sábado, 31 de outubro de 2020

O FEBEAPÁ E O GÊNIO DA GARRAFA


Usado figurativamente para designar pessoas com capacidade intelectual acima da média, o termo gênio (do árabe jinn, que significa “aquele que não se pode ver”) remete originalmente a entes sobrenaturais que povoam a mitologia árabe: os Jinni, que são gênios benfazejos (e por vezes sensuais, como na versão protagonizada por Barbara Eden na série Jeannie é um Gênio), e os Ifriti, que são malévolos.

Gênios gozavam de elevada posição no Paraíso, mas rebelaram-se quando Deus criou Adão e foram expulsos para as míticas Montanhas Káf. A capacidade de assumir qualquer forma lhes permite residir no ar, no fogo, sob a terra e em praticamente qualquer objeto inanimado concebível — como pedras, lamparinas, garrafas vazias etc. —, mas quem conhecer os necessários procedimentos mágicos pode usar em proveito próprio os poderes dessas criaturas. Reza a lenda que os gênios atendem a três pedidos de que os liberta do lâmpada (ou da garrafa) em que foram enclausurados, mas, como se sabe, a maioria dessas história não acaba bem.

Bons ou maus, os gênios ganharam protagonismo em filmes, como Aladdin e Aventuras de Sinbad, o marujo, e têm presença garantida nas mais famosas obras da literatura persa, como As Mil e Uma Noites. Nessa fabulosa coletânea de contos, o sultão Xariar condena à morte a esposa Xazaman, que lhe enfeitou a testa com um vistoso par de chifres. A partir de então, o rei desposa uma jovem diferente a cada noite e a manda para o cadafalso ao nascer do sol. Decidida a pôr fim a esse ciclo vingativo, a filha do grão-vizir se oferece para a noite seguinte, que se multiplica, assim como as histórias que ela conta ao marido, adiando indefinidamente a própria execução. Passadas mil e uma noites, o califa se apaixona pela envolvente Sherazade e suspende a ordem cruel.

Fiz essa breve alegoria porque vejo Jair Bolsonaro como um Ifrit que libertamos para impedir a volta do criminosos Lula e sua quadrilha ao Poder. Enquanto tentamos descobrir como devolvê-lo à garrafa, ele abraça o clientelismo, amanceba-se com o Centrão, anda de braço dado com o dedo-duro do Mensalão, estreita relações com o que há de pior na banda podre do Judiciário e faz do populismo assistencialista trampolim para a reeleição. Pobres de nós.

Segue a transcrição de um artigo que o jornalista, escritor e poeta pernambucano José Nêumanne Pinto publicou no Estadão:

O FESTIVAL DE ABSURDOS QUE ASSOLA O PAÍS

O presidente Jair Bolsonaro nunca foi inteligente nem razoável. Não era de esperar que conduzisse o governo, que conquistou com legítima chancela popular na eleição de 2018, com a competência de gestão surpreendente do grande orador que foi Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Afinal de contas, nem sequer administrou carrinho de pipoca em porta de cinema. Seria injusto não reconhecer que ele tem surpreendido pela incapacidade de entender que para tudo deve haver limites na gestão pública, inclusive para a mais rematada burrice, como pratica e professa.

No mandato de deputado federal, em que permaneceu 28 anos depois de uma passagem medíocre em dois na Câmara Municipal do Rio, Sua Insolência patrocinou causas absurdas, como a luta para autorizar a venda de uma tal “pílula do câncer”, invenção de um Professor Pardal abrigado na mais respeitável instituição universitária do País, a USP, e fazendo dupla, nem tão inesperada assim, com o médico e sindicalista petista Arlindo Chinaglia. A manifestação pré-histórica da nojenta aliança “bolsolulista” ganhou a disputa no plenário da Casa, que, fiel à única ciência que seus membros respeitam, a demagogia, aprovou a picaretagem por larga maioria. Só que, mais fiel ao que se imprime nos livros do que um parlamentar que não deve ter lido o Almanaque Capivarol, por abominar qualquer mezinha legalizada pela vigilância sanitária, o Supremo Tribunal Federal proibiu a fancaria. Alçado à Presidência da República, contudo, ele não abdicou de sua vocação de charlatão-em-chefe para reiterar a eminência do alto cargo que exerce fazendo “justiça” ao inventor de araque. Mas sendo injusto com os cardíacos que ajudaram a fazer a fortuna do garimpeiro (como fora seu pai) João Teixeira de Faria, impropriamente chamado de João de Deus. E se agarram a alguma vã esperança para abandonar qualquer tratamento e tomar a “poção mágica”.

A pandemia que devolveu ao mundo o pavor da gripe espanhola há mais de um século era, reconheçamos, uma oportunidade de ouro para exercer mais uma vez do alto do panteão da República insensata a prática ilegal da medicina. Ele nunca foi mesmo mais do que um demagogo sem escrúpulos que se lançou na política com a missão sem empatia de aumentar o próprio soldo. Este é o único projeto a que segue fiel: assumir mais uma vez seu papel favorito, o de camelô de óleo de cobra em feira livre. Sua obsessão pela hidroxicloroquina, insanidade contagiosa de seu ídolo, Donald Trump, sonegador-mor de impostos da segunda maior economia do mundo, foi um avanço de mais uma estação no seu trajeto à embromation recomendada pelo lateral Armero, de seu time, o Palmeiras.

Mas a hidroxicloroquina e o vermífugo apelidado de Anita não lhe bastaram. Ele precisava de um objetivo mais difícil. E aproveitou a onda mundial de imbecilidade negacionista, obscurantista e ignorantista para assumir o papel de detrator das vacinas em nome da bandeira improvável da liberdade individual. Logo ele, quem diria.

“Com tanto sol na minha alma, como fui apostar no absurdo?”, disparou o Prêmio Nobel de Literatura Albert Camus, frase magnífica que me foi lembrada por Nélida Piñon em entrevista que me deu abordando seu lançamento, o romance Um Dia Chegarei a Sagres. E que pode ser encontrada em meu canal no YouTube. Essa seria a melhor epígrafe para esse cabedal de ignorância que assola o País, apesar de todos os exemplos dados, com a deflagração pelo próprio presidente citado de uma guerra da vacina contra seu eventual adversário numa eleição a ser disputada daqui a distantes dois anos, dando-lhe estupidamente o papel de salvador.

Aos parvos, como este autor, que acreditavam que a avalanche obscurantista à qual aderiu Ruy Barbosa, que Jair nem sabe quem pode ter sido, estivesse cancelada desde 1904, quando o presidente Rodrigues Alves reprimiu a Revolta da Vacina e prestigiou o cientista Oswaldo Cruz: que ilusão mais besta! Ruy, Alves e Cruz nem imaginariam a volta do mito das cavernas na pessoa do capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, sendo absolvido dos crimes de terrorismo e indisciplina num julgamento ridículo do Superior Tribunal Militar.

Não dá para calcular quantos brasileiros ainda morrerão cegados pelas trevas desse mandatário escolhido legitimamente por suas vítimas. Mas já se sabe que dele não se pode esperar mais do que mandar o anônimo admirador que lhe pediu que não deixasse o preço do arroz subir comprar o carboidrato de cada dia na vizinha Venezuela, pátria do Chávez que o inspirava e agora adota como inimigo preferencial, como pato de Donald.

Não se sabe, porém, quantas árvores sobreviverão ao ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, que, sem saber, citou o antigo colega de Jair na Academia Militar das Agulhas Negras, general Santos Cruz, ao definir o desgoverno que nos desmanda de “fofocalhada”. Mal sabia o parceiro de juventude que seria repetido por Ricardo Salles, que chamou seu companheiro de armas Luiz Eduardo Ramos de “maria fofoca”.

Os dois fizeram as pazes, ora vejam só! Já não se fazem mais generais como antigamente. Imagine o leitor que talvez o último general, aliás, marechal, que tinha moral e civismo, Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, derrotado pelo demagogo-mor Jânio Quadros em disputa pela Presidência, tornou-se conhecido pela lenda de ter um dia invadido a sala ocupada pelo oficial que torturou seu neto, na ditadura militar, deu-lhe um tiro na testa para depois conviver com o rapaz torturado, que foi solto. E com a permanente condição de único comandante a promover um golpe militar pelo avesso para garantir a posse do civil eleito, Juscelino Kubitschek, contra os fardados que nove anos depois depuseram João Goulart para instalar a ditadura, que o charlatão-mor nesta República da ignorância finge que exalta, mas desmoraliza em represália pelo tratamento que foi dispensado pelos comandantes da tropa à sua mediocridade.