domingo, 13 de dezembro de 2020

TEMPOS ESTRANHOS. DE NOVO.


Espantosa época a atual, em que o absurdo vai adquirindo no Brasil uma admirável naturalidade. Senão vejamos.

Candidato preferido de Jair Bolsonaro, o deputado pepista alagoano Arthur Lira, réu em duas ações, penais será excluído da linha sucessória da Presidência da República se prevalecer na disputa pelo comando da Câmara. Detalhe: de acordo com o STF, não há problema nenhum em réus presidirem a Câmara e o Senado, desde que, em hipótese nenhuma, assumam o Planalto.

Em conversa com a coluna de Josias de Souza, o atual decano do STF — também conhecido como “ministro dos tempos estranhos” e abridor de cela de criminosos de alta periculosidade — ponderou: "Vamos admitir que seja o Arthur Lira o escolhido para presidir a Câmara. Ele é réu no Supremo. Pode exercer o cargo de presidente da Câmara. Mas será privado da potencialidade de substituir o presidente da República caso seja necessário."

Pela Constituição, o primeiro da linha sucessória depois do vice-presidente da República é o chefe da Câmara dos Deputados. Entretanto, o Supremo decidiu em dezembro de 2016 que quem é réu está proibido de assumir a Presidência da República. O próximo na linha sucessória é o presidente do Senado. Frequentam a lista de candidatos com chance de vitória os senadores Eduardo Braga e Fernando Bezerra. O primeiro é investigado por suspeita de corrupção. O outro, a exemplo de Lira, já se encontra no banco dos réus.

Marco Aurélio comenta o inusitado da conjuntura: "Se o presidente da Câmara não puder assumir, passa para o presidente do Senado. Se ele também não puder, passa para o presidente do Supremo. Imagine que o presidente do Supremo se envolva num sinistro (desastre) de automóvel. Suponha que ele vire réu. Também não poderá assumir a Presidência da República."

O precedente que excluiu réus da linha sucessória nasceu de uma ação que teve Marco Aurélio como relator. Renan Calheiros, à época presidente do Senado, tinha acabado de ser enviado ao banco dos réus numa ação penal que corre contra ele no Supremo. O partido Rede Sustentabilidade pediu à Corte que afastasse o novo réu do comando do Senado. Através de liminar, Marco Aurélio determinou o imediato afastamento de Renan, mandou o oficial de Justiça avisar ao senador e pediu à então presidente da Corte, Cármen Lúcia, que submetesse sua decisão monocrática ao crivo do plenário.

Renan afrontou a decisão judicial. Recusou-se a receber o oficial de Justiça. Ainda acomodado na poltrona de presidente do Senado, articulou a derrubada da liminar. Produziu-se, então, uma solução que Marco Aurélio chama até hoje de "meia-sola" e eu, de “jaboticaba”: com o plenário desfalcado de duas de suas 11 togas, o Supremo, pressionado pelo Executivo, achou por bem minimizar as consequências de mais essa rusga entre os Poderes e, por 6 votos a 3, decidiu que Renan poderia continuar presidindo o Senado, desde que fosse excluído da linha de sucessão (que conduz à poltrona de presidente da República). Asso,, em vez de ser preso por desacato, o Cangaceiro das Alagoas preservou seu mandato parlamentar e o cargo de presidente do Senado (como o imbróglio ocorreu semanas antes do recesso de final de ano, pode-se até alegar que a decisão fez sentido, mas isso não a tornou menos vergonhosa).

Um detalhe adicionou à meia-sola uma desmoralização completa. Para salvar Renan, o Supremo teve de ignorar a punição draconiana que impusera a outro réu. Cercado pela Lava-Jato, o ex-todo-poderoso Eduardo Cunha foi afastado da chefia da Câmara e do exercício do próprio mandato. Marco Aurélio, como que antevendo o que estava por vir, ironizou: "O princípio constitucional envolvido passa a ser um nada jurídico, a variar conforme o cidadão que esteja na cadeira, tendo surtido efeitos relativamente ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, [...] mas não para o senador Renan Calheiros. A que custo será implementada essa blindagem pessoal, inusitada e desmoralizante, em termos de pronunciamento judicial?" Como se vê, mesmo um relógio quebrado dá a hora certa duas vezes por dia.

O custo da desmoralização será maior se deputados, senadores e Bolsonaro insistirem em guindar investigados e, sobretudo, réus à condição de favoritos na disputa pelo comando das duas Casas do Congresso. "A possibilidade de substituir o presidente da República é uma deferência que a Constituição presta à Casa Legislativa, não ao cidadão que esteja ocupando momentaneamente o comando", declarou Marco Aurélio à Josias. "Se o presidente da Casa não pode, pula-se para a Casa seguinte? O sistema não fecha. Depois da meia-sola vem o jogo de amarelinha. Tempos estranhos”.