O ministro Marcelo
Queiroga ainda estava sendo inquirido às 17h de ontem, quando eu concluí
este texto. E se via em palpos de aranha diante da
insistência dos senadores em suscitar questões envolvendo tratamento precoce,
kit-covid e fármacos como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina
e congêneres. Suas respostas evasivas desagradaram não só o presidente da
Comissão, Omar Aziz, e o relator, Renan Calheiros, mas diversos parlamentares
de oposição e “independentes”, que o pressionaram a emitir julgamentos
de valor sobre as ações e omissões de seu antecessor e do presidente da República.
Observação: Na quarta-feira, ao discursar em um evento, Bolsonaro disse que “ninguém sabe” a origem do vírus da Covid, mencionou o termo “guerra química” e indagou: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês”. Na avaliação de Omar Aziz (e de quem quer que tenha dois neurônios funcionais), a declaração de Bolsonaro vai piorar a obtenção, pelo Brasil, de insumos contra a doença. "Nós estamos nas mãos do chineses para trazer o IFA. Nós não temos produção de IFA aqui. E nem vamos ter tão cedo. A gente depende da Índia para alguns insumos. Depende da China para outros insumos. Não é momento de a gente cutucar ninguém”, disse o senador. Em nota, o presidente da Frente Parlamentar Brasil-China, deputado Fausto Pinato , afirmou que Bolsonaro é uma pessoa “irresponsável, desequilibrada e sem noção de mundo”, capaz de “confundir realidade com ficção”.
“Ministro, o senhor está aqui como testemunha. Essa é
a instância. Não tem esse negócio de dizer e jogar para terceiros… O senador
Renan fez perguntas simples: faltou o que? Não faltou o dinheiro. Faltou
lockdown, faltou o que? Você está aqui como testemunha, estou aqui pra lhe
preservar. Não é achismo. É sim ou não”, declarou o presidente da CPI
depois de Queiroga não responder claramente se compartilhava ou não da
posição de Bolsonaro de receitar cloroquina como tratamento precoce para
a Covid. Na sequência, em outra pergunta sobre uma ordem do presidente
para diminuir entrevistas à imprensa, senadores alinhados com o Palácio do Planalto
reclamaram que Renan estaria direcionando as respostas do entrevistado. Os
questionamentos do relator continuaram depois que o bate-boca cessou, mas o
desconforto tanto do ministro quanto de Renan seguiu sobre um não querer
responder perguntar que julga ser “juízo de valor” e o outro
dizendo que suas questões não estavam sendo respondidas.
Em propagandas oficiais e em falas públicas, Queiroga
tem divulgado o número de 560 milhões de doses de vacinas já contratadas. Ao
ser questionado pelo relator sobre qual é o número que de fato já foram
compradas, o ministro se contradisse. Primeiro, insistiu que o número de doses
contratadas era de 560 milhões. Depois de receber informações do secretário
executivo do ministério, Rodrigo Otávio da Cruz, admitiu que o número
era menor e citou a quantidade de 430 milhões de doses.
Vale lembrar que, na condição de testemunha, tanto Queiroga
quanto seus predecessores (que depuseram nos dias anteriores) são passíveis de
prisão caso fique comprovado que mentiram para a Comissão. Em seu depoimento, o
ministro de turno afirmou que a
pasta errou na resposta oficial ao deputado Gustavo Fruet, que haverá
uma apuração interna no ministério para determinar o que ocorreu e que a
resposta ao deputado será “retificada” (em documento oficial dirigido à Câmara,
as áreas técnicas informaram que apenas metade dos 560 milhões de doses está
contratada, o que é insuficiente para vacinar todos os brasileiros até o fim de
2021). .
Em nota à reportagem do Estadão, a Fiocruz
informou que o acordo com a AstraZeneca possui duas partes: a produção
de vacinas com base no Ingrediente
Farmacêutico Ativo, importado, e a transferência tecnológica para a
produção do IFA no Brasil. A parte relativa à importação do ingrediente
já foi assinada em setembro de 2020 e as vacinas estão sendo fabricadas com os
insumos produzidos no exterior. No entanto, o contrato para a produção local
ainda não foi assinado — e corresponde a 110 milhões de doses.
****
Há muito que o avanço da Covid e o aumento exponencial de vítimas fatais deveriam despachado Jair Bolsonaro numa viagem só de ida para um manicômio qualquer, de preferência a milhares de quilômetros do Palácio do Planalto.
Logo no início da pandemia, de passagem pelos EUA, o
presidente disse que a pandemia era uma “pequena
crise, e não isso tudo que mídia propaga”. De volta ao Brasil, quando
já se sabia que onze membros da sua comitiva haviam testado positivo para o
vírus, desceu a rampa do Palácio para juntar-se a um grupo de apoiadores cujas
mãos apertou e com que tirou selfies, feliz como um pinto no lixo — o que levou
um grupo de advogados de Brasília a encaminhar uma representação ao MPF
pedindo que ele fosse submetido a avaliação psiquiátrica, já que seu
comportamento configurava “considerável
grau de desorientação e confusão psíquica”. Mas já dizia Fernando
Pessoa: “sem a loucura, o que é o homem senão uma besta sadia, um
cadáver adiado que procria?”
A postura beligerante, o negacionismo desbragado e a
incompetência chapada levaram o capitão a cometer toda sorte de atrocidades — entre
as quais o estúpido boicote à compra de vacinas e o irracional desestímulo à
observância de protocolos como o distanciamento social, o uso de máscara e a
própria imunização. Talvez por despreparo, o mandatário compreendeu mal o que
seria a imunização
de rebanho, defendida pelo médico e ex-ministro da Cidadania Osmar
Terra.
Segundo o esculápio gaúcho, a
epidemia só terminará depois que 70% da população estiver contaminada.
A julgar pela maneira como vem procedendo, Bolsonaro deve ter entendido
que o país só se livrará da Covid depois que o vírus maldito matar 70% da
população. E da feita que os institutos de pesquisa atestam que um terço do
eleitorado o apoia, sua reeleição está garantida.
Por essas e outras, a
pandemia matou mais de 400 mil brasileiros em14 meses. Os últimos 100
mil óbitos foram registrados em apenas 36 dias; até os primeiros 100 mil, foram
149 (esses números poderiam ser de três a quatro vezes menores se o país fosse
governado por alguém menos a anormal e mais qualificado para o cargo).
Não estivesse a pasta da Saúde sob intervenção, transformada
em cabide de fardas pelo vassalo subserviente (é
simples assim: um manda e o outro obedece) do suserano lunático, os
brasileiros teriam começado a ser imunizados no final do ano passado, à razão
de 2 milhões de doses aplicadas por dia. Mas para Bolsonaro não basta
não jogar no time, é preciso torcer contra. Dirigindo-se à récua de
descerebrados que bate ponto defronte ao Alvorada, o “mito” avisou que
quem tomasse a vacina não poderia
reclamar se virasse jacaré.
De lá para cá, as estultices presidenciais foram ficando
ainda piores, mas passaram a surpreender cada vez menos — o extraordinário, de
tanto se repetir, acaba virando paisagem. Nos últimos dias, porém, causou
espécie um fenômeno inusitado envolvendo o comportamento de auxiliares próximos
ao presidente, assinala Taís Oyama em sua coluna no UOL.
No domingo retrasado, o ex-ministro-interventor da Saúde, alvo
número um da recém-instalada CPI que vai investigar as ações e omissões
do governo federal no enfrentamento da pandemia, foi flagrado passeando
sem máscara num shopping center em Manaus. Cobrado, o general perguntou
ironicamente “onde se comprava uma”.
Dias depois, o também general Luiz Eduardo Ramos deixou
escapar que se vacinou escondido (para não irritar o presidente). “Como
qualquer ser humano, eu quero viver, pô. Se a ciência e a medicina tá (sic)
dizendo que é a vacina, né, Guedes, quem sou eu para me contrapor?” Logo
após ter dito que tomou vacina escondido, o fardado postou mensagem negando ter
dito que tomou vacina escondido.
Na mesma noite, o ministro Paulo Guedes acusou nosso
maior parceiro comercial e fornecedor do IFA utilizado pelo Butantan
e pela Fiocruz na produção da Coronavac e da vacina de Oxford/AstraZeneca,
respectivamente — de ter
“inventado” o coronavírus. Em sua fala (sem saber que estava sendo
gravado), o Posto Ipiranga do presidente asseverou ainda que a
vacina fabricada pela China não é lá essas coisas, e que a Saúde está
quebrada inclusive porque tem
gente que quer viver “100, 120, 130 anos”.
A Constituição não estabelece prazo para o presidente da Câmara
deliberar sobre pedidos de impeachment do chefe do Executivo, como observou em
seu despacho o ministro Kassio Nunes Marques — ex-desembargador piauiense nomeado por
indicação de Bolsonaro para a vaga aberta no STF com a aposentadoria do ex-decano Celso de Mello, no final do
ano passado.
O deputado-réu Arthur Lira, que foi guindado à presidência da Câmara tendo o chefe do Executivo
como principal cabo eleitoral, certamente tinha ciência desse entendimento,
visto que só abriu a gaveta onde dormitam 116 pedidos de abertura de processo
de impeachment contra Bolsonaro três meses depois de assumir o cargo. Pior
foi seu antecessor, Rodrigo Maia, nem ter se dado a esse trabalho. Quando
deixou o cargo — que assumiu interinamente com a cassação de Eduardo Cunha e ao qual foi reconduzido em 2017 e 2019 com o aval do STF — o deputado deixou de herança mais de 60 pedidos de impeachment
protocolados na secretaria da Casa desde a posse do capitão.
Na semana passada, Lira surpreendeu ao se tornar recordista em velocidade de análise de pedidos
de impeachment, levando apenas 24
horas para analisar mais de uma
centena deles. Na segunda-feira (26) anunciou: “90%, 95% dos que eu já vi não têm absolutamente
nenhuma razão para apresentação, a não ser um fato político que queira se gerar.” Na terça (27) completou o anúncio da
decisão em sessão plenária: “Os
pedidos de impeachment, em 100% e não 95%, em 100% dos que já analisei, são
inúteis para o que entraram e para o que solicitaram.”
A cerimônia do adeus
de Lira ao impeachment de Bolsonaro aconteceu 72 horas depois que o Diário Oficial estampou a sanção
presidencial ao Orçamento para 2021. O governo, magnânimo mesmo na ruína
fiscal, reservou R$ 34 bi para pagar pequenas obras espalhadas por
5.570 municípios, todas elas a talante dos parlamentares. O montante é
equivalente ao gasto federal com assistência a mais de 30 milhões de pessoas
inscritas no programa Bolsa Família.
As inaugurações
estão previstas para a pré-temporada eleitoral, e algumas devem contar com a
presença do presidente-candidato à reeleição. Nem mesmo a Velhinha
de Taubaté acreditaria que a
publicação da sanção presidencial ao orçamento recheado de valiosas emendas
parlamentares e o adeus de Lira aos pedidos de impeachment de Bolsonaro não passaram de mera coincidência.
Diante do exposto,
restam-nos duas tristes conclusões: 1) os parâmetros de sanidade
reinantes no Palácio do Planalto emanam do chefe; 2) antes de quebrar o Brasil,
Bolsonaro transformará o governo num grande manicômio.