segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

O COMEÇO DO FIM

Diante do mais repugnante governo da história, as autoridades, sempre “ponderadas”, afirmam que não há motivo para preocupação, ainda que o discurso de Jair Bolsonaro, conspiratório desde a posse, desminta sua premissa dia sim, outro também.

Comandando um governo de história em quadrinhos, repleto de vilões ridículos, ignorantes e imundos, o Pinguim tupiniquim flerta com o golpismo, enaltece a tortura e os torturadores, estimula o desrespeito à ciência, O presidente menospreza o contágio, fragiliza políticas sanitárias e, cinicamente, desincumbe-se da pandemia como se o assunto fosse da esfera de estados e municípios. Os hospitais entram em colapso. Faltam de leitos a oxigênio. Vacinas são desviadas. Os bares estão repletos e as escolas serão reabertas, a despeito de uma variante do vírus ameaçar a saúde dos mais jovens. E os que a temem e evitam aglomeração social são chamados de “maricas”.

Os frutos da política externa destrambelhada criam embaraços inúteis para as relações diplomáticas com China, Índia, Estados Unidos e Argentina. Bolsonaro diz que a China provocou a “gripezinha”. É contra máscaras e confinamento. Oferece cloroquina a avestruzes. Aglomera. Despreza vacinas. Colocou o Ministério da Saúde sob intervenção militar e o transformou em cabide de farda para os amigos do rei. Promoveu a mortandade em Manaus, onde faltam insumos, oxigênio e leitos de UTI, pessoas morrem feito moscas e espertalhões furam a fila da vacinação. Um dia após ver seu principal adversário político vencer a queda de braço e iniciar a vacinação por São Paulo, recorreu a seu abjeto arsenal ideológico para acirrar os ânimos da base popular que lhe é mais fiel.

Há quem ache que o risco de perder apoio fará com que ele saia do negacionismo. Dá-se como exemplo sua louca cavalgada atrás de vacinas nos últimos dias. De fato, não lhe falta cara de pau para fingir e enganar. Para dizer simultaneamente uma coisa e seu contrário. É seu método de governo. Com a peste, tal método o fez errar na mosca — sempre.

Admita-se que demita o ministro da Saúde, energúmeno que só lhe segue as ordens. Convidará um Dráuzio Varella para o cargo? Óbvio que não (e essa é outra constatação empírica). Dado seu prontuário, chamará um sabujo, um incompetente, um carreirista para o cargo. Foram esses os requisitos inegociáveis que usou na montagem do ministério. Não há nele ninguém que preste. São pessoas que, sem luz própria, medram na treva fétida do pântano. 

Bolsonaro existe e persiste porque o Centrão assim quer. A questão é que o Centrão não é de centro. É de direita sempre, doa a quem doer. Desde o fim da ditadura ele é maioria no Congresso. Foram desse pântano Sarney, Collor, Temer e, como pinto no lixo, Bolsonaro. Quando a pandemia roncou, o desemprego explodiu, os filhos se emporcalharam e o auxílio emergencial foi para o beleléu, Bolsonaro voltou ao aconchego do velho pântano, onde foi recebido de braços abertos.

Até aí, nenhuma surpresa. Surpreendente é a oposição não se opor. O PT primeiro aprovou o plagiador que o chefe do Executivo indicou para o Supremo. E agora, como o PSOL, disse que votará em Baleia Rossi para presidir a Câmara. Bolsonaro virou um empecilho à solução de todo e qualquer problema nacional. Urge “impichá-lo”.

Sua destituição é uma quimera? Não. Tanto que setores da direita — Novo, MBL, Vem pra Rua — passaram a propugná-la. Ouviram tambores, perceberam que, como se diz nos filmes de Tarzan, “os nativos estão inquietos”. O desfecho não será uma missa negra no Congresso, com beijinhos à tia Maricota nos cafundós da Paraíba. Virá de um árduo embate de forças. O mandatário da vez não deixará o Planalto como Collor ou Dilma. Terá de ser tirado. Sua queda estará mais para derrubada que para impeachment. Só sairá se houver revolta. Se continuar, continuará o bololô. Até que tente o golpe.

A ala “garantista” do STF, reforçada pelo ingresso do ex-desembargador piauiense Kássio Nunes — que já deu mostras de sua incomensurável gratidão a quem o conduziu ao cargo — finge inibir medidas obscurantistas do chefe do Executivo. Uma liminar aqui, outra ali, os filhos do presidente vociferando pelo fechamento do tribunal e os integrantes da Corte participando de alegres confraternizações que reúnem expoentes de todos os Poderes.

Há, sim, procuradores independentes, destemidos e vigilantes, mas o chefe do MPF, incumbido de acusar o presidente pelo rosário de crimes comuns cometidos, é manso e subserviente, como foi manso e subserviente o presidente anterior do Supremo.

A política também funciona. O candidato de Bolsonaro à presidência do Senado é apoiado pelo PT. O presidente da Câmara dos Deputados desfere ataques retóricos ao desgoverno, mas mantém na gaveta cerca de 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro sem que Maia tenha se manifestado sobre qualquer um deles. Sob ameaça de sofrer a primeira derrota para o Centrão desde que sucedeu a Eduardo Cunha na presidência da Câmara, o deputado finalmente mudou o discurso: 

"Houve e há uma chance de ruptura institucional. A eleição da Câmara é um divisor de águas nesse assunto. Acho que o presidente da Câmara precisa ser alguém que não seja dependente do governo e que não deva sua eleição ao presidente da República. Com isso, o presidente [Jair Bolsonaro] se sentirá forte o suficiente para ampliar o conflito com as instituições democráticas, o Congresso e o Supremo. disse o deputado à Folha. No entanto, como o macaco que tira a castanha com a mão do gato, deixa a decisão de abrir o processo para seu sucessor.

O senador baiano Ângelo Coronel, presidente da CPI que investiga as fake news bolsonaristas, recebeu sinal verde do Palácio do Planalto para direcionar R$ 40 milhões de recursos extras do orçamento a obras em seu reduto eleitoral. A verba consta na planilha informal do governo, obtida pelo Estadão, que registra um repasse de R$ 3 bilhões a 285 parlamentares às vésperas das eleições da nova cúpula do legislativo.

Bolsonaro conta com a força bruta propriamente dita: generais com e sem pijama, milícias e meliantes, polícias e porra-loucas. Aumentou-lhes o soldo e os armou até os dentes. Do outro lado estará a força da política militante, a auto-organização popular e da sociedade civil. Nos locais de trabalho, nos bairros, nas escolas — em praça pública. No meio do bangue-bangue estará o pântano. Ele não é imóvel. Dá para ouvir um rato sussurrando para um réptil: “Parece que esse negócio de impeachment está dando um dinheirão”.

Folha compilou nada mais nada menos que 23 situações que poderiam ser enquadradas como crime de responsabilidade, mas no território sombrio da história em quadrinhos não há espaço para super-heróis. Daqui ninguém sai. Aqui ninguém entra. São párias, marcados para morrer. Ninguém é cidadão.

Com Luís Francisco Carvalho Filho — Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004) — e Mario Sergio Conti — jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".