Bolsonaro está levando os militares a uma situação limite, como, aliás, fez constantemente enquanto estava no Exército. Em 1986, aos 31 anos de idade, o então capitão da ativa, publicou um artigo na revista Veja denunciando a “situação crítica da tropa no que se refere ao soldo”. A diatribe lhe rendeu 15 dias de prisão disciplinar. No ano seguinte, voltou à carga com um plano de explodir bombas de baixa potência em quartéis e academias (também como forma de protesto contra os baixos salários dos militares). Outro artigo publicado por Veja revelou essa história e o insurreto foi excluído do quadro da Escola de Oficiais, mas acabou sendo absolvido pelo Superior Tribunal Militar (num evidente acordo). “Um mau militar”, como o classificou o general Ernesto Geisel.
Na política, Bolsonaro fazia panfletagem na porta de
quartéis nas eleições. Alguns dos generais hoje no governo fizeram essa
intermediação com o então deputado, que acabou na Presidência com o apoio e a condescendência
dos militares, convencidos de que somente ele poderia derrotar o PT em
2018. Hoje, a possibilidade de um novo confronto entre os dois extremistas extremados
do espectro político-ideológico no pleito de 2022 fortalece sua posição entre
os fardados.
Incentivado por Bolsonaro — que quebrou a regra de não levar a
política para dentro dos quartéis quando fez um comício em frente ao QG do Exército em Brasília —, o ex-ministro da Saúde e ainda general da ativa Eduardo
Pazuello rompeu com a máxima de hierarquia e disciplina ao participar de um
ato político no domingo 23.
A partir dessa evidência, o ministro da Defesa, general Braga Netto, e o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, tentam achar uma saída que não desmoralize a corporação nem crie uma crise institucional com a Presidência da República.
Não punir Pazuello deixaria claro que a política está tomando conta dos quartéis. O que não pode — e é o que Bolsonaro está fazendo — é usar o Exército como instrumento político. Passou da hora de os militares levarem isso a sério, sob o risco de desmoralização completa da ideia de uma corporação de Estado, hierarquicamente bem definida, e de todos se sentirem autorizados a fazer política nos quartéis.
O vice-presidente Hamilton Mourão entendeu rapidamente a natureza do problema. Na segunda-feira, declarou que seu colega de farda sabia que “cometera um erro e tinha colocado a cabeça no cutelo”. Ontem, ao apresentar sua defesa, Pinoquiello argumentou que “o encontro público onde falou para apoiadores do presidente e que contou com um passeio de moto de Bolsonaro no Rio de Janeiro não era um evento político-partidário, que o Brasil não está em período eleitoral e que Bolsonaro não é filiado a partido político. E mais: que tem convicção de que não infringiu nenhuma norma do Regulamento Disciplinar do Exército.”
O ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje no Gabinete Civil, teve a
sensibilidade de pedir para ir para a reserva quando se viu envolvido numa
manifestação política conduzida por Bolsonaro. O general passava
despercebido em meio a vários assessores quando o presidente o chamou para a
frente da manifestação. Ramos reconheceu que não poderia estar ali como
general da ativa, e tentou convencer Pazuello que, a exemplo dele, passasse
para a reserva, mas Bolsonaro não considerava essa ação necessária.
A presença do presidente em, na média dos primeiros dois anos de seu governo, uma
formatura por mês de integrantes das Forças Armadas e das polícias Militar,
Federal e Rodoviária Federal sugere claramente sua intenção de politizar os
quartéis. O especialista Adriano de Freixo, professor do Departamento de
Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal
Fluminense, ressalta que a “bolsonarização” dos estratos inferiores da
corporação não pode ser ignorada.
Outra “bolsonarização” que começa a se tornar motivo de
preocupação é a das polícias militares estaduais, definidas na Constituição
como forças auxiliares do Exército. E o quadro se torna mais complicado quando
se leva em consideração a simbiose que existe em diversos estados da Federação
entre parte das corporações policiais e as “milícias” — que, no Rio de Janeiro,
não só têm o controle efetivo de vastos territórios como também está ligada a
figuras relevantes do entorno de Jair Bolsonaro.
No que tange à convocação de Bolsonaro para depor na CPI do Genocídio ― defendida pelo senador Randolfe Rodrigues ―, a questão é controversa (como quase tudo mais no Brasil). A maioria dos juristas entende que o Congresso não tem poderes para convocar o presidente da República a depor à Comissão. Seria, segundo eles, uma invasão na separação dos Poderes.
Há quem diga que o senador apresentou o requerimento para
negociar a convocação dos governadores, objeto de requerimentos da ala
governista. Se foi esse o caso, Randolfe não logrou êxito. A
uma, porque nove governadores foram convocados; a duas, porque o senador dificilmente conseguirá aprovação
da convocação do capitão. A AGU deve acionar o STF, que certamente
irá desobrigar o presidente a comparecer.
O governador do Amazonas terá muito que explicar, inclusive a reunião em que, com a presença de Bolsonaro, ficou decidido que não haveria intervenção federal no Estado ― que, como se viu, não tinha condições de enfrentar a crise, e agora a CPI terá que resolver quem foi o culpado pela não intervenção. Os demais governadores terão que explicar para onde foi o dinheiro enviado pelo governo federal.
O lado positivo da convocação dos governadores é que descaracterizará a intenção do relator da CPI, senador Omar Aziz, de responsabilizar Bolsonaro et caterva por ações e omissões que potencializaram os efeitos mortíferos do vírus assassino. Numa comparação estrambólica com Nuremberg, o relator, senador Renan Calheiros (que está longe de ser o bastião da lisura na vida pública), disse que “ainda não podemos definir se o que aconteceu aqui foi um genocídio”, mas que Bolsonaro é reincidente, “produz as mesmas provas todos os dias” de que seu governo defende a proliferação do coronavírus, aumentando o número de mortes por Covid no país.
Fato é que a CPI vem trazendo a lume uma
retrospectiva dos maiores erros no combate à pandemia. Um deles foi a
restrição aos dados sobre o avanço da Covid, em junho do ano passado, já gestão
do general Pazuello. Aliás, foi a partir daí que alguns veículos de
imprensa se reuniram num consórcio que visa garantir acesso às informações
básicas, essenciais para a criação de políticas eficazes na área de Saúde.
A pujança da sociedade civil brasileira é aplaudida em
fóruns internacionais. O governo Bolsonaro não sabe ou não quer aproveitar
esse potencial. Em abril do ano passado, o “revogaço” decretado pelo capitão — talvez
por achar que “conselhos” são coisa de “comunista” — inviabilizou grande parte
da estrutura participativa institucionalizada pela Constituição de 1988. Aos
que temem o comunismo como crianças se assustam com o bicho-papão, vale
lembrar que a União Soviética acabou em 1991. Estaríamos melhor — inclusive no
combate à pandemia — se o governo não hostilizasse a imprensa e as organizações
sociais.
Por último, mas não menos importante, talvez seja exagero qualificar de “genocídio” o que aconteceu (e continua acontecendo) no Brasil desde o registro da primeira morte por Covid, em fevereiro do ano passado. Mas eu não vejo uma palavra que possa descrever melhor as quase 500 mil mortes ocorridas nos últimos 15 meses.