O ministro da Saúde anunciou na última terça-feira, 20, a
compra de 46 milhões de doses da vacina desenvolvida pelo
laboratório chinês Sinovac e testada no Brasil pelo Instituto Butantã.
A medida foi elogiada pelos governadores, o que bastou para Bolsonaro postar
nas redes sociais que “o povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha
decisão é a de não adquirir a referida vacina”.
Pazuello agiu corretamente, tanto ao antecipar a
compra da vacina da AstraZeneca quanto ao anunciar que faria o mesmo com
a droga chinesa — que, segundo ele, está mais adiantada e poderá chegar ao
Brasil pelo menos um mês antes das suas concorrentes. Graças ao negacionismo
pragmático do capitão, em menos de 24 horas o compromisso de compra de milhões
de doses da vacina da chinesa virou “um mal
entendido”, e o general-ministro quase virou ex-ministro.
A resistência do governo federal com a Coronavac já ficara evidente na semana retrasada, quando do anúncio do Plano Nacional de Imunização para 2021 sem que a droga chinesa fosse mencionada. Mas na segunda-feira,19, Pazuello enviou uma carta a Dimas Covas (presidente do Butantã), dando conta da intenção de compra e pedindo informações sobre o andamento das pesquisas. Na quarta, 21, Bolsonaro voltou a dizer que não tem interesse na vacina chinesa: “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós. Não sei se o que está envolvido nisso tudo é o preço vultoso que vai se pagar por essa vacina para a China”.
Um acerto, uma vez acertado, dificilmente pode ser
melhorado. Mas o presidente demonstra, a cada nova declaração sobre a guerra da
vacina, que um erro sempre pode ser piorado. Ele fala sobre a decisão de vetar
a compra da vacina do laboratório chinês como se fosse o portador de uma lógica
implacável, mas que não passa de besteirol em estado bruto.
Autoconvertido em garoto-propaganda da liberdade de infectar, Bolsonaro conseguiu transformar sua aversão à "vacina chinesa do Doria" num processo de avacalhação da independência da Anvisa, que "não vai correr" para liberar vacinas contra a Covid-19, disse Bolsonaro horas depois de o Instituto Butantã acusar o órgão de retardar a análise de um pedido de importação de insumos do laboratório Sinovac, para a produção da vacina no Brasil. Protocolada em setembro, a solicitação só seria analisada em novembro. Espremida, a Anvisa prometeu dar uma resposta em cinco dias úteis. Foi contra esse pano de fundo que o presidente disse em sua live que conversou com o presidente da Anvisa e que "não vai ser em 72 horas”, e o diabo a quatro.
Bolsonaro faria um bem inestimável à independência da Anvisa se parasse de falar antes de pensar, sob pena de condenar a "independência" da agência a viver entre aspas. Na noite de quinta-feira, em sua live semanal, disse sua excelência "Duvido que a Justiça vá obrigar alguém a tomar a vacina". Em meio a essa desinteligência, o governador de São Paulo conversou com o presidente do STF, mas disse a Doria que preferia não se manifestar sobre um assunto que poderia ter de julgar como magistrado mais adiante. Fux previu o óbvio, ou seja, que haverá uma judicialização da encrenca da vacinação. As ações já começaram a chegar ao tribunal. Fux definiu a entrada do Supremo na contenda como "necessária" e "importante." Não é difícil antever o que está por vir. Se não desistir do papel de garoto-propaganda da liberdade de infectar, Bolsonaro será derrotado no STF. Se tivesse juízo, retiraria a raiva do pudim e se reposicionaria em cena. Mas juízo é matéria-prima que não orna com a antecipação da pauta de 2022.
O mais curioso é que essa disputa é tão irracional quanto
inútil. Se todas as vacinas que estão sendo testadas se revelarem eficazes,
ainda assim a procura será maior do que a oferta. Além disso, a realidade vai
impor a vacinação. Empresas convidarão seus funcionários a se vacinarem.
Escolas condicionarão as matrículas à vacina. Países exigirão o comprovante de
vacina dos viajantes. Um presidente que dizia em março que era preciso
enfrentar o vírus "como homem, não como moleque" deveria
considerar a hipótese de substituir a molecagem pelo interesse público.
Aos poucos, os fardados estrelados vão se tornando asteriscos humilhantes de um governo em que imaginavam ser os mais importantes. Bolsonaro humilha-os e permite que sejam humilhados, e os generais, resignados, humilham-se a si mesmos.
O general de quatro estrelas Eduardo Pazuello assumiu a pasta da Saúde depois que o capitão das trevas fritou o ortopedista Henrique Mandetta e tostou o oncologista Nelson Teich. Agora, carbonizado pelo chefe na guerra da vacina, o general tornou-se uma porção de cinzas. E conformou-se com o seu novo estado: "Um manda e outro obedece."
Luiz Eduardo Ramos trocou o prestigioso Comando Militar do Sudeste pelo posto de comandante de uma escrivaninha no Planalto. Assumiu a Secretaria de Governo da Presidência. A vaga era ocupada pelo também general Carlos Alberto dos Santos Cruz, dissolvido nos primeiros seis meses do governo num caldeirão em que se misturavam ataques de um guru e filósofo autoproclamado e de um filho aloprado.
Menos de 24 horas depois da
calcinação do amigo Pazuello, Ramos caiu numa fritura sui
generis. Quem pilota o fogão e manobra a frigideira é o ministro civil Ricardo
Salles, titular do Meio Ambiente e membro do bloco ideológico apocalíptico
do governo. Salles plugou-se às redes sociais para grudar em Ramos
a hashtag #mariafofoca. Não se ouviu um pio do general, e o presidente tampouco
se manifestou em público.
Relações administrativas são regidas por uma combinação
lógica de fatores. Se um ministro executa movimentos que não coincidem com a
tática do chefe, ele é mandado embora. Se o presidente desfaz o que estava
combinado, aí é o ministro quem pede para sair. Quando um Pazuello
prefere bater continência para a humilhação a elevar a própria estatura, reduz
o pé-direito do ministério. Quando um ministro vai às redes sociais para
desmoralizar um colega e nada acontece, desmoraliza-se o governo. Se a
desmoralização ocorre no Meio Ambiente, esculhamba-se o ambiente inteiro.
O fogo não arde apenas na Amazônia e no Pantanal. Há incêndio também nos gabinetes de Brasília. Estabeleceu-se nesse setor um duplo comando que não tem o menor risco de dar certo. Bolsonaro impôs a Ricardo Salles uma convivência compulsória com o vice-presidente Hamilton Mourão, convertido em coordenador do Conselho Nacional da Amazônia. Subordinado a Salles, o Ibama suspendeu o combate às queimadas sob a alegação de falta de verbas. Incumbido de melhorar a imagem ambiental do Brasil, o general Mourão abespinhou-se por não ter sido avisado. Entrou em campo para abrir o cofre.
Os generais do Planalto tomaram as dores de Mourão. Salles enxergou as digitais de Luiz Eduardo Ramos numa nota publicada no Globo e despejou sua insatisfação nas redes sociais: "Tenho enorme respeito pela instituição militar. Como em qualquer lugar, infelizmente, há sempre uma maçã podre a contaminar os demais. Fonte de fofoca, intriga, de conspiração e da discórdia, o problema é a banana de pijama."
Decorridos alguns minutos, Salles decidiu dar nome à banana. Apagou a primeira mensagem e postou algo mais incisivo: "@Min-LuizRamos não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto (sic). Chega dessa postura de #mariafofoca."
O general Santos Cruz, antecessor de Ramos na
coordenação política do Planalto, fez uma avaliação ácida logo que foi
expurgado do governo. Definiu o governo Bolsonaro como "um show de
besteiras", que "tira o foco daquilo que é importante." Nesta
sexta-feira, Santos Cruz levou à vitrine do Twitter um
ensinamento para os colegas que continuam no governo. "Hierarquia e
disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres", anotou o
ex-ministro. "Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a
uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'... como mandar
varrer a entrada do quartel."
O acúmulo de humilhações simplifica a vida dos militares do
governo. Para demonstrar alguma altivez, basta que os generais continuem
agachados. O "festival de besteiras" logo evoluirá para o estágio da
balbúrdia. Se é que já não evoluiu.
Com Josias de Souza