A diferença entre um depoimento oral ou por escrito, diz Josias de Souza, é comparável à diferença entre a forca e o violino. Os dois têm corda, mas um pode produzir a morte e o outro, apenas música.
Para um notório boquirroto como Bolsonaro, ser interrogado no ambiente controlado da folha de papel é, evidentemente, mais seguro. Não que ele tencione dizer algo que o comprometa, mas sabemos o que acontece quando sua língua se move sem cabresto.
No dia 3 de junho, quando falou
publicamente sobre o depoimento, o capitão cloroquina posou de valentão:
"Pra mim tanto faz", disse, sobre o modelo do interrogatório.
Mas reconheceu que, no depoimento por escrito "tem uma segurança enorme
na resposta, porque não vai titubear. Ao vivo pode titubear, mas não estou
preocupado com isso."
A despreocupação do morubixaba de turno não passava
de bravata. Tanto é que a AGU recorreu ao STF, pleiteando isonomia
em relação a Michel Temer (em 2017, intimado a prestar esclarecimentos
no âmbito de um inquérito que o investigava por corrupção, o vampiro do Jaburu foi
autorizado pelo ministro Luís Roberto Barroso a depor por escrito).
Como o decano Celso de Mello
continua licenciado, a reclamação caiu no colo do ministro Marco Aurélio, que, como bom macaco velho, não mete a mão em cumbuca. O vice-decano transferiu o abacaxi para o plenário da Corte — um colegiado que Sepúlveda
Pertence, ex-ministro desse
mesmíssimo tribunal, definiu como “11 ilhas”, para depois
emendar: “um arquipélago de 11 ilhas”. Foi pior a emenda que o soneto, como se verá mais adiante.
Reivindicar no Supremo a concessão de um
tratamento semelhante ao que Barroso dispensou ao egum mal despachado não pegou bem para Bolsonaro, mas o fato é
que, qualquer que seja o resultado, ele sairá ganhando. Prevalecendo a “linha Barroso”, o presidente terceirizará ao seu staff jurídico as respostas ao interrogatório; mantido o
despacho do decano, ganha, se quiser, um pretexto para não comparecer ao
depoimento, mas deixando evidente o que meio mundo já sabe e que a outra metade
se recusa a reconhecer.
No pior dos cenário, Bolsonaro ganha tempo. Como o decano está licenciado e nada garante que retorne ao trabalho antes de seu 75º aniversário (em 1º de novembro), quando então será aposentado compulsoriamente, empurrar o depoimento com a barriga pode ser uma mão na roda para o atual inquilino do Palácio do Planalto. Uma vez que cabe a ele indicar o substituto do decano na Corte... enfim, a obviedade é tamanha que dispensa quaisquer considerações adicionais.
Voltando ao ex-ministro Pertence, que se aposentou em 2007 — mas voltou à ribalta em 2018, graças a uma participação relâmpago na defesa do criminoso Lula — atribui-se-lhe o seguinte comentário sobre o STF: “As pessoas acham que isso aqui é um grupo de
amigos, mas, na realidade, somos 11 ilhas. Não somos amigos nem nos
frequentamos socialmente, apenas nos encontramos no tribunal nos dias de sessão."
Considerando
o que veio à público desde 2002 — ano em que as sessões dos STF passaram
a ser transmitidas ao vivo em cores pela TV Justiça —, a metáfora do
jurista teria mais cabimento se “11 ilhas” fossem substituídas por “11 estados
soberanos”, onde cada um declara guerra contra nações inimigas, negocia
alianças diplomáticas, adota programas de governo e estabelece suas próprias
políticas internas.
Mesmo
em dias de céu de brigadeiro, nuvens negras e ameaçadoras ensombrecem os
bastidores da Suprema Corte, onde clima entre os togados, que muitos imaginam
ser um compadrio de amigos que, ocasionalmente, julgam processos e tomam chá
nos intervalos, é pontuado por rivalidades e animosidades.
Em
2007, mensagens
trocadas entre os ministros Lewandowski e Cármen Lúcia pela intranet
(rede interna) do tribunal evidenciaram que há muita política — e má política —
por trás do sistema mediante o qual são escolhidos os ministros da Suprema
Corte, que ficam atrelado ao Presidente de turno que os presenteou com a
suprema toga e se sentem moralmente obrigados (ou são constrangidos) a retribuir
o favor.
Em
outubro de 2002, num embate
memorável com o ministro Joaquim Barbosa, o vice-decano Marco Aurélio chamou o colega Joaquim
Barbosa para resolver suas diferenças “lá fora”, como se fossem dois ginasianos que
saem no braço depois da aula. Posteriormente, o primo de Collor negou que tivesse chamado o colega "para a briga"; apenas disse que eles deveriam
se tratar sem agressões. “Não estamos mais nos séculos 16, 17 e 18, em que
havia o duelo. Se estivéssemos, certamente haveria um duelo", afirmou
o magistrado.
Outro caso notório ocorreu em novembro de 2006, quando Joaquim Barbosa acusou, em sessão plenária transmitida pela TV Justiça, o ex-presidente do STF e advogado Maurício Corrêa de tentar influenciar o julgamento de ação milionária sobre desapropriação de terras. "Ele tomou a liberdade de ligar para a minha casa pedindo urgência para esse caso", disse Barbosa. "O tribunal precisa tomar medidas sérias com relação a esse tipo de tráfico de influência", acrescentou. "Se ele está atuando indevidamente, está praticando tráfico de influência", concluiu.
Observação: Corrêa não estava no
tribunal, mas apareceu minutos depois, entregou documentos à então presidente do STF,
Ellen Gracie, para provar que era advogado da causa e estava autorizado
a atuar no processo.
Como se vê, a coisa vem de longe e só se agravou com o passar do tempo: Em março de 2018, durante um bate-boca com Gilmar Mendes em sessão plenária, Barroso se referiu ao colega como uma “fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro, mais um na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país (...) uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia“. Em outubro do mesmo ano, concedeu uma entrevista à colunista Mônica Bergamo. Ao comentar sobre o que considerava ser uma corrupção estrutural e sistêmica envolvendo recursos públicos e a impunidade no país, o Barroso disse que havia no STF “gabinete distribuindo senha para soltar corrupto sem qualquer forma de direito e numa espécie de ação entre amigos”.
Ao ser questionado sobre quais gabinetes se encontrariam nessa situação, o magistrado sorriu e ficou em silêncio.
Continua...