terça-feira, 15 de dezembro de 2020

SÓLIDO COMO GELATINA


Como é público e notório, a Saúde está sob intervenção militar desde 15 de maio, data em que o oncologista Nelson Teich — escolhido pelo presidente da banânia para substituir o ex-ministro Luís Henrique Mandetta, que havia sido exonerado 29 dias antes — encerrou uma passagem relâmpago pela pasta que, em tempos de pandemia sanitária, deveria ser a mais importante deste desgoverno. Só que não.

No último sábado, 12, atendendo a uma determinação emanada do Judiciário em resposta a ações que tramitam no STF cobrando a divulgação de um plano federal, o general interventor Eduardo Pazuello apresentou um "plano nacional" para imunizar a população contra a Covid-19.

Apesar de listar 13 vacinas — entre as quais a CoronaVac —, o documento de 93 páginas (clique aqui para ler na íntegra) não traz data de início nem cronograma (em anúncios anteriores, o governo havia dito que o processo iria de março a junho). Pazuello estima que a vacinação dos grupos prioritários exija cerca de 108 milhões de doses e leve pelo menos cinco meses. O Posto Ipiranga calcula que serão necessários R$ 20 bilhões para vacinar toda a população, mas essa estimativa não consta do documento oficial, nem tampouco a intenção do governo de começar a imunização até fevereiro (porque, segundo o general, a data depende do registro de uma vacina na Anvisa e de sua liberação).

Pazuello diz que garantiu 300 milhões de doses de vacinas por meio de acordos, mas ressalta que uma parte ainda está em negociação. "Fiocruz/AstraZeneca: 100,4 milhões de doses, até julho de 2020, mais 30 milhões de doses/mês no segundo semestre; Covax Facility: 42,5 milhões de doses; Pfizer: 70 milhões de doses (em negociação)", diz o documento enviado ao STF.

Com a resposta recebida, o ministro Lewandowski solicitou à presidência da Corte a retirada das ações da pauta — o julgamento estava marcado para quinta-feira 17.

Josias de Souza publicou em sua coluna que, ao retardar a elaboração de um plano de vacinação, Bolsonaro, o grande, revelou-se intelectualmente lento. E, ao elaborar um plano em cima do joelho para cumprir um ultimato do STF, o governo mostrou-se eticamente ligeiro. Mas as duas velocidades são insultuosas.

A lentidão intelectual do capitão ofende até o senso comum. Com a pandemia a pino, é inconcebível não fazer nada para apressar a obtenção do único remédio capaz de deter o vírus. Já a ligeireza moral transforma em suco o lero-lero segundo o qual o Brasil está "acima de tudo". Fazer qualquer coisa em reação a uma intimação judicial reforça a convicção de que o interesse nacional está abaixo das idiossincrasias presidenciais.

Despejado sobre 93 páginas, o plano de Pazuello é impreciso, incompleto e insano. A imprecisão é escancarada na ausência de uma data para o início da imunização; a incompletude se revela no reconhecimento de que faltam vacinas para todos; e a insanidade é denunciada pela insistência em menosprezar uma vacina disponível no Butantan.

Alega-se que a definição da data para o início da vacinação depende da liberação de uma vacina pela Anvisa. Não é uma boa explicação, mas é uma ótima confissão. O governo está num mato sem vacina porque apostou suas melhores fichas no imunizante com selo de Oxford, que tropeçou na fase de testes.

O planejamento oficial estima que a União terá 108 milhões de doses de vacina para imunizar os brasileiros dos grupos prioritários no primeiro semestre. Considerando-se as perdas e a necessidade de aplicar duas doses, serão vacinadas 51,4 milhões de pessoas. É pouco, muito pouco, pouquíssimo.

Há nesta terra de palmeiras algo como 212 milhões de habitantes. Pelas contas do próprio Ministério da Saúde, a imunidade coletiva será alcançada quando 70% da população for vacinada. Coisa de 148 milhões de pessoas.

O plano anota que "o Brasil já garantiu 300 milhões de doses de vacinas." O diabo é que a conta inclui a vacina da logomarca Oxford-AstraZeneca, que ninguém sabe quando chega; a vacina do consórcio Covax, da OMS, que ninguém sabe qual será; e a vacina da Pfizer, que o documento reconhece estar em fase de "negociação."

O governo negocia às pressas com a Pfizer depois que Bolsonaro mandou rasgar, há um mês e meio, o protocolo que o suposto ministro da Saúde, assinara com o Butantan, prevendo a aquisição de 46 milhões de doses da "vacina chinesa do João Doria."

No plano enviado ao STF, a CoronaVac não consta do rol de vacinas adquiridas pela União, embora, ironicamente, o documento relate que a vacina testada em parceria com o Butantan resultou em "mais de 90% de soroconversão para anticorpos neutralizantes durante as fases posteriores do ensaio de fase II." Quer dizer: não é por razões técnicas que a vacina vem sendo preterida.

Como se tudo isso fosse pouco, 36 especialistas que assessoraram o governo na elaboração do plano de vacinação subscreveram uma carta segundo a qual eles tomaram conhecimento da existência do documento pela imprensa — embora seus nomes constem da peça, não lhes foi dada a oportunidade de referendar o conteúdo.

Nas próximas semanas, a ausência de vacinação ganhará ares de crise, que crescerá na proporção direta do aumento da exibição de cenas de pessoas se vacinando em outros países. Respira-se no Brasil uma atmosfera burlesca. Em governos anteriores, as crises eram provocadas pela oposição. Hoje, Bolsonaro é quem faz a crise que pode carbonizar seu governo.

Desde o início da pandemia, o presidente sabia que a crise sanitária teria um custo. Imaginou que poderia repassar a fatura para governadores e prefeitos. Não colou. Bolsonaro finge não notar, mas já começou a pagar a conta do seu descaso. O plano de vacinação entregue ao Supremo, sólido como uma porção de gelatina, é uma tentativa de regatear o preço da crise. Se continuar pechinchando, o capitão elevará o prejuízo.