Por nove votos a um, Supremo decidiu nesta quinta-feira manter a ordem de prisão do traficante André do Rap. O resultado, esperado, avalizou a decisão do presidente da Corte, que derrubou no último sábado a liminar estapafúrdia e teratológica do ministro Marco Aurélio, dono, aliás, do voto vencido na sessão de ontem.
Escusado repetir que faltou bom senso ou — com todo o respeito aos Três Poderes da República como instituições, mas não necessariamente estendendo esse respeito a seus membros — que sobrou estupidez nessa patética tragicomédia, começando por quem colocou o jabuti na árvore, seguindo por quem não tirou de lá e prosseguindo... também já deu para entender. Interessa dizer que o colegiado formou maioria no sentido de que o parágrafo único do famigerado artigo 316 do CPP não implica soltura automática do preso e, ainda que não seja vinculante, o entendimento deve servir de parâmetro para as demais instâncias aplicarem o dispositivo.
Sobre a irresignação do grande responsável por esse furdunço, de admirar sua coerência no erro e sua acachapante teimosia. Ao final da sessão, disse esse obelisco do saber jurídico que a soltura do traficante não foi sua primeira decisão nesse sentido, e citou ironicamente o levantamento do G1:
“Não poderíamos deixar de implementar essa medida. E não foi a primeira, foi segundo o grande veículo de comunicação G1, a octogésima, ou a septuagésima nona decisão por mim proferida. Mas, nesse caso, tivemos essa celeuma toda para desgaste de toda a instituição que é o Supremo. Não me sinto, em que pese as inúmeras críticas, no banco dos réus. Atuei como julgador nessa missão sublime de julgar personificando o que faço há 41 anos. E o habeas corpus ele reclama, para haver a concessão da ordem, a prática de um ato ilegal, a cercear a liberdade de ir e vir do cidadão.”
Disse também o conspícuo julgador que, a seu ver, sua decisão deveria ser revista pela turma, que é quem decide recurso sobre habeas corpus, e criticou a inadmissível possibilidade de o presidente do STF cassar liminares de outros ministros:
“Amanhã, a presidência poderá
cassar uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, da ministra Cármen Lúcia,
do ministro Edson Fachin, do ministro Ricardo Lewandowski. E no passado Vossa
Excelência cassou uma decisão dele, ministro Ricardo Lewandowski, mas a
situação não chegou ao plenário. Agora chegou.”
Fux disse que derrubou de forma excepcionalíssima a decisão do colega, pois ela desrespeitava diversos precedentes do STF, beneficiava um líder de facção que "permaneceu por cinco anos foragido e foi condenado por tráfico de quatro toneladas de cocaína" e que debochou da Justiça por ter se aproveitado da decisão "para evadir-se imediatamente após cometer fraude processual ao indicar endereço falso".
As decisões que Fux vem tomando desde que assumiu a "coordenação de seus iguais" podem ser polêmicas, mas nem por isso são menos irrefutáveis. Quando propôs retornar ao plenário as ações penais que estavam sendo julgadas pelas Turmas, por exemplo, o presidente da Corte feriu suscetibilidades, retirou poderes, mas teve a aprovação unânime do colegiado porque baseou a decisão em fatos — a redução das ações em tramitação —, não em política.
O propósito, por óbvio, era tirar da 2ª Turma o poder político de impor a visão não necessariamente majoritária de ministros ditos “garantistas” — ala que ganhará em breve o reforço do desembargador piauiense indicado por Bolsonaro, cujo ingresso depende de sabatina no Senado, mas que, em que pesem seu currículo artificialmente marombado e o plágio descarado, deve entrar liso feito quiabo.
Para Merval Pereira, nada evidencia com mais rigor a estapafúrdia situação jurídica em que nos metemos do que o pedido de outro traficante, Gilcimar de Abreu, o Poocker, para que lhe fosse estendida a decisão de Marco Aurélio. Usar como pé-de-cabra o art. 316 do CPP é o que distancia “garantistas” como o decano da vez de “punitivistas” ou “consequencialistas” como Fux.
Há diversas interpretações no STJ, e inclusive no STF, que
consideram desnecessária a confirmação das razões para a prisão preventiva
quando o réu tiver sido condenado em primeira e em segunda instâncias, como
é o caso de André do Rap.
O que Marco Aurélio chamou de “autofagia” — referindo-se à possibilidade um ministro cassar monocraticamente a decisão de outro — pode ser visto como a defesa do compadrio, prática que tem desgastado a imagem do STF aos olhos da opinião pública. A tese do ex-ministro Sepúlveda Pertence sobre as 11 ilhas (que eu comentei nesta postagem) reflete a dificuldade de impor o pensamento do colegiado: “Mais do que 11 juízes, somos um só tribunal”, disse Fux, que não à toa demonstra preocupação com à colegialidade das decisões.
Resumo da ópera: O Supremo decidiu que o óbvio continua sendo o óbvio, mas a consagração serôdia do óbvio revelou-se inútil: graças à decisão monocrática que o decano tomou na última sexta-feira, a decisão que o plenário tomou ontem, por 9 votos a 1, não pode ser cumprida porque o réu despareceu no ar, como peido em vendaval, no instante em que foi posto em liberdade, embora nem mesmo a Velhinha de Taubaté seria inocente (ou estúpida) a ponto de acreditar que ele iria pra casa e ficaria quietinho, aguardando o cumprimento do novo mandado de prisão que se seguiria à cassação da liminar que o beneficiou.
Seja como for, o parágrafo único do artigo 316 não pode ser visto como um alvará de soltura automático, como bem observou o ministro Alexandre de Moraes, para quem a prisão de condenados em segunda instância (caso do chefão do PCC) nem deveria ser reavaliada. Tratar como presumivelmente inocente um criminoso cujas sentenças de segundo grau somam 25 anos e oito meses não faz o menor sentido. Mesmo que seja cega, a Justiça não precisa ser burra. Nem surda.
Dando ouvidos ao óbvio, diz Josias de Souza, talvez Têmis regule a sua balança. Os direitos fundamentais do acusado são importantes e é preciso colocá-los num prato da balança, mas desde que se acomode no outro prato os direitos fundamentais da próxima vítima.
Como bem pontou o ministro Barroso, um dos papéis dos supremos togados é justamente evitar o próximo homicídio, o próximo latrocínio ou o próximo estupro. Isto posto, deve-se levar em conta os dois pratos da balança do sistema penal. Simples assim.