Em maio de 2020, quando o ministro Alexandre de Moraes arrastou o bolsonarismo para dentro de um inquérito sobre notícias falsas, Bolsonaro subiu nas tamancas: "Acabou, porra!" Era engano. Estava só começando. Daniel Silveira, um dos alvos de Moraes, forneceu material para sua prisão. No ano passado, ele foi alvo de busca e apreensão e teve quebrado o sigilo bancário no escopo do inquérito sobre a organização de atos antidemocráticos. Na noite de anteontem, foi preso pela PF no âmbito do inquérito das fake news.
Decretada pelo ministro Alexandre de Moraes e avalizada pelas outras dez togas que compõem o plenário do STF, a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) revelou-se uma providência certa adotada num processo incerto. A detenção foi certa porque o deputado cometeu crimes variados. Confundiu imunidade parlamentar com insanidade pra lamentar. Lançou mão do direito à liberdade de expressão sem dispor da habilidade de se exprimir.
Após a prisão em flagrante, o parlamentar deverá passar por uma
audiência de custódia, para que um juiz (que pode ser o próprio ministro Alexandre) avalie a legalidade da prisão
e a necessidade ou não de mantê-la. Como no Brasil é a raposa que toma conta do
galinheiro, a Câmara Federal pode revogar a decisão de Moraes (desde
que se forme maioria de 257 deputados), o que não é
improvável se considerarmos que Aécio Neves
continua deputado, a dublê de cantora e pastora Flor de Liz — suspeita do assassinato do marido — continua
deputada, e por aí segue a revoltante procissão. Mas o voto do nosobres deputados
deverá ser aberto, e que a decisão de apoiar ou não o colega boquirroto e mau-caráter pode ter
consequências nas próximas eleições.
De acordo com o art. 53 da Constituição, deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer opiniões, palavras e votos. Portanto, não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. E é aí que mora o perigo. A liberdade de expressão não tem limites, mas tem consequências. Se o troglodita for libertado e voltar a agir como agiu, poderá ser preso novamente, deixando o Legislativo em maus lençóis.
Observação: Silveira recebeu a visita de políticos do PSL durante seu primeiro dia na prisão. Ele não está algemado e, como pode comer o que é levado pela defesa, jantou pizza e, no almoço, comeu bife, batatas fritas, arroz e feijão. Embora ele esteja sem o telefone celular, sua assessoria vem fazendo postagens em seu nome nas redes sociais. O dia de ontem foi marcado por confusões, como a discussão de Silveira com uma funcionária do IML.Resta saber se o novo todo-poderoso presidente da Câmara tem bala na agulha para passar nessa prova de fogo. E falando em fogo, essa coisa toca cheira a cortina de cortina de fumaça: enquanto discute o futuro do deputado troglodita, o Parlamento alivia a pressão sobre o Executivo no que tange à vacinação, ao ministro Pesadelo e a seu comandante em chefe. Entrementes, a pilha de cadáveres segue aumentando. Já são mais de 241 mil mortes pela Covid em decorrência de incapacidade de gestão e omissões do poder executivo federal.
O inquérito de que se serviu o STF para enjaular o brucutu em tela é incerto porque foi inaugurado à
margem da lei por Toffoli, que,
quando presidente da Corte, alegou a necessidade de estancar uma onda de
notícias falsas que engolfava o Supremo.
Queria identificar os autores de ameaças virtuais aos ministros e seus
familiares. Deveria ter requisitado a abertura de inquérito à PGR. Preferiu agir "de
ofício", por conta própria. Escorou-se no artigo 43 do regimento interno,
que atribui ao presidente do Supremo
poderes para defender a Corte contra "infrações
à lei penal ocorridas na sede ou dependência do tribunal".
Desvirtuando o sentido do texto, Toffoli tratou todo o território do Brasil como se fosse uma versão hipertrofiada da sede do STF. Em condições normais, o relator do processo seria escolhido por sorteio. Toffoli ignorou a regra, confiando a tarefa a Alexandre de Moraes. Vários ministros torceram o nariz na ocasião. Marco Aurélio manifestou sua estranheza em voz alta: "O que ocorre quando nos vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral da República, nós acionamos o estado-acusador. Somos estado-julgador e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal". Luiz Fux, à época vice-presidente do Supremo, também chiou: "Evidentemente que eu respeito a opinião dele (Toffoli), mas acho que ele vai mandar para a Procuradoria-Geral da República. Não tem como não mandar para a PGR. E não tem como inibir a PGR de trazer novos elementos."
Raquel Dodge, então procuradora-geral, tentou arquivar o inquérito sigiloso de Toffoli. Sustentou que havia vício de origem e de forma. A investigação não poderia ter nascido no Judiciário, sem a participação da Procuradoria. O Supremo acumulou os papéis de vítima, investigador e julgador. O relator Moraes reagiu assim: "Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade. Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente abriu, o regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei e nós vamos prosseguir." Posteriormente, o inquérito espúrio foi avalizado pelo plenário da Corte. A maioria como que lavou a decisão ilegal do colega.
A autossuficiência da Suprema Corte está presente no caso do deputado Daniel Silveira. Vítima das agressões e ameaças, Moraes mandou prender o brucutu. Também alvejados, os demais ministros confirmaram a ordem de prisão. Os mesmos ministros terão de julgar o inquérito sobre notícias falsas e ataques à instituição, do qual o deputado preso é um dos protagonistas, e que, com o tempo, foi ganhando a aparência de um inquérito multiuso. Começou com o pé esquerdo, censurando uma notícia da revista Crusoé. Trazia Toffoli pendurado de ponta-cabeça no título. O barulho provocado pelo disparate forçou Moraes a recuar, liberando a reportagem. Hoje, o alvo principal é a caravana de militantes e políticos bolsonaristas associados ao chamado gabinete do ódio, sediado no Planalto.
O contrário da aversão primária que personagens como Daniel Silveira nutrem pelo Supremo é o entusiasmo ingênuo que aceita todas as presunções da Suprema Corte a seu próprio respeito. Isso inclui concordar com a tese segundo a qual as togas, por supremas, têm uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, inquestionável.
Observação: O AI-5, editado em 1968, suspendeu as garantias constitucionais e resultou no fechamento imediato e por tempo indeterminado do Congresso e das assembleias legislativas. Hoje, a Constituição prevê que deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por opiniões, palavras e votos e não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que os autos serão remetidos à Casa respectiva, para que a maioria absoluta decida, em voto aberto, sobre a prisão.
Continua atual a velha tirada de Churchill, sobre a democracia ser o pior regime imaginável com exceção de todos os outros. O diabo é que políticos como Daniel Silveira estão empenhados em dar razão aos que pregam alternativas piores — como a ditadura. Não notou que a democracia é o único regime em que uma hipotética sabedoria coletiva elege ignorâncias individuais.
O apatifamento da política começa pela degradação do discurso público. Um deputado dispõe de imunidade parlamentar para dizer tudo o que a lei permite. O problema é que o parlamentar bolsonarista fez da própria língua uma criminosa em série. Podendo exercer em sua plenitude o direito à liberdade de expressão, o adorador do mito tem uma dificuldade absoluta de se exprimir sem invadir o Código Penal.
Impossível catalogar Silveira em outra categoria que não seja a de um parlamentar viral. Pertence à cepa bolsonarista, originária de um presidente que assegura que não houve um golpe em 1964 nem uma ditadura militar nos 20 anos subsequentes, abomina vacinas e sonha em "tirar de circulação" os jornais. Pende da árvore genealógica desse "mito" um Zero Três que já declarou que bastam "um cabo e um soldado" para fechar o Supremo.
O mais inusitado é que o Supremo poucas vezes esteve tão vulnerável como agora. Merece inúmeras críticas. O próprio inquérito no qual Silveira encalacrou-se nasceu de um ato ilegal, editado à revelia do MPF pelo então presidente da Corte, Dias Toffoli.
O problema é que o linguajar apatifado da crítica garante ao Supremo, por contraste, uma imagem de hedionda superioridade. E rapidez no gatilho: a sessão de ontem durou menos de uma hora. Com breves manifestações, todos os tocados seguiram o relator — apenas o decano proferiu uma declaração ao votar. Marco Aurélio considerou o vídeo “chulo” e a prisão necessária para interromper “prática criminosa permanente” e preservar as instituições.
Com Josias de Souza e InfoMoney