Não é que as instituições estejam funcionando mal, ou passando por alguma anomalia — ao contrário, elas são organizadas de maneira a tornar inevitáveis resultados como o que beneficiou André do Rap.
Nos parágrafos a seguir é descrita uma série de fatos que
mostram talvez melhor que quaisquer outros como está funcionando neste momento
a vida pública do Brasil — não como ela aparece no noticiário, disfarçada de
coisa séria e merecedora de mesas-redondas na televisão, e sim como ela é na
sua realidade. Não se iluda. O episódio de demência em que um ministro do STF
soltou um chefe do PCC, outro cancelou a soltura e o plenário decidiu
dar razão ao segundo quando não adiantava mais nada, pois àquela altura o
bandido já tinha sumido do mapa, não é apenas a mais recente comprovação de que
o país vive num estado de anarquia legal — criado pelos deputados e senadores,
de um lado, e turbinado pelo Sistema Judiciário, de outro. É, na verdade, um
certificado definitivo de que o Brasil chegou até onde poderia ir com as regras
do jogo que estão valendo hoje. Melhor que isso aí não fica. O Legislativo não
deixa. O Judiciário não deixa. O Executivo está fechado com os dois, porque
precisa de um e do outro para sobreviver. Game over.
É o caso, visto que as coisas estão assim, de fazer um jogo:
ganha o leitor que conseguir achar uma única coisa certa ao longo dessa
história toda. Ou, então, talvez seja mais prático ir pelo caminho contrário:
ganha quem descobrir o maior número de erros praticados ao longo do desastre
todo — desde o seu parto na Câmara dos Deputados até a sessão de fogos de
artifício em que o Supremo Tribunal Federal, nada menos que a mais alta corte
de Justiça da nação brasileira, parou tudo para resolver se um traficante de
drogas, que atende pelo nome de “André do Rap”, deveria continuar solto
ou ser preso de novo. Tempos atrás, o STF discutia se quem deveria estar na
prisão, ou fora dela, era o presidente da República. Hoje é o “André do Rap”.
É onde vieram amarrar o nosso burro.
Vamos aos fatos francamente miseráveis que formam essa
calamidade; faça o seu jogo.
1) No ano passado, durante a discussão do “Pacote
Anticrime” proposto pelo ex-ministro Sergio Moro, um deputado de
Minas Gerais, Lafayette de Andrada, infiltrou no texto uma regra que
poderia ter sido escrita diretamente pelo PCC. (Esse Lafayette é
um jurista à altura de qualquer Antonio Dias Toffoli ou Kássio Nunes:
o ponto alto do seu currículo é um doutorado — só que incompleto — numa
universidade do interior da Argentina. Também não completou um curso de
agronomia, este em Minas mesmo.)
Pelo contrabando enfiado no pacote de Moro, através
da introdução de um novo dispositivo no Código Penal, a Justiça brasileira
passou a ser obrigada a rever a cada 90 dias a prisão de criminosos com
dinheiro para pagar advogados caros — mesmo que tenham sido presos em flagrante
por matar o pai e a mãe no Viaduto do Chá, diante de 50 testemunhas. Se o juiz
não “justificar”, a cada vez, por que o sujeito está preso (o fato de ter
matado pai e mãe, apenas, não é suficiente), o acusado terá de ser solto. É um
caso único, em todo o planeta, de uma Lei Anticrime que tem um artigo de proteção
aos criminosos.
2) Esse dispositivo pró-crime foi aceito sem problema
algum, na Comissão e no plenário, pela “Bancada da Bala” — o grupo de deputados
que se elegem dizendo que “bandido bom é bandido morto”. (O único voto
contrário na Comissão foi da deputada Adriana Ventura, do Partido Novo.
O relator, homem da “bala”, disse que não gostou, mas também não brigou. Falou
em corrigir “depois”, no plenário; não houve “depois”.) Teve a bênção, como
sempre, do presidente da Câmara, que não falha nunca nessas coisas. É mais um
caso sem paralelo no mundo: uma bancada de parlamentares contra o crime aprova
um dispositivo de incentivo ao crime.
3) O presidente da República vetou 25 pontos da nova
lei. Esse não: ficou exatamente como foi enfiado lá dentro. Uma vez sancionado,
o projeto aprovado pela Câmara e pelo Senado se transformou em lei e está
valendo. No embalo, o presidente também sancionou a criação de mais um
mecanismo para travar a prestação de justiça e proteger os criminosos: o “juiz
de garantias”. O atendido, aqui, foi um deputado que se apresenta como um
“puro-sangue” da esquerda carioca.
4) O traficante de drogas André Macedo, um dos
chefes do PCC de São Paulo, pediu a sua soltura ao STF assim que soube
que a invenção da Câmara dos Deputados em seu favor tinha sido sancionada e
estava em vigor. Por uma dessas coincidências da vida, seu recurso caiu justo
com o ministro Marco Aurélio, vejam só. Por uma coincidência mais
notável ainda — e põe notável nisso —, a advogada que assina o pedido de habeas
corpus é sócia imaginem de quem? De outro advogado que até pouco tempo
atrás era assessor — isso mesmo, assessor — do ministro Marco Aurélio em
pessoa. Que tal? Eis aí mais uma coisa que não acontece em nenhum outro país.
Marco Aurélio, é claro, tomou a precaução de decidir
sozinho o caso, em vez de apresentá-lo ao julgamento coletivo do tribunal.
Sabia que se dividisse a decisão com os colegas iria perder, como efetivamente
perdeu no plenário logo depois; com o seu decreto solitário (eles chamam isso
de “monocrático”), quis garantir, com certeza, que o chefe do PCC seria
solto na hora. (Tanto faz, depois, que a sessão plenária decidisse o contrário,
pois a essa altura o cliente da sócia do assessor já estaria longe.)
“Monocracia”, como se pode ver, é o tipo da coisa que funciona.
5) O ministro, como sempre, alegou que “lei é lei” — se
está na lei, ele tem de cumprir, e a lei é isso aí que a Câmara aprovou. (Na
verdade, a lei só é lei quando o STF gosta do que está escrito. Quando não
gosta, a lei não vale, como ocorre no caso dos jornalistas de direita que têm
blogs nas redes sociais; o STF acha que não se aplica a eles a liberdade de
expressão estabelecida no artigo 5º da Constituição Federal.) Mas isso é coisa
que a baderna jurídica criada pelo STF já tornou normal no Brasil de 2020. Mais
curioso é notar como, em certos casos, os ministros são capazes de tomar
decisões com a velocidade de um raio.
O STF está sentado em cima de muitos processos há mais de 20
ou 30 anos; há pouco, um cidadão esperou tanto tempo por uma decisão da ministra
Rosa Weber que acabou morrendo antes da sentença. O novo ministro Kássio
também é promissor: responde a 30 queixas no Conselho Nacional de Justiça por
não resolver os seus processos. No caso desse habeas corpus, Marco
Aurélio foi fulminante: mandou soltar o preso no ato, assim que o advogado
pediu. O chefe do PCC, obviamente, fugiu tão logo colocou o pé na rua;
já tinha, segundo a polícia, um jatinho à sua espera. Resumo da ópera: a ordem
de soltura valeu, porque o criminoso foi solto; a brava decisão do plenário de
mandar prender não valeu nada, porque o homem não ficou esperando o Excelso
Pretório chegar a uma conclusão sobre o seu caso.
6) O STF, o mundo político e os vigilantes da moral, da
democracia e da virtude consideram perfeitamente lícito que familiares,
agregados e amigos (além de assessores) dos 11 ministros e dos magistrados dos
tribunais superiores ganhem fortunas como advogados de causas que serão
julgadas por eles próprios. A mídia acha normal. Os cientistas políticos, os
sociólogos e os filósofos acham normal. O “campo progressista”, em peso, acha
normal.
Quem consegue levar a sério “instituições” que funcionam
desse jeito? Não é que elas estejam funcionando mal, ou passando por alguma
anomalia — ao contrário, elas são organizadas de maneira a tornar inevitáveis
resultados como esse. É um sistema. A melhor demonstração disso é que todos
estão felizes: o deputado Lafayette, que emplacou o seu presente ao
crime organizado, o deputado da esquerda carioca, o presidente da Câmara, que
diz que todo esse “problema” é da “Justiça”, a “Bancada da Bala”, o Palácio do
Planalto, o ministro Marco Aurélio, o ex-assessor do ministro Marco
Aurélio, a “governabilidade”, o plenário do STF, os parentes da alta
magistratura, os advogados, o PCC e “André do Rap”. Quando fica
assim, é muito claro quem é que foi escolhido para pagar a fatura.
Com J.R. Guzzo.