Tudo somado e subtraído, quase nada se aproveitou da pantomima falaciosa (mas pomposamente batizada de Apresentação Oficial do Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19) que foi encenada na última quarta-feira, no salão nobre do Palácio do Planalto, para apresentar um plano vacinal feito nas coxas por um general estrategista delirante que acontece de ser ministro da Saúde de um presidente a quem Pedro Bial qualificou de "acéfalo", "desgovernante" e "inominado".
Bolsonaro se disse "honrado" em receber os governadores e afirmou que alguns não compareceram por "motivo de força maior". João Doria foi um deles. A título de justificativa, o tucano informou que era seu aniversário de 63 anos e que ficaria próximo à família em São Paulo. Mas enviou o secretário de Saúde, Jean Gorinchteyn, para representá-lo na efeméride.
Durante a solenidade, uma situação inusitada ocorreu.
Ninguém estava de máscara, só o Zé Gotinha — personagem usado pelo Ministério
da Saúde desde 1986 em campanhas de vacinação —, que não retribuiu a aperto
de mão oferecido pelo presidente, preferindo manter distância e fazer um
sinal de “positivo”. Resta saber se o ator que interpretou o mascote
permanecerá no posto.
A impressão que ficou, de que nem o suserano nem o vassalo sabiam que estavam falando, só reforçou a sensação de que nenhum dos dois tem a menor ideia do que está fazendo no cargo que ocupa. Para além disso, sobraram perguntas não respondidas e respostas
a indagações que não foram feitas. Mas dois pontos chamaram especialmente a
atenção:
1) A “aflição”
do mandatário de festim (desde o início, segundo ele) com a gravidade
da pandemia:
“A grande força que todos nós demonstramos agora [governo
federal e governos estaduais] é a união
para buscar a solução de algo que nos aflige há meses.
(...) Nos
afligiu desde o início [a Covid-19]", disse Bolsonaro.
2) O fato de o general-ministro da Saúde “estranhar”
a ansiedade e a angústia da população em relação à vacina que pode
frear uma linha de produção que vem empilhando cadáveres em escala
industrial:
"Nós somos os maiores fabricantes de vacinas da
América Latina. Para
que essa ansiedade e essa angústia?, perguntou Pazuello.
Observação: Segundo balanço do Ministério da Saúde
feito na noite da quarta-feira 16, a Covid-19 havia matado 182.799
pessoas no Brasil, sendo 964
apenas nas últimas 24 horas.
Para bom entendedor, pingo é letra. Como nem todo mundo lê entrelinhas o real significado das bolsonarices e pazuellices, dedico mais algumas linhas às falas do suserano e seu vassalo. Começo por lembrar que nenhum dos cinco presidentes-generais que governaram o país durante a ditadura teve um ministro da Saúde que não fosse médico.
Agora, no entanto, 26 anos depois da
redemocratização, o general da banda de turno, que é fã de carteirinha do
regime militar, não
só troca o comando da pasta duas vezes em menos de 30 dias, como o faz em
meio à maior pandemia viral desde a Gripe Espanhola (1918-1920) para empossar um taifeiro triestrelado que se sujeita, sem o menor constrangimento constrangimento, ao aviltante papel de mamulengo.
Em sua participação no jornal da Gazeta da última quarta-feira,
Josias de Souza resumiu magistralmente esse deplorável espetáculo circense:
Brasília esteve mais surrealista do que o habitual nas
últimas horas. Atingiu-se o ápice da incongruência na cerimônia de anúncio de
um hipotético plano federal de vacinação contra a Covid, no Palácio do
Planalto. Surgiu em cena um presidente que fala em "união",
"entendimento" e "paz". Discursou um ministro da Saúde que
questiona a "ansiedade" e a "angústia" dos brasileiros
ávidos por vacinas. Ambos soaram inadequados. Jair Bolsonaro foi
ofensivo. Eduardo Pazuello, desrespeitoso.
A súbita conversão do presidente à vacina ofende a
inteligência alheia. No mesmo discurso em que fez pose de gestor respeitável, Bolsonaro
declarou que a pandemia o "afligiu desde o início" e que "se
algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução." Faltou explicar que
aflições atormentavam o presidente quando ele afirmou que a maior crise
sanitária do século seria uma "gripezinha". E que solução pretendia
alcançar quando declarou que o Brasil precisa "deixar de ser um país de
maricas”.
A crítica do ministro da Saúde à "ansiedade" da
população desrespeita os mais de 180 mil cadáveres produzidos pela Covid
e seus familiares. "Somos os maiores fabricantes de vacina da América
Latina", disse Pazuello. "Pra quê essa ansiedade, essa
angústia?" O capitão do Planalto e o general da Saúde contraíram o
coronavírus. Nenhum dos dois teve de ralar por leitos de UTI e respiradores do
SUS. Bolsonaro teve a assistência ininterrupta dos médicos da
Presidência. Pazuello foi
internado no DF STAR, que é o hospital privado mais bem conceituado de Brasília.
Nas últimas duas semanas, o brasileiro assistiu pela TV ao início da vacinação em massa na Inglaterra e nos Estados Unidos. No Brasil,
faltam seringas e vacinas. Sobra improvisação. A CoronaVac, chamada por Bolsonaro
de "vacina chinesa do Doria", voltou a ser tratada como opção.
Após prever que a imunização começaria em março, dezembro ou janeiro, Pazuello
sustenta que, se tudo correr como planejado por ele, as primeiras doses de
vacina podem ser aplicadas em fevereiro.
"Não vejo nada de errado", disse o general.
"Se tivesse visto, teria corrigido." Então, tá! Resta constatar que a
novela da vacina dispõe de novos personagens: um presidente pacificador e um
ministro perfeito, gestor de mostruário. Agora só falta convencer o brasileiro
a desempenhar nesse enredo o papel de bobo.
Que Deus nos ajude.