Horas antes de o Brasil cravar a marca macabra de 450 mil mortos
pela Covid, a entidade surreal que afirma ser “imorrível,
imbrochável e incomível” e que só
Deus tira da cadeira de presidente promoveu uma “motociata”
pela cidade do Rio de Janeiro. Ao final do passeio, do alto de um carro de som,
levou
ao delírio sua récua de apoiadores com um discurso em que disse: “Temos
que agradecer à nossa direita, àqueles que defendem a família, a Pátria e que
têm Deus no coração. Podem ter certeza, nós vamos sim cada vez mais fazendo com
que as pessoas eleitas por vocês façam melhor. Sei da enorme responsabilidade
que eu tenho, mas sei do povo maravilhoso que me apoia”.
Ao lado do suserano, o fiel vassalo Eduardo Pazuello,
também
sem a máscara facial (cujo uso ele
disse defender em depoimento à CPI do Genocídio) foi aclamado
pelos sectários por ter mentido pelo menos 14 vezes aos senadores — valendo-se
do habeas
corpus concedido pelo STF para
evitar que ele produzisse provas contra si mesmo. Vale lembrar que o dito-cujo
é general da ativa, e que a
participação de militares da ativa em atos político-partidárias é vedada pelo Estatuto
dos Militares e pelo Regulamento Disciplinar do Exército. Em nota
publicada no Twitter, o PSDB criticou
a conduta do fardado: “Um General de Divisão do Exército
Brasileiro participando de um evento de natureza política não condiz e não
respeita a instituição da qual faz parte”.
Acossado por denúncias de corrupção contra seu governo e despencando
nas pesquisas de intenções de voto enquanto seu arquirrival cresce
(infelizmente) na preferência do eleitorado, nosso indômito capitão mergulhou
de cabeça na campanha pela reeleição. A manifestação do último domingo foi
apenas mais uma manobra para mobilizar seus apoiadores de raiz, mas envolveu
um efetivo equivalente ao de um batalhão de PM de grande porte no Estado
— somente em salário dos agentes, considerando apenas as 6 horas usadas, a
estimativa é de R$ 485 mil.
A oposição chamou o movimento de apoio ao presidente de debochado, perverso, cruel e deprimente, mas e daí? O grande líder dá de ombros para o que falam dele e uma banana para os 75% de brasileiros que não apoiam um governo voltado apenas para os baba-ovos do governante — e que logo cedo entupiam as redes sociais com frases de efeito como “o Brasil é seu, presidente! Pegue o que quiser KKKKK”. Ninguém segura o capitão e sua tropa de aloprados, que vivem numa realidade paralela, onde uns mandam e outros obedecem (para não perder a boquinha).
Tamanho negacionismo originou uma crise no Gabinete de Segurança
Institucional. Agentes já não escondem sua preocupação com o risco de fazer
a segurança do presidente em meio a manifestações onde ninguém usa máscara. A
gota d’água se deu no último dia 13, quando o
general Carlos Roberto Peixoto morreu de Covid — mesmo dia em que Bolsonaro
se aglomerava sem máscara em Alagoas. E o general Augusto Heleno
nada faz para evitar a exposição de seus seguranças.
Segundo o Datafolha, a maioria dos brasileiros (54%) rejeita a nomeação de militares para cargos civis no governo federal. Mas, de novo: E daí? Os bolsonaristas não ligam para pesquisas, nem de opinião nem científicas. Qual é o problema de promover aglomerações? Todo mundo vai morrer um dia, diz o chefe. O importante é aproveitar as mordomias enquanto estão vivos — tais como churrascos com picanha a R$ 1.799,99 o quilo e toneladas de cerveja e leite condensado na despensa dos quartéis.
Pazuello precisa ser punido para que a política não invada de vez os quarteis. Mas já se falou em transferi-lo para a reserva com data retroativa a sexta-feira, o que seria uma farsa. Sua reforma é defendida desde maio do ano passado, quando ele assumiu o Ministério da Saúde, e a pressão aumentou com o episódio deste final de semana. O Exército vai abrir apuração preliminar para investigar se houve violação do Estatuto Militar e do Código de Disciplina do Exército (como se isso não estivesse suficientemente claro, visto que todas as emissoras de TV exibiram o investigado-to-be tomando parte da manifestação do último domingo, subindo em um carro de som e discursando para a multidão).
Bolsonaro telefonou do Equador para proibir qualquer manifestação do Exército ou do Ministério da Defesa. O comunicado que seria feito aos jornalistas foi suspenso, mas fontes ligadas ao governo afirmam que o presidente não quer que o Pazuello receba qualquer punição. Esse imbróglio cria mais uma crise entre o governo federal e as Forças Armadas; a segunda somente neste ano (a primeira decorreru da demissão do ministro da Defesa e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, um ato sem precedentes na “nova república”)
Desde a chegada da Covid ao Brasil que uma caterva de
aloprados nega a doença ou relativiza sua gravidade, tripudia do isolamento e
do uso de máscaras, desdenha das vacinas e por aí vai. O sumo pontífice dessa
seleta confraria defenestrou dois médicos do comando da Saúde (em menos de um
mês) para emplacar um militar subserviente e fiel seguidor do “um
manda e o outro obedece”.
Observação: A frase em questão foi dita por Pazuello
depois que Bolsonaro determinou
o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da “vachina do Doria”. Questionado
sobre ela na CPI, o general disse que que foi “coisa
de Internet” e negou taxativamente que o presidente lhe ordenou
desfazer qualquer contrato.
As consequências dessa deplorável subserviência não se
fizeram por esperar. Em cerca de 10 meses de gestão, Pazuello
militarizou a Saúde com quadros sem experiência em áreas estratégicas, tomou
decisões importantes sem ouvir especialistas, maquiou os números da pandemia, não
fez campanhas de conscientização nem controlou as fronteiras, tardou
a comprar agulhas e seringas — mas produziu e comprou cloroquina suficiente
para os próximos milênios — e percorreu o país com seu séquito de lunáticos para
receitar tratamento fictício enquanto milhões
de testes rápidos perdiam a validade, esquecidos que foram num depósito
federal em Guarulhos.
Sob a gestão de Pazuello, o número de mortos por Covid no país passou de cerca de 15 mil para quase 300 mil. O general só apresentou o Plano Nacional de Vacinação após determinação expressa do STF. Pressionado, ele chegou a dizer que disse que a população começaria a ser imunizada no dia D e na hora H. E ainda questionou, irritado, o porquê de “tanta ansiedade, tanta angústia” — como se a morte de mais de 1.000 brasileiros todos os dias fosse a coisa mais natural deste mundo.
A despeito
disso tudo e mais um pouco, Bolsonaro
não só defende o auxiliar como elegia seu trabalho à frente da Saúde. Como
se vê, tem louco para tudo.
Se a parceria com a AstraZeneca/Oxford foi iniciada ainda na gestão de Nelson Teich, cabia a Pazuello ampliar o portfólio de vacinas. Em vez disso, o diligente general investiu em cloroquina e hidroxicloroquina — drogas sabidamente ineficazes no tratamento da Covid, mas que foram distribuídas à larga (5,4 milhões e 609 mil comprimidos, respectivamente).
Mais adiante, sob pressão, o ainda ministro mudou o discurso:
“Falamos de atendimento precoce. Não de tratamento precoce”. Pior a
emenda que o soneto: além de não conter o avanço da doença, a obstinação pelo
tratamento inócuo custou rios de dinheiro — que poderiam ter sido canalizados
para outras ações, como logística de distribuição de vacinas e suprimento de
oxigênio para hospitais.
Pazuello, que se jacatava de não
receber representantes de laboratórios e não conversar com fornecedores, ignorou sucessivas ofertas da gigante americana Pfizer. As negociações só
tiveram início 216
dias depois do primeiro contato, e a compra de 100 milhões de doses foi
formalizada dois dias após a demissão do ministro — ao que tudo indica, ele confiou a tarefa de centralizar processos de compras de vacinas,
seringas, agulhas e outros insumos (que também viriam a faltar) a Élcio Franco,
seu imediato na pasta. E com isso o Brasil acabou nas últimas posições da fila
da vacinação no mundo.
Observação: Em seu último pronunciamento oficial,
horas antes de o presidente confirmar sua saída, Pazuello ainda tentou
capitalizar a contratação das 100 milhões de doses da vacina da Pfizer,
afirmando que o contrato estava assinado.
Documentos enviados pelo Ministério das Relações
Exteriores à CPI mostram que o Brasil reduziu à metade a
quantidade de doses de vacinas a serem recebidas por meio da Covax
Facility — aliança global
formada por mais de 150 países, liderada pela OMS e criada para
impulsionar o desenvolvimento e a distribuição de vacinas contra a Covid.
A Covax permitia aos países membros adquirir vacinas para até 50% de
suas populações. A cota escolhida pelo Brasil, de 10%, era a mínima oferecida
pelo consórcio. A rigor, o governo optou em agosto por doses para imunizar 20%
da população, mas, em setembro, reduziu para 10%.
Se houvesse imunizante em doses suficientes, o SUS
poderia vacinar de 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas por dia; como não há, somente
20% da população brasileira tomou a primeira dose e
9,8% recebeu também a segunda (de acordo com levantamento feito na última segunda-feira
pelo consórcio de veículos de imprensa, com base em dados das secretarias estaduais
de Saúde).
Episódio mais dramático da pandemia no Brasil e um dos
retratos mais cruéis da atuação de Pazuello à frente da pasta foi a morte
de manauaras por falta de oxigênio hospitalar. O próprio Pazuello
admitiu, no dia 11 de janeiro, que tinha conhecimento prévio do problema, tendo
sido cobrado, inclusive, por uma cunhada cujo irmão não tinha oxigênio nem
para passar o dia — ao que ele respondeu: “Você
e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio e ser distribuído. Não tem o que
fazer. Então, vamos com calma.”.
Observação: Três dias antes, Pazuello fora
avisado pela empresa White Martins da impossibilidade de garantir o
abastecimento nos hospitais. No dia 14, pacientes começaram a morrer por
asfixia nos hospitais de Manaus. Enquanto isso, o ministro anunciava o
lançamento do TrateCov, criado por sua pasta para fazer diagnóstico da doença sem a necessidade de testes e indicar protocolo de tratamento com hidroxicloroquina
(até para bebês). Após a má repercussão do aplicativo — que se mostrou
apenas uma forma de prescrever o chamado kit Covid — a pasta o tirou do
ar (e disse que um hacker o havia publicado).
Enquanto pessoas morriam por falta de oxigênio em Manaus,
120 mil comprimidos de hidroxicloroquina eram enviados ao Amazonas. Diante
deste cenário fúnebre, o
professor de história, escritor e compositor Luiz Antonio Simas desabafou:
“Apoio qualquer coisa contra esse governo: passeata, guerrilha, panelaço,
greve, jantar beneficente, sujeito gritando sozinho no banheiro, desabafo em
analista, despacho na encruza, novena, frente ampla, mandinga do livro de capa
de aço de São Cipriano, ciranda, bingo e bazar”.
No dia 23 de março, desgastado diante do ritmo lento da
vacinação no país, da segunda onda da pandemia e já
alvo de investigações, Pazuello foi substituído pelo cardiologista Marcelo
Queiroga. Mas não fez mea culpa na despedida no
ministério. Ao contrário. Ao falar com a equipe em reunião reservada, afirmou
que sofreu
pressões de políticos interessados num “pixulé” e que foi alvo de
tentativas de sabotagem de médicos. Em conversas reservadas, reconheceu a distribuição de recursos do Ministério da Saúde com
finalidade política. “A operação de grana com fins políticos acontece aqui”, chegou a dizer o general para seu sucessor, Marcelo Queiroga.
Servidores de carreira comemoraram a saída de Pazuello e sua
equipe. Ficaram para trás as reuniões sem a expressão “selva”, do jargão
militar, e sem o “vamos liberar a cachorrada”, que o general usava
para dispensar o pessoal técnico de um determinado compromisso. Mas sua
calamitosa gestão continuará indelével na história do país.
Observação: Fossemos uma nação que se desse ao
respeito, o maníaco do tratamento precoce já estaria, há meses, impedido,
investigado, processado, julgado, condenado e preso. Como este país não passa
de uma republiqueta terceiro-mundista, o mandatário de fancaria segue vituperando
suas diatribes, escarnecendo das quase 500 mil vítimas fatais do vírus e usando
impunemente o “seu Exército” como instrumento político. E a conivência
dos militares não só desmoraliza a corporação como põe em risco seu papel como
instituição de Estado.
Ontem, na CPI do Genocídio, o senador Renan Calheiros apontou ao menos onze contradições e mentiras no depoimento da Capitã Cloroquina, entre elas a data em que Pazuello tomou conhecimento da falta de oxigênio em Manaus. A equipe técnica do relator elaborou um documento intitulado “destaques contraditórios do depoimento de Mayra Pinheiro”, listando os momentos em que ela ou prestou “falso testemunho” ou entrou em contradição com declarações anteriores dela ou de seu ex-chefe. São eles: 1)Tratamento precoce; 2) Medicamentos para Covid; 3) Pesquisa na área de infectologia; 4) Cloroquina; 5) TrateCov; 6) OMS e Conitec; 7) População pediátrica; 8) Isolamento; 9) Comando do Ministério da Saúde; 10) Crise em Manaus; 11) Falta de oxigênio em Manaus.
Enquanto o resto do Brasil chora seus mortos, o Brasil do
morubixaba de turno pede passagem para se divertir, rindo da nossa cara. Quem
não estiver satisfeito, que vá se queixar ao papa.