sábado, 12 de dezembro de 2020

PRECISA SER MUITO INTELIGENTE PRA SABER?


Em visita ao Rio Grande do Sul, Bolsonaro declarou que "estamos vivendo o finalzinho de pandemia". Disse que houve menos óbitos no continente africano “devido ao uso prévio da cloroquina para tratar malária”. E ajuntou: “Precisa ser muito inteligente pra saber? Não precisa”. 

As bases de dados Coronavirus Facts Alliance e CoronaVerificado desmentiram 161 conteúdos falsos sobre remédios divulgados de janeiro até o dia 20 de julho, dos quais 31,7% envolviam a cloroquina e a hidroxicloroquina. Checadores da Nigéria foram os primeiros a desmentir o boato de que essas drogas, usadas com sucesso no combate à malária, à artrite e ao lúpus, seriam a cura para a Covid-19, mas elas se tornaram bandeira política para Donald Trump e Jair Bolsonaro mesmo assimE ainda que tenha perdido força no resto do mundo, essa desinformação continua sendo compartilhada no Brasil. Mas o fato é que infelizmente ainda não se descobriu um remédio comprovadamente eficaz contra o coronavírus.

Na quarta-feira (9), o Brasil registrou 848 novos óbitos e 54.203 casos da doença. Trata-se do maior número de mortes diárias desde o início de outubro, sem levar em conta os registros elevados ocorridos logo em seguida ao apagão de dados que houve em novembro. A média móvel de mortes também é a maior desde o fim de setembro. No total, o país registrou 179.032 mortes por Covid-19 e a 6.730.118 infecções desde o início da pandemia. E o quadro tende a se agravar por causa das festividades de fim de ano.

A má notícia é que Bolsonaro ignora a gravidade da pandemia do século. A péssima é que, embora os números apontem para o avanço da Covid-19 no Brasil, o presidente se recusa a compreender que ignorar não é o melhor remédio para a ignorância. Confira no vídeo abaixo.

 Gripezinha, conversinha, finalzinho... O que mais assusta na preferência por vocábulos com sufixos diminutivos é a sensação de que o capitão executa uma marcha resoluta rumo à autodesmoralização. Desce ao verbete da enciclopédia como um presidentezinho bem menor do que a crise que engolfa a sua Presidência. Alguém poderia sugerir-lhe a leitura do livro "Why Things Bite Back", de Edward Tenner

O diabo é que a tradução para o português ("A Vingança da Tecnologia", editora Campus, 1997) ocupa 474 páginas — algo intransponível para um presidente que maldiz auxiliares que ousam lhe entregar relatórios com mais de duas folhas. Ainda assim, algum assessor poderia resumir a parte da obra que conta a experiência do Major John Paul Stapp (que vai da página 22 até a 25).

Médico e biofísico, Stapp foi selecionado pela Força Aérea Americana como cobaia de testes para medir a resistência humana a grandes acelerações. Desafiou a velocidade pilotando um trenó com propulsão de foguete. Em 1949, bateu o recorde de aceleração. Não pôde, porém, festejar o feito. Os acelerômetros do trenó-foguete simplesmente não funcionaram. 

Desolado, Stapp encomendou ao Capitão Edward Aloysius Murphy Jr., engenheiro que o ajudava, diligências para identificar a falha. Descobriu-se que um técnico ligara os circuitos do veículo ao contrário. No relatório em que informa sobre o malfeito, o capitão anotou: "Se há mais de uma forma de fazer um trabalho e uma dessas formas redundará em desastre, então alguém fará o trabalho dessa forma". Numa conversa com jornalistas, o major Stapp batizou de "Lei de Murphy" o diagnóstico do auxiliar, e resumiu-o assim: "Se alguma coisa pode dar errado, dará".  

Aplicada ao governo Bolsonaro, a "Lei de Murphy" ajuda a entender por que o governo está sempre dez passos atrás do problema. Podendo administrar a encrenca de várias maneiras, o presidente opta por ligar os fios do seu governo ao contrário. Pluga a administração federal na tomada do negacionismo. Para cada jeito de fazer as coisas, encontra dezenas de desculpas para não fazer.

Bem administrados, os desastres podem se transformar em poderosos instrumentos de mudança. Certas coisas, disse o Capitão Murphy, às vezes só podem dar certo se derem errado primeiro. A despeito da falha que o desconsolou em 1949, o Major Stapp continuou testando, por mais cinco anos, a resistência do organismo humano à alta velocidade. No seu último teste, em dezembro de 1954, ele desacelerou de 1.011 quilômetros por hora para zero em 1,4 segundo, iniciando, em seguida, uma vitoriosa campanha para que os cintos de segurança se tornassem obrigatórios nos automóveis.

A "Lei de Murphy", escreveu Edward Tenner, "não é um princípio fatalista, mas um apelo para que todos se mantenham atentos". Se quisesse levar o que lhe resta de mandato a bom termo, o capitão-cloroquina, assim como o Major Stapp, teria de testar a sua própria resistência à alta velocidade. Mas não dispõe de cinco anos. No seu caso, é preciso cuidar dos minutos, porque as horas passam.

Em sua fala no Rio Grande do Sul, Bolsonaro se comportou como um gênio sem comprovação científica. Ele ainda não se deu conta, mas a diferença entre sua genialidade e a estupidez é que a genialidade presidencial tem limites. Tornou-se uma evidência viva da efetividade da lei do Capitão Murphy: se há mais de uma forma de fazer um trabalho e uma dessas formas redundará em desastre, então Bolsonaro fará o trabalho dessa forma.

Incapaz de elevar a própria estatura, o mandatário reduz o pé-direito de seu mandato. Presidentezinho incorrigível, virou um problemão sem solução. Para complicar, surgiu um agravante. Até aqui, morria-se de Covid. A partir do instante em que o Reino Unido inaugurou a fase da vacinação, morre-se por falta de vacina.

Faltam aos brasileiros vacinas, seringas e bom senso. As pessoas não tardarão a vincular o excesso de mortes à inépcia que o negacionismo presidencial produziu.

Com Josias de Souza