Convidado da bancada do Jornal da Cultura da última quinta-feira, o médico sanitarista Gonzalo Vecina alertou: “Vamos chegar próximo a um milhão de mortes até termos cobertura vacinal. Temos que lembrar como foi a evolução disso. Como foi sair de 100 mil para 200? E de 200 para 400? Vamos chegar seguramente nos 800 mil mortos graças ao presidente da república”.
Nesta sexta-feira, 18, o Brasil registrou 2.449 mortes por Covid e 98.135 casos da doença. Com isso, o total de mortes no país chegou a 498.621 e o de casos a 17.802.178. A média móvel cresceu 8% nos últimos sete dias, com 2.007 óbitos. O país tem 24.136.412 pessoas imunizadas com duas doses da vacina, cerca de 11,40% da população. No mesmo dia, a CPI do Genocídio analisou requerimentos e ouviu dois médicos defensores do “tratamento precoce” com o uso de fármacos cuja ineficácia no combate ao SARS-CoV-2 já foi comprovada.
O senador Renan Calheiros confirmou que o ministro Marcelo Queiroga será uma das 14 testemunhas promovidas à condição de investigado. A inclusão de seu nome na lista provocou divergência entre membros do chamado G7; para justificá-la, o relator classificou de “pífios” e “ridículos” os depoimentos do médico, lembrou que ele mentiu ao dizer que tinha autonomia no cargo e que não explicou satisfatoriamente a aquisição de lotes de vacinas por preço 20% superior aos contratados anteriormente, além de ter defendido o uso de medicamentos para tratamento precoce da doença em diálogo com representante da OMS.
Já o vice-presidente da comissão, senador Randolfe Rodrigues, informou que foi retirada a classificação sigilosa dada a 2.200 documentos recebidos pelo colegiado. São 1.636 arquivos do Ministério das Relações Exteriores, 97 do Ministério da Saúde, 445 documentos relacionados à crise da falta de oxigênio no Amazonas e 4 contratos da Fiocruz. Com isso, imprensa e sociedade terão acesso às informações. A insistência de Bolsonaro em defender o uso da cloroquina e a tese da “imunidade de rebanho” já encheu as medidas.
Sobre a live do capitão sem-noção, o vice presidente da CPI assim se pronunciou: “Nós queremos reiterar a todos os brasileiros e brasileiras, em nome desta comissão parlamentar de inquérito: não ouçam o que diz o presidente da República. O senhor presidente da República tem o direito de falar a besteira que quiser. O que ele não tem direito é fazer declarações contra a ciência e atentar contra a vida dos brasileiros”.
Randolfe protocolou um requerimento de convocação do Facebook e YouTube ― plataformas usadas por Bolsonaro para transmitir suas lives semanais. “É necessário que os dirigentes dessas empresas no Brasil compareçam a esta comissão parlamentar de inquérito. Com muito menos, nos Estados Unidos, o senhor Donald Trump foi banido das redes sociais”, justificou ele. A expectativa é que o requerimento seja votado na próxima terça-feira.
Durante a coletiva de imprensa, o relator da CPI classificou o comportamento de Bolsonaro de “irresponsável, deslavado, criminoso, com o qual não podemos concordar”, e afirmou que aguarda definições sobre as competências e os limites da comissão de inquérito para, em sendo possível, incluir o chefe do Executivo na lista dos investigados. “É uma análise que estamos refletindo, meditando, ouvindo as pessoas, conversando com as instituições. Se a comissão puder diretamente investigar o presidente, já que a vedação é para o não comparecimento para depor – não é uma óbvia vedação à investigação -, se a competência favorecer, eu queria de antemão dizer que nós vamos investigar sim”, disse Renan Calheiros.
O presidente eleito com a bandeira do combate à corrupção continua demonstrando que está pouco se lixando para o combate à corrupção. Em sua indefectível live de quinta-feira, Bolsonaro elogiou a aprovação, pela Câmara, do PL 10.887/18, um projeto que enfraquece ações e investigações contra improbidade administrativa e reforça (ainda mais) a impunidade dos agentes públicos. Disse ainda o presidente que a culpa por haver tantos processos por improbidade administrativa é do Ministério Público, deixando claro o lado em que está nessa briga.
Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava-Jato, criticou as mudanças aprovadas pela Câmara, que reputou “assustadoras”. “A aprovação desse projeto é o maior marco da impunidade dos atos de improbidade na história”, postou o procurador no Twitter. Entre os aspectos que ele considera mais graves estão:
1) Os prazos de prescrição, que foram encurtados de modo a garantir impunidade em casos complexos. Se a lei valesse hoje, as ações de improbidade da Lava-Jato, que já tramitam há mais de 4 anos, seriam todas encerradas por prescrição, garantindo-se impunidade completa;
2) Partidos políticos passam a ser isentos de qualquer responsabilidade por atos de improbidade, o que extinguiria as ações promovidas pela Lava-Jato contra os partidos que se envolveram com corrupção, pedindo que devolvam o dinheiro desviado;
3) O prazo de investigação de atos de improbidade passa a ser de no máximo 1 ano, o que é inexequível quando se apuram crimes e atos complexos como aqueles de corrupção identificados na Lava-Jato. Mais impunidade;
4) As penalidades aplicadas por improbidade só poderão ser executadas após o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, após infindáveis recursos em quatro instâncias. Com os marcos prescricionais curtos, assegura-se prescrição (= impunidade);
5) Muitos desvios deixaram de ser improbidade, inclusive o enriquecimento ilícito do funcionário público (sua previsão foi desfigurada), contrariando frontalmente Convenções Internacionais de Combate à Corrupção que o Brasil assinou, como a da ONU e a Interamericana.
Os últimos dias revelaram dados concretos para confirmar o que já se intuía: Bolsonaro é um personagem político que se movimenta mais à vontade nas sombras, à margem das instituições oficiais. Gabinete paralelo na Saúde, gabinete do ódio no Planalto, ação paralela no TCU e por aí vai.
Temos um chefe de governo que tenta montar uma estrutura extraoficial que interfere na ação de sua equipe formal quando lhe interessa, muitas vezes criando obstáculos à consecução de programas de governo, como no caso do combate à corrupção. E que conta com o apoio de um submundo criminoso, a parte escura do governo que, às vezes sorrateiramente, noutras, em plena luz do dia, vai cooptando os mais variados setores, da Câmara à PGR, das Forças Armadas ao STF.
A interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, para controlar
as infamações que lhe convêm, é um caso típico dessa estrutura paralela. Alexandre
Ramagem, delegado que Bolsonaro queria ver à frente da PF, tornou-se íntimo da família e, não podendo, por interferência do STF,
nomeá-lo, colocou-o na Abin, de onde alimenta um sistema informal de
informações de que Bolsonaro se orgulha.
Funcionários do governo que vão à CPI dão uma versão dos fatos que a
realidade desmente. Caso especial é o ex-secretário executivo do Ministério da
Saúde Élcio Franco, que assumiu, como se fossem oficiais, políticas
públicas que deveriam estar banidas por decisão científica. Disse com todas as
letras que a gestão a que serviu considerava que o tratamento precoce era uma
maneira adequada de combater a Covid.
O que o governo escondia até então transformou-se, na boca de um membro do alto
escalão do Ministério da Saúde, em política de governo. É difícil acompanhar
esses depoimentos sem ver que é tudo uma farsa para encobrir as ações de fato
do governo, como atrasar a compra das vacinas e apostar na imunidade de
rebanho.
A CPI já está constatando uma situação de inação proposital do governo.
Essa questão do gabinete paralelo na Saúde é interessante. Uma assessoria
informal de pessoas qualificadas não traz problema nenhum, os presidentes devem
conversar com várias pessoas, não ficar apenas com a visão de seu ministro.
Presidente e ministros podem ouvir quem quiserem, mesmo que não seja do
governo. O problema é montar um esquema paralelo para desmentir e boicotar a
própria política oficial. Não é possível recomendar uma medicação oficialmente
dada como ineficaz, como o gabinete paralelo fez com a cloroquina.
Fica cada vez mais evidente que o governo alimentou uma corrente minoritária da
medicina para impor uma política de saúde no Brasil que não poderia ser
assumida por ser ilegal. Outro gabinete paralelo é o que funciona no Palácio do
Planalto para orientar e alimentar a trama de intrigas e fake news que é
a base da mobilização social nas redes sociais.
O caso do pedido de arquivamento das investigações
sobre ações antidemocráticas é exemplar de como o presidente age. Tentado pela
possibilidade de ser nomeado para o Supremo, agora ou mais adiante, Augusto
Aras procura garantir pelo menos sua recondução ao cargo. Não viu nenhuma
transgressão onde as investigações, liberadas pelo ministro Alexandre de
Moraes a bem da sociedade, mostraram uma vasta rede de financiadores de
ações ilegais por parte de empresários e seguidores de Bolsonaro.
O ministro da Justiça, Anderson
Torres, deu apoio público ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
investigado pela Polícia Federal, subordinada à Justiça, por corrupção
num caso de contrabando de madeira. Como se não bastasse, revela-se um
escabroso caso de atividade ilegal no Tribunal de Contas da União, em
que um servidor inseriu no site oficial do órgão, sem autorização, um estudo
seu em que especula a hipótese de que as mortes por Covid tenham sido
muito menores do que se alardeia.
O estudo em questão, citado pelo presidente Bolsonaro como trabalho oficial do TCU, não tem chancela oficial nem faz parte de nenhum trabalho formal do tribunal. Seu autor é um amigo dos filhos de Bolsonaro, e o presidente soube dele pelo pai do auditor, um militar seu amigo.
É assim que a banda toca hoje no Brasil.
Com Merval Pereira