O general Eduardo Pazuello revelou-se um gestor fascinante. Mal comparando, toma decisões como um marceneiro que, para pregar um prego sem machucar o dedo, segura o martelo com as duas mãos. No melhor estilo "um manda e outro obedece", Pazuello é o martelo de Bolsonaro.
Já o presidente é tão nocivo hoje quanto era há dois anos,
quando tomou posse. Enquanto outros chefes de estado correm para imunizar os
habitantes dos seus países contra a Covid, ele se esforça para
dificultar a aplicação de vacinas que seu governo não se equipou para oferecer.
É impossível ouvir suas conversas com os devotos, na portaria do Alvorada, sem
tropeçar numa esquisitice.
Em agosto, o presidente defendeu a liberdade de não se vacinar. Em outubro, disse que vacina obrigatória era coisa só para o Faísca (o cachorro da família). Em novembro, celebrou como vitória pessoal a morte de um voluntário dos testes conduzidos pelo Butantan (foi suicídio; nada teve a ver com a vacina), e continuou a fingir que o problema das vacinas não é dele. A penúltima do Bolsonaro é a ideia de obrigar os brasileiros que quiserem tomar vacina a assinar um termo de responsabilidade, isentando o estado de culpa por eventuais efeitos colaterais.
Observação: A Anvisa existe para assegurar
a qualidade dos medicamentos que seus técnicos liberam, inclusive os
imunizantes. Quem assina termo de responsabilidade é cobaia em fase de testes.
Os maricas que irão ao posto de saúde para se livrar do vírus esperam receber
como contrapartida do dinheiro que investem na folha da Anvisa vacinas
seguras e eficazes.
A conversão do imunizante em realidade no exterior levou Bolsonaro
a viver um dilema do tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde (o médico e o mostro).
Apenas 24 horas depois de repetir que não tomará vacina e exigirá um termo de
responsabilidade de quem quiser tomar, declarou que o país vive um momento de
"entendimento" e de "paz". Esgrimindo um hipotético plano
de vacinação, disse que "brevemente estaremos na normalidade." Até sua
assessoria deve estar confusa com esse negócio de separar os dois personagens.
Bolsonaro sabe que essa ideia do termo de
responsabilidade é absurda e não vai prosperar. Se passasse pelo Congresso,
cairia no Supremo. Mas ele tem um modo sui generis de presidir. Imagina
que a melhor maneira de se livrar de uma crise — a falta de imunizantes — é
criando outra crise — a desqualificação das vacinas. O capitão ainda não
percebeu, mas sua atitude é o principal problema. Sem vacinas, ele tende a
virar o próprio efeito colateral.
Intimado pelo Supremo a fixar uma data para o início da
vacinação contra a Covid, o ministro-general graduado em logística na
Ilha da Fantasia informou que a imunização começará em até cinco dias depois da
liberação de uma vacina pela Anvisa. O compromisso tem tudo para se
tornar uma versão sanitária de conversa fiada. Ainda que o governo obtenha as
vacinas, é grande o risco de não conseguir as seringas. Numa guerra convencional,
seria o mesmo que descer ao campo de batalha com munição e sem fuzil.
Deve-se o desacerto ao excesso de descaso. O repórter Vinicius
Sassine conta que o gabinete de Pazuello dá de ombros há seis meses
para um ofício do Ministério da Economia sobre a importação de seringas da
China. A consulta dormita desde 23 de junho na gaveta do coronel Élcio
Franco, o número Dois do general-ministro.
Cutucada uma segunda vez, a Saúde informou que responderá à
equipe da Economia até 28 de dezembro. O governo estima que precisará de 300
milhões de seringas e agulhas. A indústria nacional não consegue atender à
demanda do dia para a noite. No mercado internacional, a fila é grande.
Costuma-se dizer que as instituições funcionam adequadamente
no Brasil. Se fosse verdade, o apagão na Saúde já teria produzido um
curto-circuito institucional. No universo bolsonarista, não há coisas certas ou
erradas. Há coisas que são toleradas e outras que pegam mal. Enquanto o
brasileiro morria de Covid, a aversão do presidente aos imunizantes foi
negligenciada. No instante em que as pessoas começaram a morrer por falta de
vacina, o governo foi intimado pelas circunstâncias e pelo Judiciário a exibir
um plano nacional de vacinação.
A despeito de toda a pregação de Bolsonaro contra a
vacina, o Datafolha informa que 73% dos maricas ainda desejam se
vacinar. Daí a dupla personalidade sanitária do presidente. No essencial, o
país continua no mesmo lugar. Ou, por outra, recuou no calendário. As vacinas
que o governo diz ter adquirido — Oxford, Covax e Pfizer —
ainda não estão no almoxarifado.
A vacina que parece mais próxima da prateleira — a CoronaVac
— ainda não foi comprada. Em outubro, o presidente-monstro mandou rasgar o
protocolo em que o Ministério da Saúde se comprometia a comprar 46 milhões de
doses da "vacina chinesa do Doria". Agora, o presidente-médico
admite que seu governo anuncie a intenção de adquirir a "vachina"
assim que a Anvisa liberar. Mas ainda não há menções a quantidades e
cifras.
Quem não quiser fazer papel de bobo deve perceber que não há
como deixar de tratar os dois Bolsonaros como um só. A soma dos
personagens dá um presidente da República confuso, que tende a trocar a
serenidade do "médico" pelas diatribes do monstro conforme a plateia.
Para cerimônias oficiais, com a presença de governadores, broche do
pacificador. Para os encontros com os devotos do cercadinho do Alvorada, broche
do guerreiro. Para a historiografia, um presidente sem aptidão para presidir.
O coronavírus reforça a sensação de que o grande erro da
evolução da humanidade é a incompetência não doer.
Com Josias de Souza.