Escrever sobre política, atualmente, é como trocar um pneu furado com o carro em movimento. O cenário muda tão rapidamente que a metáfora das nuvens no céu, atribuída a Magalhães Pinto, só vale em meio a um furacão. Assim, antes de prosseguir com o texto que eu havia pautado para hoje, vale fazer algumas considerações acerca da substiuição do general-pesadelo na pasta da Saúde.
Desde sábado que
se fala sobre a eminente exoneração daquele que comanda a Saúde obedecendo cegamente e sem questionar as ordens de quem realmente comanda essa seara. Ora se diz que o general vai colocar o
cargo à disposição, ora que sua exoneração se dará por ação do desgovernante de
turno. Mas nada disso muda o fato de que, às vésperas de contabilizar 300 mil
mortos pela Covid, o Brasil se espanta cada vez menos. Ou por
outra: num país prestes a conhecer seu quarto ministro da Saúde em dois anos de governo, faltam mais
pontos de exclamação do que doses de vacina.
Quando puder
falar sobre a crise sanitária do século sem desprezar os detalhes, diz Josias de Souza, a história anotará que Bolsonaro instalou no ministério da pandemia uma porta
giratória e a manteve rodando em torno das suas idiossincrasias. Mesmo assim,
muita gente demora a entender que o problema não está na Esplanada dos Ministérios
e, sim, no Palácio do Planalto.
Bolsonaro já fez de tudo. De receitar cloroquina a
condenar o distanciamento social; de amaldiçoar a "vachina do Doria" a enxergar jacaré na fórmula do imunizante da Pfizer. Em passant, especializou-se em fritar ministros. Depois de se
livrar de Mandetta e Teich, transformou um
general da ativa autodeclarado expert em logística numa anomalia administrativa,
que agora se tornou um caso raro de ex-ministro da Saúde que continua no cargo.
Isso porque é praticamente impossível achar alguém disposto a assumir seu lugar,
na medida em que o ministro da Saúde é o próprio chefe do Executivo. No melhor
estilo "um manda, o outro obedece", o ministro estrelado se deu mal
no estrelato e acabou sendo frito em sua própria gordura.
Neste domingo,
após participar de reunião em que o seu pescoço foi o tema central, o general-pesadelo
esclareceu: "Não estou
doente, o presidente não pediu meu cargo, mas o entregarei assim que pedir." O ministro não sabe, mas está, sim,
gravemente enfermo. Foi infectado pelo vírus que reduz general à condição de
capacho. E se autoconverteu num desastre de mostruário ao assumir o patético papel
de bonifrate do capitão, militarizando a Saúde, ignorando ofertas de vacinas,
deixando testes de detecção de Covid perderem a validade, distribuindo
cloroquina para pacientes que morriam por falta de oxigênio em Manaus, despachando
para Roraima vacinas do Amazonas e atrasando o pagamento de leitos de UTI nos estados.
O centrão levou
Pazuello à alça de mira. Líderes do conglomerado
partidário patrocinam o nome da cardiologista Ludhmila Hajjar, mas ela
despreza a cloroquina, critica a escassez de vacinas, aposta no distanciamento
social, prega a união dos líderes políticos e abomina bate-boca entre
presidente e governadores. Ou seja: Ludhmila tem um discurso tão cientificamente
apropriado que não é uma simples alternativa ministerial. Dito de outra forma,
a doutora seria uma nova crise esperando para acontecer — a propósito, o
bolsonarismo já tritura a personagem nas redes sociais.
Fala-se agora
que Bolsonaro vai sobrestar a troca do ministro depois da
“cabeçada” (nas palavras de um interlocutor próximo a Pazuello) na sondagem da cardiologista indicada pelo Centrão, que foi bombardeada nas rede sociais — seguidores
do presidente postaram uma miríade de áudios e vídeos em que a esculápia
critica a ação federal frente à pandemia. Assim, dá-se de barato que o pesadelo
prossiga, digo, que Pazuello siga no posto até que o capitão encontre um
substituto que atenda à demanda do Centrão e, ao mesmo tempo, não o desautorize,
o que, convenhamos, não é tarefa fácil.
Enquanto
prevalecer o receituário de Bolsonaro no trato da pandemia, qualquer troca de
comando na Saúde terá o mesmo efeito de uma receita de cloroquina no tratamento
da Covid. E viva o eleitorado brasileiro.
ATUALIZAÇÃO: Depois que a cardiologista declinou do convite (alegando “falta de convergência técnica” com o capitão-negação), tudo indicava que o general permaneceria no cargo por mais algumas semanas, mas ontem mesmo Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, foi confirmado novo ministro da Saúde. Em entrevista à GloboNews, o esculápio disse que Bolsonaro determinou "amplo debate" com a comunidade médica para haver "resultado melhor diante da pandemia". Clique aqui para saber mais sobre o novo ministro e aqui para saber como o mundo político reagiu à troca Que Deus nos ajude.
O “nós contra eles” semeado por Lula e seus sectários desmiolados, regado pelos tucanos de plumas vistosas e egos guliverianos e estrumado pelo bolsonarismo boçal do capitão da caverna sem luz, deu azo à cizânia, fulminou o bom senso e fez do consenso artigo tão em falta quanto vaga em UTI durante pandemia de Covid. Mesmo assim, 72% dos brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo e 84% acham realmente que seu voto faz diferença, segundo enquete feita pelo Movimento Renova BR. O fato de 28% dos pesquisados não verem a democracia como a melhor forma de governo me faz lembrar duas máximas atribuídas a Sir Winston Churchill: 1) “A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas.”; 2) “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.”
Segundo Aristóteles, “o homem é um ser social porque é um animal que precisa dos outros
membros da espécie”. Viver em bando pressupõe a sobreposição dos
interesses coletivos aos individuais e a limitação da liberdade de cada um em
prol da liberdade de outrem e do grupo como um todo. Dito de outra forma, o
convívio social exige a observância de regras limitadoras do nosso ser ou
não-ser — como disse Drummond, “é preciso instinto de
formiga, dentes de leão e habilidade camaleônica”.
Não existe governo
perfeito, posto que a perfeição na política ou na teoria social só grassa — se
é que grassa — no campo da utopia ou das abstrações conceituais. Na realidade
concreta, a teoria é bem outra. Os próprios gregos — que implementaram o governo do povo pelo povo e para o povo
— impunham toda sorte de limitações às discussões acerca da polis (apenas para citar um
exemplo, estrangeiros, escravos e mulheres não votavam), mas, mesmo assim, sua
filosofia e suas instituições democráticas perduram até nossos dias.
Cerca de 10% dos
brasileiros são analfabetos e outros 40
milhões são analfabetos funcionais (assim
consideradas pessoas que até sabem ler, mas são incapazes de interpretar um
texto). Dar título eleitoral a essa gente é tão arriscado quanto dar uma caixa
de fósforos a um macaco e trancá-lo num paiol de pólvora.
Ao criticarmos nossa
representação política, estamos repudiando nossas próprias escolhas, pois
nenhum agente público conquista cargo eletivo sem o aval do eleitorado. Ainda
que seja louvável o fato de 84% dos
brasileiros acreditarem que podem mudar a situação do país através do voto, é
lamentável que eles não se deem conta de que votar exige refletir, ponderar, e escolher, em todos os níveis, políticos
comprometidos com a democracia, com o diálogo, com a construção de consensos,
com a civilidade e com o espírito republicano. Até porque nossos políticos (salvo
raras exceções) se elegem para roubar e
roubam para se reeleger.
Dito isso, passemos ao texto que eu havia programado para esta terça-feira:
O preço da liberdade é a eterna vigilância, disse Thomas
Jefferson. A democracia reclama atenção constante e uma participação
consciente. Aqui nesta banânia, dos seis Presidentes eleitos pelo voto popular desde
a redemocratização e que continuam vivos, somente o grão tucano FHC não sofreu impeachment nem foi
preso. Collor, o primeiro Presidente
eleito diretamente desde Jânio Quadros
em 1960, foi penabundado em 1992; Dilma
teve o mesmo destino em 2016; Lula
passou 580 dias na cadeia (e corre o risco de voltar para lá, a menos que a
banda podre do STF anule suas
condenações de decrete a prisão do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro (afinal, isto aqui é Brasil) e Temer (que, a rigor, não entraria na lista por ter assumido o
posto devido ao impeachment da bruxa má), engrossou a lista dos presos, mas foi
solto dias depois por um desembargador especialista em libertar ladrões do
erário, que ficou
afastado da magistratura durante 7 anos, acusado de estelionato e formação de
quadrilha.
O futuro do mandachuva
da vez é tão incerto quanto duvidoso é o passado deste arremedo de república de
almanaque. Seu projeto é a reeleição (que Deus nos livre e guarde de tamanha
desgraça), mas sua deposição não está de todo descartada (como dito, nada é
impossível neste c* de mundo). Até porque a diferença entre presidentes impichados
e os que escaparam da degola não está exatamente no que cada qual fez ou deixou
de fazer, mas na quantidade de votos a seu favor que conseguem granjear entre
as marafonas do Congresso.
Quem quiser derrubar
um presidente pelas vias constitucionais precisa amealhar três quintos dos
votos dos 513 deputados e dos 81 senadores. Bolsonaro já foi alvo de mais de 60 pedidos de impeachment, mas Rodrigo Maia sentou-se em cima de todos
eles e Arthur Lira parece disposto a
fazer a mesma coisa (pelo menos por enquanto), até porque falta mobilização popular.
Fala-se que o povo
não sai às ruas devido à pandemia, mas o que tem de gente organizando e
participando de festinhas de todo tipo não está no gibi. Ou a plebe ignara está
C&A para o futuro do país, ou está satisfeita com a gestão negacionista do
populista do Planalto, cuja obsessão patológica para fazer o que não deve é
responsável em grande medida pelos 260 mil cadáveres produzidos pela Covid.
Sem povo nas ruas
não há pressão sobre os deputados, ou, dito com outras palavras, sem
combustível, não há como acender o fogo. Mas nunca é demais relembrar que um
terço de nossos deputados federais e senadores, pelos cálculos mais modestos,
responde a processos na Justiça — quase 200 indivíduos, acredite-se ou não,
numa coisa dessas. Considerando-se que o Senado e a Câmara têm 594 membros,
resulta a seguinte constatação aritmética: o Congresso Nacional é possivelmente
uma das organizações com o maior número per capita de gente enrolada com a
Justiça em todo o país; deve perder só para as penitenciárias.
A presente situação
de impunidade não é suficiente para o gosto dos congressistas — eles querem
ficar mais impunes do que já são. Para isso, começou a ser parida na Câmara a PEC
DA IMPUNIDADE, que
pretende tornar ainda mais difícil a punição de deputados que se vejam acusados
de violar o Código Penal. É um novo fundo de poço.
Depois de se colocar
de quatro diante do STF, engolindo
por vasta maioria e sem nenhum respeito por si próprios a controversa prisão de
um de seus pares, a Câmara quer um novo sistema de proteção. Os nobres
deputados entregaram um boi para salvar a boiada: em vez de anular a prisão do
colega, preso por decisão do STF, rasgaram
a Constituição para comprar, daqui por diante, a proteção e a cumplicidade das
11 supremas togas em relação a delitos que já cometeram ou pretendem cometer.
Se quisessem cumprir
o que está na lei, os deputados teriam de anular a prisão e processar, eles
próprios, o colega troglodita. Caso achassem que ele quebrou o decoro
parlamentar, poderiam perfeitamente suspender ou cassar seu mandato. Quando um
em cada três congressistas está, de um jeito ou de outro, fugindo da polícia, a
tentação de agradar ao STF com a
cabeça de um colega fala mais alto. Suas excelências esperam, agora, que os 11 ministros
olhem para o outro lado, enquanto eles, aproveitando o embalo, trabalham para
reforçar a própria impunidade. E viva o povo brasileiro.