As pessoas são como são, mas isso não significa que as vejamos como elas realmente são.
As imagens que fazemos uns dos outros são ilusões que se desfazem com o passar do tempo. Ninguém muda por nossa causa ou porque queremos que mude.
Mudamos porque somos adaptativos e precisamos conviver
com as mais variadas situações. Mas há pessoas incapazes de agir contra sua própria
natureza, como ilustra a fábula O
Escorpião e o Sapo.
Jair Bolsonaro, mais que um exemplo pronto e acabado
do escorpião dessa fábula, é um caso à parte, um ponto fora da curva, um
homem anormal e um “mau militar” (como o definiu o general-ditador Ernesto
Geisel em entrevista à Fundação Getúlio Vargas).
É impossível não associarmos o candidato Bolsonaro ao Dr. Jekyll e o presidente Bolsonaro a Mr. Hyde (do livro The strange case of dr. Jekyll and mr. Hyde, do escritor escocês Robert Louis Stevenson).
O G1 fez um levantamento de suas promessas
de campanha semanas antes do segundo turno do pleito de 2018. Entre as
mais emblemáticas destacam-se:
— O apoio
incondicional à Lava-Jato e o resgate das dez
medidas de combate à corrupção;
— O fim da reeleição
para Presidente e a redução do número de parlamentares;
— O enxugamento
da máquina pública;
— A redução
da carga tributária;
— O fim da progressão
de pena e saída temporária dos presos;
— O fim das audiências
de custódia;
— O fim das indicações políticas em geral — e ao Ministério
da Saúde em particular;
— O fim da troca
de cargos por apoio parlamentar;
— A redução da maioridade
penal e do número de servidores
comissionados;
— A nomeação de ministros com
base em critérios técnicos;
— A defesa da liberdade
de imprensa.
Em meio à pior pandemia sanitária dos
últimos séculos, Bolsonaro demitiu o ortopedista Luiz Henrique
Mandetta do ministério da Saúde — porque ele “estava se achando estrela”
— e nomeou para o cargo o oncologista Nelson Teich — que se demitiu 28
dias depois, por
divergir do presidente sobre o isolamento social e o uso da cloroquina no
tratamento da Covid.
Com o desembarque de Teich, assumiu o comando da pasta um general da ativa, que não só a transformou em cabide de farda para “os amigos do capitão”, mas também se notabilizou como o pior ministro da Saúde da história deste país.
Mesmo atuando com a competência de um hipopótamo numa loja de cristais, essa tragédia em formato de gente comandou um espetáculo macabro por 10 meses, a longo dos quais o número de mortos por Covid aumentou de 15 mil para quase 300 mil (relembre nesta postagem alguns momentos em que o ministro de fancaria exibiu sua brilhante incompetência).
No dia 23 de março, o Centrão cobrou do capitão-suserano a
troca da inépcia marcial do general-vassalo por uma marcha científica na Saúde.
Mas o presidente optou pela “continuidade” do cardiologista Marcelo Queiroga
— que se tornou o quarto
ministro da Saúde desde o início da pandemia — em detrimento da
guinada sugerida pela também cardiologista Ludhmila Hajjar.
Ao deixar o cargo, o general-interventor confidenciou a
interlocutores que sofreu
pressões de políticos interessados num “pixulé”. Como todo incompetente
que se preza, atribuiu suas mazelas a terceiros. Disse ter caído
por causa de sabotagem
interna e que houve
distribuição de recursos da Saúde com finalidade política.
Convocado pela CPI do Genocídio, o general afirmou ter estado em contato com pessoas infectadas pelo vírus assassino, de modo a ganhar tempo para ser submetido a um media training. Como seguro morreu de velho, pleiteou (e conseguiu) o direito de permanecer calado para não se auto incriminar. Visando constranger os parlamentares, decidiu ir fardado à audiência no Senado, mas foi dissuadido da ideia pelo comandante do Exército, segundo o qual isso seria uma “exposição desnecessária” dos militares.
Sem a blindagem da farda, mas com o salvo-conduto supremo, o ex-pajé de araque mentiu descaradamente em pelo menos 15 oportunidades para blindar o cacique, que acontece de ser o maior responsável pela morte de quase meio milhão de brasileiros. E como que para piorar o que já não estava bom, colocou o Planalto e o Exército à beira de (mais) uma crise institucional com sua festiva participação na manifestação do domingo 23.
Pazuello foi ao ato com a chancela de Bolsonaro, que, na qualidade de presidente da República, é o comandante em chefe das Forças Armadas. O episódio ampliou o constrangimento nos meios militares, afrontou os integrantes do grupo majoritário da CPI e levou o Exército a abrir um procedimento disciplinar. Mas o presidente deixou claro que não admite qualquer punição a seu protegido.
Em sua defesa, o general insurreto argumentou que não infringiu nenhuma norma do Regulamento Disciplinar do Exército. Segundo ele, o encontro público onde falou para apoiadores do presidente e que contou com um passeio de moto pelas ruas do Rio de Janeiro não era um evento político-partidário, já que o Brasil não está em período eleitoral e que Bolsonaro não é filiado a nenhum partido.
Militares da ativa receiam que, se Pazuello sair incólume, será passada à tropa a mensagem de que o RDE não precisa ser respeitado, propiciando um clima de anarquia nos quartéis.
Difícil prever o resultado desse angu de caroço. Se o vassalo do capitão não for punido (a “pena” vai de simples advertência a 30 dias de prisão), o comandante geral do Exercito sairá desmoralizado; se for, o suserano do vassalo, dono de uma lógica que desafia os melhores raciocínio, certamente
O Planalto pensa ter uma solução jurídica para o caso. Pela
proposta que está na mesa, o artigo 57 do Regulamento Disciplinar do Exército (o mesmo que incrimina o general) pode ser
usado para resolver a confusão. Segundo o disposto pela norma, é vedado ao militar da ativa “manifestar-se,
Pazuello não foi autorizado pelo comando do Exército a subir no carro de som para cumprimentar apoiadores do presidente (“Fala, galera! 'Tamo junto', hein? O presidente é gente de bem!”), mas estaria autorizado por Bolsonaro. E, de novo, se o Comandante do Exército pode autorizar, o Presidente da República, que é o Comandante Supremo das Forças Armadas, também pode.
Estrategistas do Planalto consideram que essa interpretação evitaria um impasse semelhante ao que, em março passado, culminou na demissão sumária do ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e na saída dos comandantes das três Forças de uma vez. E salvaria, ao mesmo tempo, a pele de Pazuello e a autoridade do general Paulo Sérgio — se o chefe dele autorizou alguma coisa, autorizada ela estaria. Resta saber se o comandante do Exército está disposto a comprar essa história.