quarta-feira, 21 de abril de 2021

CPI DA PANDEMIA — EM CARTAZ A PARTIR DESTA QUINTA-FEIRA

 

A semana em curso reserva a Bolsonaro uma quinta-feira atribulada. No Senado, dar-se-á a instalação de uma CPI de conteúdo oposicionista (*). No STF, terá prosseguimento o julgamento que, pelo andar da carruagem, avalizará o retorno de Lula à disputa presidencial. Também nesta quinta, o presidente americano Joe Biden abrirá a Cúpula do Clima em que nosso delirante mandatário fará o papel de pária ambiental. Como se não bastasse, vence amanhã o prazo para sua alteza irreal decidir o que irá sancionar ou vetar na proposta de Orçamento da União para 2021. A decisão implica o risco de pisar nos calos de aliados do centrão, do ministro Paulo Guedes, ou mesmo nos próprios — caso opte pelo ciclismo fiscal que derrubou a gerantona de araque em 2016.

(*) A possibilidade de instalar o colegiado já nesta quinta, 22, foi por água abaixo. Não apenas porque os nobres parlamentares trabalham de terça a quinta e, com um feriado na quarta... enfim, ninguém é de ferro. A primeira reunião da CPI foi transferida para o dia 27 porque, segundo o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, é preciso adequar os espaços às condições sanitárias previstas para a segurança dos congressistas, mas os senadores de oposição dizem tratar-se de uma articulação dos governistas para retardar o início dos trabalhos.

O STF mandou desengavetar o pedido de abertura da CPI da Covid que Bolsonaro havia articulado com o presidente do Senado. Na tentativa de ampliar o escopo da investigação incluindo estados e municípios, governadores e prefeitos viraram asteriscos num roteiro de trabalho que prioriza a escassez de vacinas e a abundância de cloroquina. Bolsonaro tentou emplacar um senador domesticado na poltrona de relator da comissão, mas terá de engolir o multi-investigado Renan Calheiros, que é PhD nas mumunhas do Legislativo.

O grupo majoritário da CPI  escalou o ex-delegado civil e senador de primeiro mandato Alessandro Vieira, do Cidadania, para elaborar uma proposta de roteiro para a investigação legislativa. Vieira defende que a apuração seja “técnica” e que investigue fatos — perscrutando-se os fatos, diz ele, chega-se às pessoas.

Observação: Desde a redemocratização desta banânia realizaram-se no Congresso 203 CPIs. A maioria acabou em pizza, mas a atual foca a negligência do Estado na gestão da crise sanitária e a inépcia do governo federal dispensa diligências, já que está diretamente relacionada com o crescimento diuturno do número de vítimas fatais da pandemia. E o próprio Bolsonaro se encarregou de fornecer as pistas que os senadores planejam percorrer para apanhá-lo.

No Supremo, o mesmo plenário que decidiu por 8 votos a 3 e cinco anos de atraso que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência legal para julgar Lula terá de informar para onde serão enviados, afinal, os processos. São quatro, incluindo o do tríplex e o do sítio, cujas sentenças condenatórias foram passadas na borracha. Serão julgados novamente em Brasília ou, mais provavelmente, em São Paulo. Os togados devem discutir também o pedido de suspeição de Sergio Moro no caso do tríplex. Numa decisão vergonhosa, a 2ª Turma classificou o ex-juiz de parcial. Uma reviravolta em plenário, não é impossível, mas está longe de ser provável, até porque o dublê de ex-presidente e ex-presidiário já foi autorizado pela corte a percorrer a conjuntura como candidato em 2022, o que obrigará o capitão-negação a enfrentar não um cardeal meia-boca da seita do inferno, mas o próprio sumo pontífice.

Na carta enviada ao presidente americano, Bolsonaro ressuscitou a velha meta de zerar o desmatamento até 2030 e anotou que conta com “todo apoio possível, tanto da comunidade internacional quanto de governos, do setor privado, da sociedade civil e de todos os que comungam desse nobre objetivo”. No mesmo dia, exonerou o delegado Alexandre Pacheco da superintendência da PF no Amazonas, que pediu ao STF a abertura de inquérito para investigar o ministro Ricardo Salles. Um assessor do governo dos EUA a quem Biden dá mão forte na área ambiental correu ao Twitter para esclarecer que a Casa Branca espera do mandatário tupiniquim algo além de um palavreado que não orna com a prática,

Vão à vitrine todos os calcanhares de vidro de Bolsonaro. A CPI e a Cúpula do Clima sinalizam que lhe é cada vez mais difícil exercitar o hábito de colocar a culpa nos outros. O imbróglio no Orçamento inocula no mercado o vírus da desconfiança, e o medo de que o teto de gastos vá pelos ares leva investidores a esperar pelo surgimento de uma variante de presidente de outra cepa, capaz de encorajar o dinheiro. Nesse ambiente, a ressurreição política de Lula potencializa a polarização num instante em que a pilha de mortos por Covid, a caminho dos 400 mil, requer foco e moderação.

Na visão da maioria dos membros da CPI, Bolsonaro apostou que a imunidade coletiva — ou de rebanho — seria alcançada não pela vacinação, mas pelo contágio em massa. Infectados, os brasileiros adquiririam os anticorpos que permitiriam o retorno à normalidade. Serão requisitados documentos do TCU, que esquadrinhou a gestão do general Eduardo “Pesadelo” Pazuello à frente do ministério da Saúde, além de contratos com fabricantes de vacinas, ofícios que encomendaram ao Exército a fabricação de cloroquina em escala industrial, o papelório da operação de compra do remédio inútil no combate à Covid em laboratório privado, com financiamento camarada do BNDES, e por aí afora. 

Os integrantes da comissão pretendem ouvir pelo menos 15 membros do governo federal, entre eles os ex-ministros da Saúde Mandetta e Teich — que deixaram o cargo por discordar do desprezo do chefe pela ciência —, bem como Pazuello e seu sucessor, Marcelo Queiroga. Favorito para ser o presidente da comissão, o senador Omar Aziz fez críticas à atuação do governo no combate à Covid e afirmou que "não está disposto a fazer 'negociata' para mudar o escopo da investigação".

Pazuello fez o papel de coadjuvante útil no enredo da crise sanitária ao se guiar pelo respeito à hierarquia dos novos tempos, na qual generais se submetem às idiossincrasias de um capitão expurgado do Exército por indisciplina, assumiu o papel de boi de piranha — que é jogado no rio para ser devorado enquanto a manada passa — vai ao banco da comissão não como simples testemunha, mas como investigado, e dificilmente sairá ileso. 

Investigado pelo TCU e pela PF, o vassalo estrelado do suserano indisciplinado desempenhará nas próximas semanas o histórico papel de um general arrastado para um banco de CPI para ser inquirido sobre ações e, sobretudo, omissões no gerenciamento da pandemia. Incomodadas, as fardas do Estado-Maior ensaiam um coro de utilidade duvidosa. Planejam entoar a cantilena de que se trata de problema paisano, pois o fardado cumpria missão civil no Ministério da Saúde.

A desculpa “não cola”. Até porque o general subserviente aceitou a missão voluntariamente e trocou a farda pelo terno e gravata sem pedir sua passagem à reserva militar. Humilhado pelo chefe, teve a oportunidade de pedir o boné, mas, ao contrário de seus antecessores paisanos e médicos, preferiu bater continência para o capitão e promover no Ministério civil da Saúde algo muito parecido com uma intervenção militar, recrutando para postos de comando 25 fardados da reserva e da ativa — coisa que nem a ditadura ousou fazer.

Pazuello não é o único estrelado em apuros. O próprio Exército encostou seu prestígio no negacionismo de Bolsonaro ao aceitar a incumbência de fabricar cloroquina em escala industrial. O também general e ex-ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, que tinha entre suas atribuições a coordenação de um Comitê de Crise instalado para supostamente dar racionalidade à guerra contra o vírus, ora nomeado ministro da Defesa, vê cair sobre sua cabeça relatório técnico do TCU que lhe atribui “graves omissões” na coordenação do comitê antivírus.

Em junho do ano passado, instado pelo tribunal a explicar a compra de insumos para a fabricação da cloroquina com sobrepreço de 167%, o Exército alegou que a compra em ritmo emergencial, sem licitação, tinha por objetivo “salvar vidas na pandemia causada pela Covid-19”. No mesmo documento, reconheceu que, “até a presente data, não há tratamento consagrado pela comunidade científica para a Covid-19”. Ainda assim, agiu “proativamente” para atender às “prementes necessidades de produção” da cloroquina. Fez isso porque fabricar o medicamento “seria o equivalente a produzir esperança a milhões de corações aflitos com o avanço e os impactos da doença no Brasil e no mundo”.

Nenhum outro órgão público havia encontrado uma maneira tão, digamos, poética de admitir que jogou dinheiro público pela janela. Do ponto de vista jurídico, a mistificação do desvio tem efeito semelhante ao proporcionado pelo uso da cloroquina no tratamento da Covid. Quando a posteridade permitir que o vice Hamilton Mourão fale sobre a conjuntura atual sem despertar a suspeita de que é um pretendente ao trono, é possível que ele diga que o governo falhou, errou demais na administração da pandemia.

Os fatos impõem à CPI um roteiro que conduz a Bolsonaro: a defesa de tratamento preventivo não avalizado cientificamente, a crítica ao desenvolvimento e à eficácia das vacinas, a demora em adquirir imunizantes, o desprezo às máscaras, o estímulo à aglomeração, e por aí vai. É Bolsonaro quem torna essa CPI diferente de todas as outras. Antes, opositores precisavam ralar para levantar pistas. Agora, o presidente fornece os insumos para a obtenção do veneno que pode sufocar sua Presidência. Bolsonaro tanto fez que conseguiu transformar o “meu Exército” em matéria-prima para a CPI.

A conta começa a ser apresentada às Forças Armadas, especialmente ao Exército. Os generais logo perceberão que o risco de integrar o governo de um capitão desmiolado é a plateia não conseguir distinguir quem é quem.