quarta-feira, 30 de setembro de 2020

MICHELLE, MA BELLE


De acordo com o Evangelho segundo os bolsomínions, o atual governo é a quintessência da lisura: “nos últimos 21 meses não houve uma denúncia sequer de corrupção”, dizem os miquinhos amestrados do capitão cloroquina. E o fazem com a mesma convicção dos devotos da seita do inferno à probidade da autodeclarada “alma viva mais honesta do Brasil”.  A explicação está no nome de uma canção enjoadinha que fez um bruto sucesso em 1969. Enfim, o fato é que o fanatismo cega e a burrice mata.

Nem a Velhinha de Taubaté engoliria a falácia de que alguém sobrevivesse puro e imaculado a 28 anos na Câmara Federal. Além disso, as célebres “movimentações atípicas” identificadas pelo Coaf nas contas de Fabrício Queiroz já cheiravam mal antes mesmo de o chefe do clã subir a rampa do Planalto. Prova disso é o inquérito que investiga o vazamento de informações sobre a deflagração da operação Furna da Onça, que levaram à demissão de Queiroz do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e da filha do velho amigo e companheiro de pescaria (e sabe-se lá do que mais) do gabinete de então deputado federal e hoje presidente desta república de almanaque.

Graças à morosidade da Justiça e à ajuda de amigos (ou comparas) influentes, a investigação sobre o “suposto esquema das rachadinhas” levou mais de dois anos para ser concluída (falar em “suposto esquema” depois que Queiroz admitiu em depoimento ao MPF-RJ que deu satisfações a FB sobre o caso das “rachadinhas” e de o próprio FB reconhecer que o ex-assessor pagava suas contas é uma grande hipocrisia, mas enfim...).

Tanto Zero Um quanto seu ex-factótum deverão ser denunciados pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa — talvez até já o tenham sido quando esta postagem for ao ar: O Globo chegou a publicar que a denúncia ocorrera nesta terça-feira, mas retificou a informação depois de uma nota do MP-RJ ter afirmado que "até o momento" não havia denúncia ajuizada contra o atual senador Flávio Bolsonaro nas investigações referentes a movimentações financeiras em seu gabinete no período em que era deputado estadual.

Observação: Segundo o Jornal, durante a transmissão da denúncia para o Tribunal de Justiça o sistema eletrônico falhou, provavelmente pelo volume dos autos apresentados (mais de 300 páginas).

A partir dos dados das quebras de sigilo bancário e fiscal, os promotores vão apontar que o senador usou, pelo menos, R$ 2,7 milhões em dinheiro vivo do esquema das rachadinhas. Os valores somam os três métodos pelo qual o filho do presidente "lavou" o dinheiro em espécie.

Mudando de pato para ganso, ou melhor, para gansa, o vídeo com a música “Micheque”, da banda de rock Detonautas, não parecia destinado a virar um campeão de audiência no YouTube quando ali foi postado no último dia 4.

De autoria de Tico Santa Cruz, vocalista da banda, a letra da música foi inspirada pela descoberta de que Queiroz depositou R$89 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro. Mas aí, na quinta-feira dia 25, Michelle prestou queixa na Delegacia de Crimes Eletrônicos do DEIC, em São Paulo. Quer que sejam processados por calúnia, injúria e difamação todos os que passaram a chamá-la de “Micheque” nas redes sociais, inclusive os roqueiros da banda.

Segundo Ricardo Noblat, a primeira-dama deu um tiro no pé. Até a última quinta-feira, a sátira dos Detonautas somava quase 700 mil visualizações; na madrugada de segunda, 28, ultrapassou a marca de 1 milhão e 330 mil. A banda apenas surfou na onda e se deu bem. O que espanta é que ninguém no governo, nem mesmo o presidente, tenha aconselhado a esposa a não fazer o que fez.

A primeira-dama nada teve a ver com o dinheiro depositado em sua conta. Ao que tudo indica, o dinheiro era um negócio particular entre Queiroz e seu marido. Mas o general da banda poderia tê-la poupado do constrangimento. Por que não se apressou em esclarecer o motivo pelo qual Queiroz depositou R$ 89 mil na conta dela? Que tipo de vantagem política imagina extrair da iniciativa que teve Michelle de procurar a polícia? Por que insiste em permanecer calado? Está com medo do quê?

Michelle parece desconhecer a diferença entre liberdade de expressão e crime, daí estar pedindo punição a uma banda de rock. Quer ainda, segundo O Globo, que uma de suas músicas seja proibida em ambientes públicos e privados! Públicos e privados? Nem a censura da ditadura ousou tanto. O regime militar proibiu músicas em penca, mas não se sabe, ao menos até onde a memória alcança, que alguma casa tenha sido invadida em busca de "Cálice", de Chico Buarque.  

Embora seja um cantor medíocre, Chico é, indubitavelmente, um dos mais notáveis compositores contemporâneos. Suas convicções políticas são estapafúrdias, lamentáveis mesmo, mas é preciso separar a obra do obreiro (uso o termo obreiro no sentido figurado, ou seja, com a acepção de defecar, cagar, fazer merda). 

Com Ricardo Noblat