Como é público e notório, a Saúde está sob intervenção militar desde 15 de maio, data em que o oncologista Nelson Teich — escolhido pelo presidente da banânia para substituir o ex-ministro Luís Henrique Mandetta, que havia sido exonerado 29 dias antes — encerrou uma passagem relâmpago pela pasta que, em tempos de pandemia sanitária, deveria ser a mais importante deste desgoverno. Só que não.
No último sábado, 12, atendendo a uma determinação emanada
do Judiciário em resposta a ações
que tramitam no STF cobrando a divulgação de um plano federal,
o general interventor Eduardo Pazuello apresentou um "plano nacional" para
imunizar a população contra a Covid-19.
Apesar de listar 13 vacinas — entre as quais a CoronaVac
—, o documento de 93 páginas (clique aqui
para ler na íntegra) não traz data de início nem cronograma (em anúncios anteriores, o
governo havia dito que o processo iria de março a junho). Pazuello
estima que a vacinação dos grupos prioritários exija cerca de 108 milhões de doses
e leve pelo menos cinco meses. O Posto Ipiranga calcula que serão
necessários R$
20 bilhões para vacinar toda a população, mas essa estimativa não consta
do documento oficial, nem tampouco a intenção do governo de começar a imunização até fevereiro (porque, segundo o general, a data
depende do registro de uma vacina na Anvisa e de sua liberação).
Pazuello diz que garantiu 300 milhões de
doses de vacinas por meio de acordos, mas ressalta que uma parte ainda
está em negociação. "Fiocruz/AstraZeneca: 100,4 milhões de doses,
até julho de 2020, mais 30 milhões de doses/mês no segundo semestre; Covax
Facility: 42,5 milhões de doses; Pfizer: 70 milhões de doses (em
negociação)", diz o documento enviado ao STF.
Com a resposta recebida, o ministro Lewandowski
solicitou à presidência da Corte a retirada das ações da pauta — o julgamento
estava marcado para quinta-feira 17.
Josias de Souza publicou em sua coluna que, ao
retardar a elaboração de um plano de vacinação, Bolsonaro, o grande, revelou-se
intelectualmente lento. E, ao elaborar um plano em cima do joelho para cumprir
um ultimato do STF, o governo mostrou-se eticamente ligeiro. Mas as duas
velocidades são insultuosas.
A lentidão intelectual do capitão ofende até o senso comum.
Com a pandemia a pino, é inconcebível não fazer nada para apressar a obtenção
do único remédio capaz de deter o vírus. Já a ligeireza moral transforma em
suco o lero-lero segundo o qual o Brasil está "acima de tudo".
Fazer qualquer coisa em reação a uma intimação judicial reforça a convicção de
que o interesse nacional está abaixo das idiossincrasias presidenciais.
Despejado sobre 93 páginas, o plano de Pazuello é
impreciso, incompleto e insano. A imprecisão é escancarada na ausência de uma
data para o início da imunização; a incompletude se revela no reconhecimento de
que faltam vacinas para todos; e a insanidade é denunciada pela insistência em
menosprezar uma vacina disponível no Butantan.
Alega-se que a definição da data para o início da vacinação
depende da liberação de uma vacina pela Anvisa. Não é uma boa explicação,
mas é uma ótima confissão. O governo está num mato sem vacina porque apostou
suas melhores fichas no imunizante com selo de Oxford, que tropeçou na
fase de testes.
O planejamento oficial estima que a União terá 108 milhões
de doses de vacina para imunizar os brasileiros dos grupos prioritários no
primeiro semestre. Considerando-se as perdas e a necessidade de aplicar duas
doses, serão vacinadas 51,4 milhões de pessoas. É pouco, muito pouco,
pouquíssimo.
Há nesta terra de palmeiras algo como 212 milhões de
habitantes. Pelas contas do próprio Ministério da Saúde, a imunidade coletiva
será alcançada quando 70% da população for vacinada. Coisa de 148 milhões de
pessoas.
O plano anota que "o Brasil já garantiu 300 milhões
de doses de vacinas." O diabo é que a conta inclui a vacina da
logomarca Oxford-AstraZeneca, que ninguém sabe quando chega; a vacina do
consórcio Covax, da OMS, que ninguém sabe qual será; e a vacina
da Pfizer, que o documento reconhece estar em fase de
"negociação."
O governo negocia às pressas com a Pfizer depois que Bolsonaro
mandou rasgar, há um mês e meio, o protocolo que o suposto ministro da Saúde,
assinara com o Butantan, prevendo a aquisição de 46 milhões de doses da
"vacina chinesa do João Doria."
No plano enviado ao STF, a CoronaVac não consta
do rol de vacinas adquiridas pela União, embora, ironicamente, o documento
relate que a vacina testada em parceria com o Butantan resultou em
"mais de 90% de soroconversão para anticorpos neutralizantes durante as
fases posteriores do ensaio de fase II." Quer dizer: não é por razões
técnicas que a vacina vem sendo preterida.
Como se tudo isso fosse pouco, 36 especialistas que
assessoraram o governo na elaboração do plano de vacinação subscreveram uma
carta segundo a qual eles tomaram conhecimento da existência do
documento pela imprensa — embora seus nomes constem da peça, não lhes foi
dada a oportunidade de referendar o conteúdo.
Nas próximas semanas, a ausência de vacinação ganhará ares
de crise, que crescerá na proporção direta do aumento da exibição de cenas de
pessoas se vacinando em outros países. Respira-se no Brasil uma atmosfera
burlesca. Em governos anteriores, as crises eram provocadas pela oposição.
Hoje, Bolsonaro é quem faz a crise que pode carbonizar seu governo.
Desde o início da pandemia, o presidente sabia que a crise
sanitária teria um custo. Imaginou que poderia repassar a fatura para
governadores e prefeitos. Não colou. Bolsonaro finge não notar, mas já
começou a pagar a conta do seu descaso. O plano de vacinação entregue ao Supremo,
sólido como uma porção de gelatina, é uma tentativa de regatear o preço da
crise. Se continuar pechinchando, o capitão elevará o prejuízo.