Todos os fatos, falas e atos ora em exame na CPI do Genocídio são de responsabilidade do presidente da República. A ele, por dever constitucional (artigo 84), cabe “a direção superior” da administração federal.
O chefe da nação é ao mesmo tempo autor intelectual, mandante, executor das decisões que traçam linhas de atuação, logo responde também por inações e procrastinações. Além disso, seu poder de influência monumental pauta comportamentos, pensamentos e crenças.
Notadamente num país com presidencialismo de contornos imperiais, onde vigora a ideia de que cabe mais ao Estado e menos à sociedade a movimentação das engrenagens nacionais, o ocupante da Presidência é figura central. Isso rende bônus, mas implica ônus, ambos convergentes para o mesmo endereço: o Palácio do Planalto.
Tomando emprestada do universo jurídico criminal a teoria do
domínio do fato — que permite a imputação de culpa ao detentor do controle dos
fatores que levam a condutas incriminadoras e foi usada pelo Supremo
Tribunal Federal para condenar José Dirceu por corrupção ativa no
processo do mensalão —, Jair Bolsonaro senta praça no topo dos
acontecimentos em exame na CPI.
Prestes a completar um mês em 3 de junho e com mais sessenta
dias pela frente, com a possibilidade de prorrogação por mais noventa, a Comissão
anima as torcidas políticas. Os entusiastas da investigação esperam que dali
saia a bala de prata capaz de afastar o presidente do cargo antes do prazo
regulamentar. Os seguidores de Bolsonaro torcem para que os trabalhos
degenerem, tomem o rumo do teatro meramente político/eleitoral e caiam no
descrédito.
A julgar pelos depoimentos realizados até agora não dá para
saber o que vai prevalecer. Independentemente desse resultado, as evidências já
indicam a ocorrência de ilícitos e negligências a partir dos quais fica patente
o papel de Jair Bolsonaro como agente indutor do agravamento da crise
sanitária no país.
A começar pela recusa de promover uma coordenação nacional
de ações e de estimular na população comportamentos de proteção individual e
coletiva. Foi do presidente a decisão de aproveitar a mera afirmação do STF
sobre a autonomia de estados e municípios — condição inerente ao sistema
federativo — para transferir responsabilidades, assim como foi dele a opção de
encorajar as pessoas a não se precaver contra o vírus.
São fatos sobre os quais Jair Bolsonaro teve domínio inequívoco. Poderia ter agido de maneira diferente, mas entre dois caminhos, pensar em si ou no bem-estar comum, escolheu o pior, acreditando ser o melhor para seus intentos eleitorais. E fez o mesmo quando inviabilizou a permanência de dois médicos à frente do Ministério da Saúde, entregando a pasta a um general obediente tão inabilitado para o cargo que confessou desconhecer por completo o Sistema Único de Saúde, que existe no Brasil há mais de trinta anos. Tal escolha evidencia o domínio do fato e de outros decorrentes, como a inépcia diante da falta de oxigênio no Amazonas, onde pessoas internadas poderiam até ter escapado da doença, mas morreram sufocadas.
A quem mais a não ser ao presidente se pode atribuir em
última instância os atritos que envolveram a aquisição de vacinas e resultaram
no atraso da imunização? Partiu do mandatário a iniciativa de promover o uso da
cloroquina no “tratamento precoce” e de carrear recursos para a produção
desmedida do medicamento desde julho de 2020 rejeitado pela Organização
Mundial da Saúde no trato da Covid. Mais um fato por ele dominado.
A atuação de conselheiros estranhos à administração pública,
na formação do que se denomina “gabinete paralelo”, aos quais o presidente
preferia ouvir a seguir orientação de especialistas qualificados para tal, se
deu por autorização dele. Nisso, de novo, Jair Bolsonaro esteve no domínio dos
consequentes fatos nefastos que impediram o Brasil de usar com plenitude a
expertise acumulada por anos na vacinação em massa.
Nada disso depende de os depoentes apontarem culpa ou
buscarem inocentar o presidente da República na CPI. Nesse aspecto a prova
testemunhal chega a ser irrelevante, porque não são as versões, mas o registro
dos atos demonstra quem detém o domínio dos fatos.
Com Dora Kramer