sábado, 29 de maio de 2021

UM PESADELO CHAMADO PAZUELLO

 

As pessoas são como são, mas isso não significa que as vejamos como elas realmente são. 

As imagens que fazemos uns dos outros são ilusões que se desfazem com o passar do tempo. Ninguém muda por nossa causa ou porque queremos que mude. 

Mudamos porque somos adaptativos e precisamos conviver com as mais variadas situações. Mas há pessoas incapazes de agir contra sua própria natureza, como ilustra a fábula O Escorpião e o Sapo.

Jair Bolsonaro, mais que um exemplo pronto e acabado do escorpião dessa fábula, é um caso à parte, um ponto fora da curva, um homem anormal e um “mau militar” (como o definiu o general-ditador Ernesto Geisel em entrevista à Fundação Getúlio Vargas).

É impossível não associarmos o candidato Bolsonaro ao Dr. Jekyll e o presidente Bolsonaro a Mr. Hyde (do livro The strange case of dr. Jekyll and mr. Hyde, do escritor escocês Robert Louis Stevenson). 

O G1 fez um levantamento de suas promessas de campanha semanas antes do segundo turno do pleito de 2018. Entre as mais emblemáticas destacam-se:

— O apoio incondicional à Lava-Jato e o resgate das dez medidas de combate à corrupção;

— O fim da reeleição para Presidente e a redução do número de parlamentares;

— O enxugamento da máquina pública;

— A privatização de estatais;

— A redução da carga tributária;

— O fim da progressão de pena e saída temporária dos presos;

— O fim das audiências de custódia;

— O fim das indicações políticas em geral — e ao Ministério da Saúde em particular;

— O fim da troca de cargos por apoio parlamentar;

— A redução da maioridade penal e do número de servidores comissionados;

— A nomeação de ministros com base em critérios técnicos;

— A defesa da liberdade de imprensa.

Em meio à pior pandemia sanitária dos últimos séculos, Bolsonaro demitiu o ortopedista Luiz Henrique Mandetta do ministério da Saúde — porque ele “estava se achando estrela” — e nomeou para o cargo o oncologista Nelson Teich — que se demitiu 28 dias depois, por divergir do presidente sobre o isolamento social e o uso da cloroquina no tratamento da Covid.

Com o desembarque de Teich, assumiu o comando da pasta um general da ativa, que não só a transformou em cabide de farda para “os amigos do capitão”, mas também se notabilizou como o pior ministro da Saúde da história deste país. 

Mesmo atuando com a competência de um hipopótamo numa loja de cristais, essa tragédia em formato de gente comandou um espetáculo macabro por 10 meses, a longo dos quais o número de mortos por Covid aumentou de 15 mil para quase 300 mil (relembre nesta postagem alguns momentos em que o ministro de fancaria exibiu sua brilhante incompetência).

No dia 23 de março, o Centrão cobrou do capitão-suserano a troca da inépcia marcial do general-vassalo por uma marcha científica na Saúde. Mas o presidente optou pela “continuidade” do cardiologista Marcelo Queiroga — que se tornou o quarto ministro da Saúde desde o início da pandemia — em detrimento da guinada sugerida pela também cardiologista Ludhmila Hajjar.

Ao deixar o cargo, o general-interventor confidenciou a interlocutores que sofreu pressões de políticos interessados num “pixulé”. Como todo incompetente que se preza, atribuiu suas mazelas a terceiros. Disse ter caído por causa de sabotagem interna e que houve distribuição de recursos da Saúde com finalidade política.

Convocado pela CPI do Genocídio, o general afirmou ter estado em contato com pessoas infectadas pelo vírus assassino, de modo a ganhar tempo para ser submetido a um media training. Como seguro morreu de velho, pleiteou (e conseguiu) o direito de permanecer calado para não se auto incriminar. Visando constranger os parlamentares, decidiu ir fardado à audiência no Senado, mas foi dissuadido da ideia pelo comandante do Exército, segundo o qual isso seria uma “exposição desnecessária” dos militares

Sem a blindagem da farda, mas com o salvo-conduto supremo, o ex-pajé de araque mentiu descaradamente em pelo menos 15 oportunidades para blindar o cacique, que acontece de ser o maior responsável pela morte de quase meio milhão de brasileiros. E como que para piorar o que já não estava bom, colocou o Planalto e o Exército à beira de (mais) uma crise institucional com sua festiva participação na manifestação do domingo 23.

Pazuello foi ao ato com a chancela de Bolsonaro, que, na qualidade de presidente da República, é o comandante em chefe das Forças Armadas. O episódio ampliou o constrangimento nos meios militares, afrontou os integrantes do grupo majoritário da CPI e levou o Exército a abrir um procedimento disciplinar. Mas o presidente deixou claro que não admite qualquer punição a seu protegido.

Em sua defesa, o general insurreto argumentou que não infringiu nenhuma norma do Regulamento Disciplinar do Exército. Segundo ele, o encontro público onde falou para apoiadores do presidente e que contou com um passeio de moto pelas ruas do Rio de Janeiro não era um evento político-partidário, já que o Brasil não está em período eleitoral e que Bolsonaro não é filiado a nenhum partido

Militares da ativa receiam que, se Pazuello sair incólume, será passada à tropa a mensagem de que o RDE não precisa ser respeitado, propiciando um clima de anarquia nos quartéis. 

Difícil prever o resultado desse angu de caroço. Se o vassalo do capitão não for punido (a “pena” vai de simples advertência a 30 dias de prisão), o comandante geral do Exercito sairá desmoralizado; se for, o suserano do vassalo, dono de uma lógica que desafia os melhores raciocínio, certamente achará que foi “desautorizado”. Criou-se assim um impasse em que o ex-ministro é o de menos: o que está em xeque no momento é a autoridade do comandante do Exército — que, se esvaziada pelo capitão, pode produzir consequências desastrosas.

O Planalto pensa ter uma solução jurídica para o caso. Pela proposta que está na mesa, o artigo 57 do Regulamento Disciplinar do Exército (o mesmo  que incrimina o general) pode ser usado para resolver a confusão. Segundo o disposto pela norma, é vedado ao militar da ativa “manifestar-se, publicamente, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária

Pazuello não foi autorizado pelo comando do Exército a subir no carro de som para cumprimentar apoiadores do presidente (“Fala, galera! 'Tamo junto', hein? O presidente é gente de bem!”), mas estaria autorizado por Bolsonaro. E, de novo, se o Comandante do Exército pode autorizar, o Presidente da República, que é o Comandante Supremo das Forças Armadas, também pode. 

Estrategistas do Planalto consideram que essa interpretação evitaria um impasse semelhante ao que, em março passado, culminou na demissão sumária do ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e na saída dos comandantes das três Forças de uma vez. E salvaria, ao mesmo tempo, a pele de Pazuello e a autoridade do general Paulo Sérgio — se o chefe dele autorizou alguma coisa, autorizada ela estaria. Resta saber se o comandante do Exército está disposto a comprar essa história.