quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

NA EDIÇÃO REVISTA E TROPICALIZADA, AS DEZ PRAGAS DO EGITO SÃO ONZE


No livro “
Sob o Olhar de Deus” — de Ali Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan, famoso autor árabe nascido no Rio de JaneiroCélio Musafir é um escritor obcecado pela Morte que acaba se encontrando com a própria e... bem, fica aqui a recomendação. 

Como li essa história há mais de meio século, não me lembro bem do enredo, mas jamais esqueci uma máxima que se aplica perfeitamente ao contexto atual: “É loucura não pensar na morte, mas é igualmente loucura pensar nela todo o tempo”.

Não bastassem as incertezas causadas pela Covid e seus consectários, o embate entre uma caterva negacionista e uma súcia alarmista tem produzido tamanha algaravia (não só nas redes sociais, mas também na imprensa profissional) que as pessoas já nem sabem mais o que pensar. 

Para além disso, na edição atualizada e tropicalizada que ora se nos apresenta, As Dez Pragas do Egito são onze, e o faraó de turno não é Ramsés II, o Grande, mas Jair Messias Bolsonaro, o Inefável.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, nem bem o número de vítimas da Covid começou a decrescer, uma matula de irresponsáveis resolveu decretar o fim da pandemia em plena segunda onda, quando pesquisadores do Laboratório Dasa identificaram em São Paulo a nova cepa do Sars-CoV-2 — que já havia sido detectada no Reino Unido e em outros 30 países —, além de outras duas variações, uma na África do Sul e outra no Brasil.

Essas três linhagens são diferentes entre si, mas apresentam semelhanças em suas mutações. A variante tupiniquim tem três mutações idênticas às da sul-africana — uma delas presente também na cepa inglesa — que facilitam o acesso do vírus às células pulmonares, agregando maior poder de transmissão. Já a cepa E484, presente na linhagem africana e brasileira, parece tornar a praga mais resistente aos anticorpos, o que explicaria a ocorrência de reinfecções. 

A boa notícia é que os anticorpos induzidos pelas vacinas atuam bloqueando a “proteína S” — que o Sars-CoV-2 usa para entrar na célula — e estimulando a produção de “células T”, que atacam as células infectadas. Donde se conclui que a vacinação é eficaz também no combate a essas novas cepas. O problema é que nada temos além de uns poucos milhões de doses da CoronaVac — que Bolsonaro foi forçado a promover de “vacina chinesa do João Doria” a “vacina do Brasil”, depois da penúltima demonstração de imprestabilidade chapada de seu bonifrate. 

Sua alteza irreal e seus sectários, xenófobos de quatro costados (noves fora quando se trata de certo ex-presidente dos EUA e de mais meia dúzia de mandatários autoritários), pegaram de empreitada desancar a China, que agora dá o troco criando entraves burocráticos à liberação dos 11 mil litros de IFA (ingrediente farmacêutico ativo), necessário à produção de doses da CoronaVac pelo Butantan.

Segundo o secretário de saúde do estado de São Paulo, Jean Gorinchteyn, um representante do governo paulista está em Pequim, negociando com o governo chinês a liberação do insumo. Ontem, o diretor do Butantan afirmou que espera receber a primeira remessa desses insumos até o final deste mês – ou seja, em até dez dias. Torçamos, pois.

ATUALIZAÇÃO: Uma nota à imprensa que me chegou no final da tarde de ontem, depois de eu ter programado esta postagem, diz o seguinte (litteris): 

O Governo Federal vem tratando com seriedade todas as questões referentes ao fornecimento de insumos farmacêuticos para produção de vacinas (IFA). O Ministério das Relações Exteriores, por meio da embaixada do Brasil em Pequim, tem mantido negociações com o Governo da China. Outros ministros do Governo Federal têm conversado com o Embaixador Yang Wanming. No dia de hoje, foi realizada com o Embaixador, uma conferência telefônica com participação dos ministros da Saúde, da Agricultura e das Comunicações. Ressalta-se que o Governo Federal é o único interlocutor oficial com o governo chinês. Secretaria Especial de Comunicação Ministério das Comunicações.

Quanto à novela dos 2 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca, a Índia anunciou na última terça-feira que começará a enviar vacinas para seis países, mas o Brasil não está na lista. Talvez porque, no afã de atender as demandas de Trump, o capitão-cloroquina passou os últimos meses sabotando uma moção do governo daquele país, no sentido de que patentes sobre vacinas fossem abolidas, permitindo a produção dos imunizantes em laboratórios distribuídos pelo mundo. 

Essa proposta é vista com maus olhos pelos países ricos (donos das patentes), e nossa republiqueta de bananas foi o único país subdesenvolvido a se declarar abertamente contrário, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios às nações mais pobres. Agora, Nova Déli diz que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina contra a Covid que impede o abastecimento global de um imunizante.

Quem semeia ventos colhe tempestades. Se esses nós não forem desatados o quanto antes, a realidade logo transformará a esperança das vacinas aprovadas pela Anvisa na frustração da escassez de doses,

Mudando de um ponto a outro, mas ainda no mesmo assunto, os responsáveis pela “segunda onda da Covid” que assola o Brasil têm nomes, endereços e CPFs. Basta lembrar que, a exemplo do napoleão de hospício que revoga a lei da gravidade e salta pela janela, milhões de pessoas resolveram “decretar o fim da pandemia”. 

Demonstrando total indiferença às recomendações que médicos, sanitaristas, cientistas, epidemiologistas e outros “istas” repetiram ad nauseam, esses irresponsáveis lotaram praias, bares, restaurantes casas noturnas e shopping centers, promoveram/participaram de festas para centenas de convidados e festejaram o Natal e a virada do ano como se tudo estivasse na mais perfeita ordem, na mais santa paz.

Observação: A carga viral necessária para alguém contrair a Covid é de 1.000 vp. Ao respirar, uma pessoa infectada exala cerca de 20 vp por minuto; ao falar, 200 vp/minuto; se espirrar, são nada menos que 200 milhões de vp — volume suficiente para permanecer no ar por horas num ambiente mal ventilado. Logo, ficar na praia em grupos pequenos, respeitando o distanciamento, implica baixo risco, mas o risco cresce exponencialmente quando pessoas se aglomeram sem focinheira ou confraternizam aos gritos e gargalhadas. O aumento do número de infectados, de leitos ocupados e de óbitos ocorridos é consequência das comemorações de Natal e Ano Novo. E não foi por falta de aviso.

O problema com as consequências — ensinou o Conselheiro Acácio (personagem do romance “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, cuja leitura também recomendo —, é que elas vêm depois. No caso em tela, porém, não se fizeram esperar. Prova disso é o tsunami que varreu Manaus depois que a bola cantada da falta de oxigênio caiu na caçapa, enquanto governantes caga-goma e seus ministros obnóxios e obnubilados poluíam o ar rarefeito ventando gazopas sobre tratamentos preventivos inócuos, suscitando dúvidas quanto à eficácia das vacinas e politizando a pandemia. 

A cumplicidade perniciosa da súcia ordinária que reverbera essas patranhas contribuiu para cavar ainda mais fundo o buraco em que nos enfiamos  e do qual sairemos mais cedo ou mais tarde. Mas não será uma saída fácil nem indolor, pois as feridas já estão expostas e deixarão marcas profundas.  

A tragédia de Manaus nada tem a ver com a umidade do clima nessa época do ano, como afirmou o ministro intendente da Saúde. Ela começou junto com a tragédia do Brasil, no dia 28 de outubro de 2018, quando a inépcia, o despreparo e a irresponsabilidade venceram as eleições. 

Esperam-se de governantes idoneidade, aptidão, liderança e trabalho. Quem não tem competência não se estabelece. Brincar com a vida alheia tem um preço altíssimo, e a população não pode e não vai pagar sozinha.

Por último, mas não menos importante, é lamentável, mas compreensível, a disputa por protagonismo entre Bolsonaro e Doria, que supostamente medirão forças em 2022. Mas não há que falar em “guerra de vacinas” nem tampouco colocar os dois no mesmo balaio. 

Doria se alinhou com a ciência e os principais líderes mundiais; dada a inércia do governo federal e da incúria do ministro da Saúde, ele se empenhou e entregou — nada mais justo, portanto, que colha os louros. Bolsonaro desdenhou da pandemia, escarneceu das vítimas e fez o diabo para obstruir a CoronaVac — que ele, sua prole e os imbecis que lhes fazem coro chamam de “vachina” e alardeiam que provoca danos irreparáveis. 

Se for para falar em “guerra”, então é preciso dizer que há duas guerras: uma do governador para obter a vacina e outra do presidente (que nem partido tem) para bloqueá-la.