali para orar e, uma vez dentro da casa onde a menina morava, passou a agredir verbalmente a avó (a criança é órfã de mãe e tem pai ausente).

Houve também uma tentativa de impedir (ou retardar) a alta médica do hospital em Vitória, buscando fazer com que a menina perdesse o voo para o Recife. Fracassada essa tentativa, foi divulgada pelas redes sociais de Sara Giromini, pupila de Damares, e de Pedro Teodoro a identidade da criança e o nome do hospital que realizaria o procedimento. Devido ao grande número de manifestantes contrários ao aborto, a menina teve de entrar no hospital escondida no porta-malas de um carro e, devido a toda essa exposição, precisou ser inscrita no Programa de Proteção a Testemunhas. A família registrou boletim de ocorrência contra Pedro Teodoro, alvo de uma ação civil pública que investiga seu acesso às informações sobre a menor (recentemente, Teodoro se lançou candidato a vereador por São Mateus pelo PSL).

O deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL-RJ, protocolou um pedido de convocação para que Damares explique no Congresso a atuação de seus assessores no caso. Ele questiona ainda se a ministra se utiliza dos conselhos para perseguir os servidores públicos que cumprem a lei. “Damares não é diversionista, como por muito tempo muita gente leu”, disse o parlamentar à Folha. “Ela é estratégica, é a argamassa desse campo fiel ao Bolsonaro e que é movido pelo ódio, pelo medo, e que vai ao Brasil mais profundo.”

Para ler as justificativas das pessoas e entidades envolvidas nesse imbróglio, clique aqui.