sexta-feira, 30 de abril de 2021

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA OU POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA?



Tornou-se comum no Brasil ouvir reclamações sobre a judicialização da política, mas o que se observa no momento é o inverso: a politização da Justiça.

Nas últimas semanas, o STF, que é uma corte constitucional, agiu diversas vezes como instituição política. O ministro Kássio Nunes Marques — que está para o Supremo assim como Pazuello estava para a pasta da Saúde — e seu par Luís Roberto Barroso ciscaram em terreiros alheios.

Nunes Marques usurpou o poder conferido pelo próprio tribunal a governadores e prefeitos ao liberar a realização de cultos religiosos presenciais em meio à pandemia. Barroso se imiscuiu em questões internas do Congresso ao determinar a instalação da CPI da Covid — que, convenhamos, não fosse a interferência do magistrado, seria instalada no dia de São Nunca. Para além disso, o colegiado formou maioria para macular o currículo do ex-juiz da Lava-Jato em Curitiba com a pecha da parcialidade.

O Brasil possui não apenas um judiciário politizado, mas também uma justiça penal politizada em todos os seus níveis. Da primeira instância à suprema corte, os decisores frequentemente se balizam por convicções pessoais político-ideológicas que não raro afrontam os ditames jurídicos que deveriam nortear suas decisões.

Em tese, o argumento esgrimido por Dias Toffoli e Alexandre de Moraes — “se o Congresso Nacional não cumpre o seu papel, cabe ao STF fazê-lo” — não deixa de fazer sentido. Na prática, todavia, a politização da suprema corte abre uma perigosa janela de oportunidade para tiranetes tentarem formar maioria no tribunal e transformá-lo em instância de corroboração de bizarrices do chefe do Executivo. 

Qualquer semelhança com o mandatário de turno não é mera coincidência: a nomeação de Nunes Marques para a vaga aberta com a saída de Celso de Mello e a provável indicação de André Mendonça para a poltrona de Marco Aurélio, agora em julho, deixa clara a transformação do STF em instituição política e a intenção do capitão de impor sua “agenda moral” pela via judicial.

Dias atrás, sob a batuta de Gilmar Mendes, o STF determinou a regulamentação de um benefício de renda básica de autoria do ex-senador petista Eduardo Suplicy, que foi aprovado há 17 anos, mas jamais saiu do papel. 

Marco Aurélio não só determinou à PGR que investigue os cheques que Fabricio Queiroz e senhora depositaram na conta da primeira-dama como ordenou a realização do Censo (faltou dizer de onde virá o dinheiro para bancar mais essa despesa). 

Ricardo Lewandowski, autorizou o governo da Bahia a importar a Sputnik V à revelia da decisão da Anvisa, que reprovou por unanimidade o uso desse imunizante (talvez por questões mais políticas do que técnicas, mas essa é outra conversa).

Face ao exposto, salta aos olhos que a alta cúpula do Judiciário vem interferido com incômoda frequência nos rumos da conjuntura política e no cotidiano do governo federal.

Há dois anos a Lava-Jato avançava a pleno vapor, Bolsonaro posava de paladino da moralidade e Lula gozava de férias compulsórias numa cela VIP na sede da PF em Curitiba. Graças aos eminentes togados, a maior operação anticorrupção da história desta banânia foi ferida de morte e o juiz que condenou o ex-presidente corrupto passou de “mocinho” a “bandido”, a despeito de sua decisão ter sido chancelada por 3 desembargadores do TRF-4 e 5 ministros do STJ.

Resultado. Lula está de volta aos palanques e Bolsonaro deve indicar para a vaga de Marco Aurélio a segunda toga amiga para blindá-lo e blindar seu enrolado clã. Enquanto isso, o número de mortos pela Covid no país alcança a inacreditável marca de 400 mil. Diante desse descalabro, a CPI da Pandemia será na verdade a CPI da Sucessão.

O componente eleitoral seria positivo se os integrantes da comissão compreendessem a dimensão do desafio que têm pela frente. Mas não parece ser o caso. Não com Renan Calheiros na relatoria.

Em seu primeiro discurso como relator, disse o exemplo pronto e acabado de tudo o que não presta na política tupiniquim: Nossa cruzada será contra a agenda da morte”, e que eventuais culpados “devem ser punidos imediatamente e emblematicamente”.

O também senador Flávio “Rachadinha” Bolsonaro — que não faz parte da comissão — classificou o colega de “suspeito” — além de ser pai do governador de Alagoas, que pode vir a ser investigado, Renan é réu no STF e alvo e diversos. Mas e daí? Arthur Lira também é réu, e isso não o impediu de assumir a presidência da Câmara. Aliás, como todos se lembram Bolsonaro foi cabo eleitoral de Lira, que, pressionado para decidir se aceita ou não algum dos 111 pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo, disse candidamente que todos eles são “inúteis”. Queríamos o quê? Colocamos a raposa para tomar conta do galinheiro, e a raposa incumbiu as outras raposas de investigar o sumiço das galinhas.

Num esforço infrutífero para demonstrar despreocupação com a investigação, disse o primogênito do capitão, numa inusitada adesão ao grupo que seu pai chama de “turma do fecha tudo”: “O governo acha importantíssimo passar a limpo tudo o que está acontecendo no Brasil, mas não agora. Por que não esperar todo mundo se vacinar, e fazer com responsabilidade esses trabalhos?” E aproveitou o embalo para criticar Rodrigo Pacheco: Acho que o presidente [do Senado] está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”.

Perguntado por repórteres sobre a fala do filho do pai, Renan Calheiros disparou: “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros.

Durante toda a pandemia, Jair Bolsonaro criticou governadores e prefeitos por decretar medidas restritivas contra a Covid, e depois de fornecer farto o material para a montagem do palco da CPI, piorou o espetáculo ameaçando soltar a PF e o Exército em cima dos governadores e alardeando que o Brasil seria uma outra Venezuela se adotasse uma hipotética “bandeira vermelha”. O capitão prestaria um serviço a si próprio se esquecesse a vizinhança e se concentrasse nos EUA, onde seu idolatrado Donald Trump, cavalgando o mesmo negacionismo assassino, perdeu a Casa Branca para Joe Biden, um rival tão carismático quanto um médico legista.

Bolsonaro converteu-se num estorvo nacional e tornou inevitável a investigação sobre a forma como seu governo se comportou diante da Covid. A CPI seria desnecessária se o procurador-geral tivesse vocação para procurar, o que infelizmente (também) não é o caso. 

Diante da inevitabilidade da investigação legislativa, seria melhor que a CPI servisse não para tumultuar a disputa presidencial de 2022, mas para passar água e sabão no processo eleitoral, desinfetando a conjuntura tóxica onde se misturam três tipos de atores — os que querem investigar para documentar o negacionismo do capitão; os que desejam investigar para ocupar o trono de Bolsonaro; os que tramam investigar para abocanhar generosos nacos do Orçamento da União.

Há na comissão representantes da polarização e até da terceira via. Renan Calheiros (olha ele aqui outra vez) gostaria de reeditar a aliança do seu MDB com Lula; Ciro Nogueira, herói da resistência de Bolsonaro na CPI, sonha com uma aliança na qual o seu PP indique o candidato a vice na chapa encabeçada pelo capitão; Tasso Jereissati, outro membro da CPI, é tido e havido por uma ala do tucanato como alternativa presidencial de centro (o emedebista é cotado para disputar a vaga de presidenciável do seu partido com os governadores João Doria, de São Paulo, e Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul).

Houve um tempo em que o sistema governamental brasileiro se dividia em três poderes: Exército, Marinha e Aeronáutica. Numa fase mais moderna, a democracia passou a ser constituída por quatro poderes: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o dinheiro, poder que pairava sobre todos os outros. Agora, restabelecida a imoralidade pré-mensalão e instituída a ineficiência negacionista da pandemia, o Brasil tornou-se uma espécie de monarquia sem monarca, onde quem reina a esculhambação.

Com Leonardo Avritzer e Josias de Souza